(DUAS SEMANAS ANTES DO SUPER BOWL)*
Há não muitos anos, os intelectuais ainda achavam engraçado resumir o seu compreensível desprezo pelo futebol na pergunta: «Por que razão é que vinte e cinco homens adultos devem correr atrás de uma bola?». Entretanto, a classe média europeia educada — com mais ou menos competências profissionais — destaca-se pelas discussões pormenorizadas sobre futebol e os seus juízos morais bem-intencionados e, não raras vezes, juízos estéticos refinados substituíram há muito o velho comentário político. Por exemplo, actualmente na Alemanha é de bom-tom sugerir a jogadores, treinadores e presidentes de clubes apenas «humildade» (ou elogiá-los por humildade comprovada), enquanto os termos de apreciação estética relacionados com o desporto ainda estão por chegar (por enquanto, as palavras da jovem linguagem de treinador assumem o seu lugar discursivo, como os «standards» ou o «meio-campo»).
Ninguém fica surpreendido quando, ainda hoje, o futebol é mencionado como um objecto de experiência estética (apenas a questão de ser uma variante «inferior», «normal» ou «superior» da experiência estética parece estar ainda em aberto, sendo raramente colocada). No entanto, as caracterizações condescendentes do desporto não desapareceram completamente: apenas ocupam um novo lugar nas conversas e outro ponto de referência. Aqueles que descrevem como eventos grotescos desportos que não são muito populares na Europa — seja basebol, críquete ou curling —, ainda têm a chalaça do seu lado. No entanto, deveriam justamente deparar-se com a ironia do ditado francês, segundo o qual «o mau gosto é sempre o gosto dos outros».
A este respeito, o estatuto do futebol americano torna-se ambivalente. Por um lado, a final da liga profissional nos Estados Unidos, o chamado «Super Bowl», há muito que se tornou um evento mediático em todo o mundo (este ano, terá lugar no dia 1 de Fevereiro). Por outro lado, aparentemente falta à maioria dos telespectadores internacionais uma compreensão efectiva do conhecimento básico das regras, aquilo que em primeiro lugar possibilita o entusiasmo por um desporto (especialmente quando os jogos, com anúncios incluídos, levam até quatro horas). Nos últimos anos, tenho tido frequentemente a impressão de que há uma certa visão em que cada diferença entre o futebol e o futebol americano — de boa vontade — é levada a mal. Esta visão é responsável pela decepção moderada ou pelo silêncio educado após o domingo de Super Bowl. Talvez um repensar — ou melhor, uma mudança de óptica em pelo menos três perspectivas — pudesse quebrar o feitiço e condensar o fascínio difuso já existente pelo futebol americano na intensidade particular da experiência que o tornou (na verdade, somente nas últimas décadas) no desporto favorito dos Estados Unidos.
O pré-requisito para isso é a disposição de participar num jogo em que a estratégia de complexidade ilimitada e a violência desenfreada convergem. Ambos os campos de força estão intactos e muito explicitamente visíveis no futebol americano. Poder-se-ia, então, dizer — mas apenas numa nota lateral, que não deve, de maneira nenhuma, atribuir ao futebol americano (ou desporto, em geral) uma aura — que aqui, num alto grau de intensidade, ambas as dimensões são tangíveis (estratégia e violência, sentido e sensualidade), e a sua presença simultânea constitui desde o século XVII uma «experiência estética» nas culturas ocidentais. Por um lado, a coreografia de movimentos é definida em detalhe e a longo prazo (na verdade, no início da temporada). É constantemente ajustada a situações específicas antes da sua execução por meio de conversas curtas entre treinadores e jogadores, e resumida num emblema especial, ou seja, uma manga com informações mnemónicas no antebraço do quarterback, o jogador que coordena o ataque da sua equipa em campo.
Do mesmo modo, do outro lado do futebol americano está a violência, de forma explícita e descarada, e no sentido literal, isto é, a violência como conquista física e bloqueio de áreas contra a resistência de outros corpos. Tal como no hóquei no gelo ou no boxe, há uma forma específica de violência que os espectadores valorizam: é o «golpe limpo», o momento em que o movimento do corpo de um jogador para a frente é momentaneamente e definitivamente interrompido pelo contra-movimento de outro corpo (puxões para agarrar a bola e segundas aproximações são incompatíveis com a beleza do «golpe limpo»). A partir do momento em que o espectador, conscientemente ou pré-conscientemente, oculte a mera possibilidade de julgar belas tais cenas, porque considera a violência e a experiência estética incompatíveis, a atracção particular do futebol americano fica-lhe vedada. É por isso que o prémio Nobel da literatura sul-africano John Coetzee, fã de rugby, está errado quando prevê que a proibição da violência poderia tornar o seu desporto favorito mais popular internacionalmente.
