Ia à Gulbenkian ver Canalettos. Enganei-me na data, só chegavam em Outubro. Era final de Agosto. Fui na mesma. Não era deles que ia à procura, mas de Londres em Setembro de 2022. Da orgulhosa pacóvia de serviço que se deu ao luxo de quase ignorar uma parede cheia deles na National Gallery. Afoguei-me num Seurat. Bathers at Asnières, porque o vi em inglês. Foi ele que me deu o que procurei e não me aconteceu à frente dos Rothko na Tate Britain. Aqui, foi um Turner costeiro médio e muito discreto que me fez cativa. Não estive em Londres; fui em Londres. Um lugar só se torna o que vem a ser depois de de lá sairmos.

Vamos para termos ido; para sabermos onde estivemos.

É escusado ir à Califórnia à procura da Califórnia. Ela está a pé de casa, quando olho para a estrada com as palmeiras altas que vai dar ao Lidl, especialmente com as condições meteorológicas adequadas. Foi um irlandês que melhor a descreveu. Deve ter visto os mesmos filmes que eu e ouvido as mesmas canções. Não acredito que tal coincidência se deva a uma deslocação ao local. É, aliás, a coincidência que me convence de que ele nunca lá esteve. Da minha inglesa de Dorset estou certa de que foi a Nova Iorque, porque a canta com a ingenuidade de quem foi obrigada a sobrepor os lugares-feitos que levava com o que encontrou para não desistir da sua cidade.

Durante anos disse a um homem que ele seria a primeira pessoa a quem telefonaria assim que pisasse solo americano. Um telefone público na Central Station ou numa qualquer outra rua movimentada: «Sou eu. Cheguei. I’m in New York, no need for words now.» Curei-me do sonho moribundo quando me curei de todos os sonhos: quando deixei de ter futuro.

Só agora que nunca mais poderei entrar na casa onde cresci sinto que era onde poderia ser. Olho para ela do lado de fora, como para todas as outras onde adivinho confortos que nunca poderei provar. Como a casa da terra, que foi vendida. Que vamos agora fazer à terra? Ver a terra quando já não há terra para ver. Não. Agora é que o lugar é a terra que antes não era. Arrependo-me de não ter ficado com elas.

A grande tristeza é o olhar desorientado do meu pai no meio da louça, dos bibelôs, das rendas, das roupas, tudo já espalhado no chão para a última escolha; pratos, copos, talheres usados dezenas de anos a fio, por eles, por ele, por mim, pelo meu irmão. Como ficar com tudo? Trouxe um de cada. Para me lembrar do meu avô a descascar a fruta ao almoço com a faca de cabo branco. Usava sempre o mesmo prato. Não um igual: o mesmo. Trouxe um de cada de fugida: do olhar do meu pai, que é como eu: deitar tudo fora. Cada objecto é uma porta para uma memória e nunca mais se acabam, nunca. Mais vale deixar tudo, perder tudo, mas há um dia em que sentimos que somos quem se perde por não termos o que nos lembre. Os sofás, as cadeiras, as mesas, a cama. Se me ponho a pensar na casa lembro-me de tudo sem me lembrar por que fugi. Ou fugia ou sabia que ia ser apanhada para sempre pelos olhos do meu pai. Que são os meus olhos.

Onde fica esta casa? No verso «I miss Kentucky and I miss my family». Na pergunta «Oh my sweet Carolina, what compels me to go?»

Mas o fio das memórias também embota. Pensamos que são tantas mas são sempre as mesmas se ouvirmos as canções em repetição contínua. Lembramo-nos do mesmo quando passamos pelos mesmos sítios. Por isso é que vamos, para esgotar a dor. O pior é quando os sítios mudam de lugar e damos com o bairro por onde passávamos para chegar ao parque dos baloiços onde enfiei uma lasca de madeira no pé no passeio constitucional de domingo à tarde pelas ruas de onde moramos agora adulta sozinha. Aí a dor é nova como a primeira vez em Atlantic City, quando essa cidade ainda podia ser a nossa história. O luto do que não foi mas podia tão bem ter sido é um vai-não-vai porque nunca há a certeza de não poder ainda vir a ser.

Posso voltar a Londres, mas tenho a certeza de que Londres não estará lá. A certeza?

Pensar que partimos para ver o novo é um erro: vamos aos sítios à procura. Vamos para replicar a memória da emoção. O medo mais íntimo é ultrapassar os limites do reconhecível; o desejo mais feroz é o de habitar um tempo e um lugar que nunca foram. Que só o são agora. Para ver o novo é preciso não ter querido ir.

Vivo num lugar que reúne, no raio de oito quilómetros quadrados, prédios e vivendas de estilos arquitectónicos díspares. Eclético seria a palavra educada para o descrever; prova inequívoca de desordem mental de um país é a minha. Também é minha a sorte de ter sido sancionado o arroubo de algum apaixonado pela construção inglesa em tijolo vermelho: basta-me andar seis minutos e meio em linha recta e descer a rua à esquerda para passar pelas janelas dos apartamentos estreitos onde vivem as pessoas de Mike Leigh; para, agora mais raramente, ver aquele homem de sobretudo preto, cigarro nos lábios e olhos claros que, aos vinte e três anos, recordava o tempo em que era novo.

Vivo numa colónia de memórias que cultivo escrupulosamente. Repito os caminhos na tentativa de esgotar as saudades afiadas de coisas que não aconteceram bem assim. Se não se apagar a luz a traça morre à fome.

Manchester é onde vivo, não o lugar novo que dá por esse nome. Se o delimitar, posso dele sair e arriscar não ter nome para o que vejo. Como em Tóquio e Xangai: como é que sei que as coisas que vejo são as mesmas se não consigo ler o nome que ali lhes dão? Um mundo sem mapa. Se não souber onde estou, como poderei sair? Esqueço-me que o que quero é entrar.

Já não é Agosto e os Canalettos chegaram.

Em Londres, foi a atenção com que uma amiga os via que me impediu de os ignorar. Perguntei-lhe o que via neles e a resposta deu contornos à amálgama que eram aos meus olhos. Posso agora ir à procura do que ela viu, mas ao menos sei que vou à procura do que eu nunca vi. Nunca quis ir a Veneza.

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