Desde que vive com uma gata, há seis anos, um amigo ganhou uma nova preocupação: no caso da sua morte, quem cuidará dela? «As nossas mortes nunca mais serão as mesmas», disse-me. Tornamo-nos responsáveis pela falta que faremos, por garantir que as necessidades, originais e criadas, terão resposta na nossa ausência inevitável. Não ignoramos que a probabilidade de eles nos sobreviverem é menor do que a inversa, mas a dependência da criatura que submetemos ao nosso cuidado torna imoral tomar as estatísticas como certezas. Perguntaram a Clarice Lispector o que era para ela a morte: «É o meu cão me procurando pelo apartamento e não me encontrando.» Pensamos nas consequências que as nossas mortes lhes trarão, mas, e as consequências da nossa vida na vida deles?
Acerca do mesmo cão, Clarice Lispector diz: «(…) comprei Ulisses quando meus filhos cresceram e seguiram seus caminhos. Eu precisava amar uma criatura viva que me fizesse companhia. Ulisses é um mestiço, o que lhe garante uma vida mais longa e uma inteligência maior» (Moser, 447). Não comprei o meu gato, mas escolhi-o. De uma fotografia em que estava junto aos irmãos e irmãs, era aquele com uma pelagem cujos padrão e cor me fizeram atribuir-lhe as características de gato resistente, arguto, ainda detentor de traços indomesticáveis. Trazer o meu gato para viver comigo foi impor-lhe um cuidado nos meus termos. Na nossa relação ele ocupa invariavelmente a posição mais vulnerável, e frases como «é ele que é o meu dono» ou «a casa é mais dele do que minha» mascaram as limitações evidentes a que está sujeito.
Adoptar um gato foi uma decisão deliberadamente egoísta. Não se tratou de um impulso, nem do caso benemérito de o recolher de um abrigo, ou da beira da estrada. As razões para o fazer sempre me foram claras, mas nunca as considerei legítimas o suficiente para justificarem a minha decisão; nada a que pudesse dar o nome de desejo ou de dever. Caso não fosse eu a adoptá-lo, teria sido outra pessoa; todos os outros irmãos e irmãs dele o foram. Hoje, passados quatro anos a viver comigo, não consigo evitar a pergunta: essa outra pessoa, teria sido melhor para ele do que eu?
O meu gato estaria bem com quem soubesse responder às suas necessidades, atento o suficiente para as identificar sem as tornar subservientes dos seus interesses. Paradoxalmente, temo que ele seja colocado à guarda de outra pessoa, precisamente porque esses quatro anos de convivência diária me permitem dizer que o conheço, e que sou quem melhor o conhece; logo, que sou quem melhor saberá responder às suas necessidades. Contudo, este conhecimento e esta capacidade são duvidosos, na medida em que são assegurados por uma habituação criada durante esse tempo, por uma interacção que originou parte das necessidades dele a que agora eu respondo.
Se ocupo a função de cuidadora, foi porque o coloquei na posição de responder a uma necessidade minha. É tentador usar a razão que Clarice dá para ter comprado Ulisses para legitimar a adopção do meu gato, como se a partilha de uma necessidade a justificasse e aos meios que a satisfazem. Essa tentação é derrubada por John Berger:
A prática de ter animais independentemente da sua utilidade, a posse de animais de estimação, é uma inovação moderna e, à escala social em que existe hoje [escrevia em 1977], é única. Faz parte daquela retirada universal, embora feita à escala pessoal, para a pequena unidade privada familiar, decorada ou mobilada com recordações do mundo exterior, e que forma um aspecto tão distintivo das sociedades de consumo. A pequena unidade familiar tem falta de espaço, terra, outros animais, estações, temperaturas naturais e por aí fora. O animal de estimação ou está esterilizado ou se encontra sexualmente isolado, extremamente limitado nos seus movimentos, quase inteiramente privado de qualquer outro contacto animal, e é alimentado com comida artificial. Este é o processo material que está por detrás do truísmo que afirma que os animais de estimação acabam por se parecer com os seus donos ou donas. São criações do modo de vida dos seus donos. (40-41)
Estraguei o gato. Há nele vontades que não consigo satisfazer, que ele desenvolveu por estar comigo (estando com outra pessoa desenvolveria outras). Interrogo-me sobre a possibilidade de emendar a nossa relação, de corrigir hábitos, rotinas, para que a mudança da hora de brincar não cause ansiedade: a ele por lhe sentir a falta; a mim por me sentir em falta.