No futebol americano, surgem sempre momentos em que a tensão entre estratégia complexa e violência presente produz formas e imagens individuais de concisão potencialmente mitológica. Por exemplo, quando o quarterback faz um passe preciso ao longo de trinta ou quarenta metros, apenas uma fracção de segundo antes do momento em que um defesa robusto o derruba; ou quando um jogador é perseguido agressivamente por vários adversários, fingindo ganhar espaço com a bola no seu braço, enquanto outro jogador da mesma equipa efectivamente traz a bola — e completamente desobstruída — para a frente. Em tais cenas, as forças opostas de estratégia e violência fundem-se em configurações sempre novas, às vezes reminiscentes da dinâmica da graça (edificante) e da gravidade (terrestre), que o ensaio de Heinrich von Kleist sobre «teatro de marionetas» descreve.
Mas tais cenas de opostos cheios de tensão só podem surgir no contexto da condição básica do futebol americano, em que a estratégia e a violência estão ligadas em síntese, porque as estratégias só se tornam reais na dimensão da corporificação. Isto inclui a substituição constante dos cerca de sessenta jogadores altamente especializados de cada equipa, que se parecem com peças de xadrez com os seus capacetes, os seus ombros alargados geometricamente pela armadura de protecção e sob as camisas com números enormes. Que de qualquer forma a violência — e, portanto, a ameaça física — estão sempre no jogo, explica, por um lado, porque é que qualquer violação intencional das regras do jogo (cada «falta») no futebol americano é sujeita às sanções mais rigorosas. Por outro lado, essa omnipresença da violência (e os perigos associados a ela) também poderia ser a razão para o grau singular de paixão dos jogadores e espectadores do futebol americano. «Depois de uma derrota», ouvi certa vez um running back bem-sucedido dizer, «fica sempre claro que nunca se deveria ter entrado neste campo».
Menos fundamental, com contornos mais suaves e transições mais flexíveis, o contraste básico entre violência e estratégia pertence também, certamente, à maioria dos desportos de equipa, incluindo o futebol. No entanto, com um segundo princípio formal levado ao extremo, ou seja, com a segmentação do fluxo do jogo numa sequência (talvez se deva dizer «em staccato»), muitas vezes apenas alguns segundos em jogadas duradouras, entre as quais há longos intervalos, o futebol americano desenvolve um ritmo especial. Esse ritmo explica como sessenta minutos de tempo de jogo puro podem fazer com que eventos desportivos durem de três horas e meia a quatro horas, com intervalos de transmissão televisiva — para a frustração do público internacional — quase exclusivamente cheios de publicidade. Mas porque é que esta estrutura não desafia, aparentemente, a paciência do público americano (no estádio e à frente das telas) a ponto da dor?
Eles ocupam-se de play a play (de down a down, como se poderia dizer de maneira equivalente)[1] com a pergunta sempre nova que mantém a equipa técnica e os jogadores em suspense, ou seja, qual a próxima jogada que pode vir a surpreender a outra equipa — e, assim, resultar no ganho de terreno (para a ofensiva / ataque) ou no bloqueio do espaço (para a defesa). Uma vez que um espectador se envolve neste tipo de participação «inteligente», afirmo eu, o fascínio do futebol americano atinge-o. No próprio campo, no entanto, não se trata apenas do pensamento estratégico adiantado, mas também de um down por down para sub-competições específicas, que muitas vezes têm um sotaque individual. Os minutos de expectativa tensa e depois segundos de movimento complexo e violência voltam sempre à questão de saber quem ganha o próximo play — a equipa que tem a posse de bola ou a equipa defensiva —, o que, por sua vez, é composto por uma série de duelos. Muitas vezes, os vencedores de batalhas decisivas celebram um sucesso dentro de uma jogada com tanta ênfase como se tivessem acabado de ganhar o Super Bowl.
Assim, os intervalos (apenas aparentemente) aborrecidos do jogo, no futebol americano, resultam em fases de tensão crescente e na sua descarga. Que uma equipa possa manter a posse somente quando avançou com a bola numa série de, no máximo, quatro downs, cerca de — no total — dez jardas, faz com que a tensão aumente justamente na estrutura de um crescendo. Os momentos mais barulhentos de um estádio são geralmente o segundo de tensão antes de um terceiro down, quando a equipa no ataque, se não avançou com a bola para lá das dez jardas, deve ceder o seu o papel ofensivo aos seus adversários. Muito ao contrário da impressão de um olhar de fora que consegue ver unicamente tédio na segmentação dos movimentos, reside precisamente na — novamente, muito difícil — estrutura espacio-temporal da segmentação um quadro determinante (e bastante rígido) para a participação do público. Somente nele podem desenrolar-se as cenas de violência e estratégia.
Na sequência de jogadas enquanto mini-competições, sucede frequentemente no futebol americano uma batalha de exaustão, que termina com o colapso de um defesa quando é incapaz de manter o seu espaço fechado aos corpos da outra equipa. Ao mesmo tempo, em terceiro lugar — e exactamente no ritmo oposto —, o futebol americano é também um jogo de reviravoltas dramáticas e improváveis, mas sempre possíveis (quase se poderia dizer: um jogo do destino em constante e brusca mutação). Tal como acontece com todos os desportos que permitem proteger e dirigir a bola com as mãos, a segurança da bola de futebol americano é muito elevada — e é por isso que os momentos de súbita mudança de direcção (ou do destino) são tidos por particularmente cruciais.
Por exemplo, quando um defesa consegue apanhar a bola do braço de um avançado, agarrá-la e, em seguida, na direcção oposta, invadir um grupo perplexo de atacantes que ainda não se ajustaram ao seu papel de defesa funcional. Um efeito semelhante é produzido pela chamada «intercepção», ou seja, o momento em que um defesa intercepta o passe de um quarterback e, assim, fica com a posse da bola. Isto também inclui um conjunto de regras que permitem que as equipas com pior pontuação — até então sob alto risco de um «selar do destino» desfavorável — melhorem decisivamente, muitas vezes em poucos segundos. Por outras palavras, raramente (e só muito tarde no jogo) a diferença entre os pontos marcados por ambas as equipas pode ser tão clara que a vitória e a derrota sejam irreversíveis. Por fim, a tensão diminui, efectivamente, no futebol americano.
Estes três domínios de fenómenos, o encaixe de estratégia e violência, o staccato e o crescendo de movimentos, juntamente com a tendência dos momentos de força[2] e pontos de viragem dramáticos, compõem, na sua convergência, a forma particular do futebol americano, bem como o especial fascínio do espectador. Do efeito da sua interacção resulta uma afinidade peculiar com o conceito de «fórmula de um pathos», cujo preço é tão alto na arte contemporânea e na crítica de arte. Por causa da convergência e acumulação das três áreas descritas, o futebol americano torna-se um jogo de formas duras, aparentemente dramáticas, necessárias e quase arcaicas ou elementares, que se tornam fórmulas e gestos concisos. Com base na violência omnipresente, essas fórmulas e gestos não são apenas corporizados, mas emocionalmente carregados de um alto grau de intensidade, até, precisamente, ao pathos, à paixão corporizada ou incarnada.
Ao mesmo tempo, as fórmulas de pathos do futebol americano não representam nada, não são alegorias que possuem um lugar para significados e ao mesmo tempo os articulam. Pelo contrário, actuam como pathos e intensidade de vida comprimida. E, de facto, os apaixonados apoiantes deste desporto seguem os seus jogadores favoritos em trechos de vida extraordinariamente longos. Primeiro, durante os quatro anos em que o futebol pode ser jogado como um desporto universitário, que por sinal atrai mais espectadores do que a liga profissional perfeitamente gerida — e então, em alguns casos, pelo menos, através do limiar entre a faculdade e a liga profissional, em direcção a uma carreira profissional em que os ganhos individuais são semelhantes aos das ligas de futebol mais famosas.
No entanto, assim como o enquadramento, no espaço e no tempo, do futebol americano usa estratégias para comprimir a violência em fórmulas de pathos, essas fórmulas podem encontrar ressonância apenas dentro da cultura dos Estados Unidos como um contexto específico. Numa cultura de contornos rígidos e emoções intensas muitas vezes desbragadas.
(Jochen Hieber, obrigado pelo desafio)