O cuidado é uma limitação. Animais em cativeiro, em ambiente doméstico ou em jardins zoológicos, têm uma vida mais prolongada, mas essa longevidade é garantida pelo isolamento, pela dependência absoluta dos seus tratadores, o que modifica o seu comportamento. Procurei sinais de animalidade no gato que escolhi; vejo agora que essa procura era sinal da minha condição moderna, de uma falta identificada. Berger compreendeu-nos bem, a mim e a Clarice, quando descreveu como um dono vê o seu animal de estimação: «O animal completa-o, oferecendo respostas a aspectos do seu carácter que, de outro modo, permaneceriam por confirmar. Ele pode ser para o seu animal o que não é para ninguém ou para nenhuma outra coisa. Além disso, o animal de estimação pode ser condicionado a reagir como se também ele reconhecesse tal» (41). Não há margem para a idealização desta ideia de completude, na medida em que uma das partes é submetida a uma situação apenas aparentemente vantajosa. Os interesses do meu gato foram alterados antes de serem reconhecidos. O argumento frequente de que ele está melhor numa casa, com abrigo e comida garantidos, não me convence quando há problemas de saúde que só terá por estar nessas condições; não me convence, sobretudo, quando observo nele uma nostalgia pelo exterior, um anseio pela interacção com outros seres, uma curiosidade insatisfeita, a necessidade de mais estímulos.
O contrabalanço regressa com Mary Midgley quando assegura que a aproximação entre animais de espécies diferentes é comum, e que todas as comunidades humanas, das mais remotas às mais recentes, incluem seres de outras espécies. Ela tranquiliza-me ao explicar que os animais cuja domesticação foi bem-sucedida são, por princípio, animais sociais: «Os animais transferiram para os seres humanos a confiança e a docilidade que, no estado selvagem, teriam desenvolvido, primeiro, pelos pais, e, no estado adulto, pelo líder da matilha ou da manada» (112). O argumento parece ser o de que nos procuramos uns aos outros, animais humanos e não-humanos; se o contacto com outros animais não é oferecido à criança, ela procura-o activamente: «Os animais, como a música e a dança, são um gosto inato» (118). Mas continuamos a ser nós o beneficiário maior deste contacto: «O relacionamento com animais não é um substituto, por si, do relacionamento com pessoas, mas um complemento — é aquele acréscimo indispensável a uma vida humana plena» (119). A vida do meu gato será mais plena por estar comigo?
Os casos de animais que crescem entre espécies diferentes da sua são vários e estão documentados. Uma procura simples na internet devolve inúmeros resultados de vídeos de gatas com ninhadas que adoptam patos-bebés ou cadelas que adoptam gatos-bebés. Midgley dá o exemplo de um pato criado por galinhas:
O pato pode ter uma vida razoavelmente satisfatória, sem consciência de lhe faltar alguma coisa. Mas, na verdade, vai faltar-lhe muita coisa, dado que toda uma gama das suas capacidades sociais nunca será despertada. Um pato solitário criado entre galinhas nunca terá as pistas de que precisa para realizar muitos dos seus comportamentos-padrão centrais. Partilha algumas actividades com as galinhas, mas nem perto de todas. Além disso, também passa a vida a ser mal-entendido. É, assim, um pato desprovido, como o seria se não tivesse acesso a água. (105-6)
Em que medida é que esta descrição não se aplica ao meu gato, que está comigo desde os dois meses de idade? De que modo é que também ele não é um gato desprovido, com uma falta essencial?
Reconciliar-me com ser a causa dessa falta, e procurar corrigi-la, foi o que me levou a esta investigação. Midgley diz que, «para uma vida plena, uma criatura social em desenvolvimento precisa de estar rodeada de seres muito semelhantes a ela em todo o tipo de coisas aparentemente triviais, mas que fornecerão pistas essenciais para o desabrochar das suas faculdades» (107). O meu gato é adulto, tem 32 anos em idade humana, o seu desenvolvimento está completo. O processo a que o submeti não é reversível, não há correcção retroactiva. Porém, acredito que a convivência, em qualquer idade, com membros da mesma espécie, é um ganho, independentemente do nosso nível de misantropia. Se o meu gato me proporciona uma vida mais plena, devo-lhe o mesmo a ele. O meu dever não é encontrar essa outra pessoa que imagino melhor do que eu; o meu dever é ser essa outra pessoa: alguém que lhe garantirá o reencontro com um igual.
Referências:
Berger, John. Porquê Olhar os Animais? Antígona. Lisboa, 2020.
Midgley, Mary (1983). Animals and Why They Matter. The University of Georgia Press. Athens, Georgia, 1998.
Moser, Benjamin (2009). Clarice Lispector: Uma Vida. Civilização Editora. Porto, 2010.
Ulisses Lispector: Um Retrato. Instituto Moreira Salles. Consultado online pela última vez no dia 2 de Junho de 2023. https://www.youtube.com/watch?v=OJQrVtBCeuA