SOBRE A SUSTENTABILIDADE DAS IDEIAS: O CASO SINGULAR DE KARL MARX*

 

Romântico, no duplo sentido da palavra, e, portanto, até mesmo potencialmente nostálgico foi o passado fim-de-semana de motins em Hamburgo [1], além de tantos outros efeitos e aspectos. Romântico e nostálgico porque no contexto de uma cultura europeia contemporânea, que submeteu qualquer uso da violência ao tabu e à proibição, lembra que antigamente a violência (sobretudo na época altamente canonizada da revolução burguesa) era um meio legítimo da política, quando não mesmo um valor; romântico e nostálgico sobretudo, porém, porque não poucos dos manifestantes violentos — mais uma vez após um longo período — fizeram referência explícita e com intenção normativa ao Marxismo, assim que lhes perguntaram acerca dos objectivos das suas acções, ou seja, acerca das suas representações de um futuro melhor: a «China antes de 1976» esteve no cerne da maioria das respostas, a China antes da morte de Mao, portanto, e antes da liquidação política da «Revolução Cultural», da qual hoje uma nova burguesia administrativa entre Pequim e Xangai manifestamente se quer lembrar como uma idade de ouro.

Se durante a vida Mao usufruiu de um culto e poder divinos, esta presença quase transcendental do passado, dos anos cinquenta e sessenta, «abandonou entretanto e há muito o seu templo» (o seu mausoléu na capital chinesa), para usar uma expressão de Heidegger, do ensaio «A origem da obra de arte». Aí já se encontra pouco culto, os tempos oficiais de visita foram reduzidos a um mínimo semanal — e Mao partilha este fado (presumivelmente?), com todos aqueles grandes símbolos nacionais do seu tempo, nos quais as ideias de Karl Marx parecem ter-se concentrado e encarnado: com Lenine, cujo cadáver embalsamado hoje em Moscovo já quase não se pode ver, tanto que rumores sobre uma degradação física já afastaram a aura da memória; com Estaline, cujo monumento do lugar de nascimento, solenemente inaugurado dois anos antes da sua morte em Gori, na Geórgia, mantendo hoje, deliberadamente, a coreografia original de 1951, apenas consegue preservar a memória dos tristes tempos da dependência da União Soviética; e, mais cedo ou mais tarde, algo de semelhante há-de acontecer às equivalentes formas de culto no Vietname, Cuba ou Coreia do Norte.

Se agora, no entanto, na invocação da «China antes de 1976» como inspiração colectiva de uma imaginação de felicidade, a referência à figura de Mao desvaneceu e de facto desapareceu, então estas palavras já não se podem associar à forma institucional do Marxismo como ideologia de Estado, mas apenas às ideias de Karl Marx, que por mais de um século foram naturalmente a matriz oficial, embora raramente levadas à letra, do Marxismo. Precisamente porque estas ideias não desapareceram com a derrota ou o colapso das suas múltiplas realizações institucionais é o que as coloca, do ponto de vista da cultura mundial, mesmo acima das sagradas escrituras das três grandes religiões monoteístas: a Tora, os Evangelhos e o Corão. Ou, visto de outro modo e diferenciadamente: às ideias de Marx enquanto corpus de um texto secular convém um estatuto absolutamente singular no que diz respeito à amplitude e influente intensidade da sua recepção; mesmo em relação ao cânone dos escritos das religiões monoteístas são singulares, porque até hoje e por si só mostraram que é possível preservar uma ressonância viva baseada num texto depois do fim de uma realidade institucional conforme.

A associação da obra de Marx com as sagradas escrituras não pretende ser crítica neste contexto, como se estas ideias tivessem traído a sua própria insistência na secularidade. Antes tenta chamar a atenção para o fenómeno da sua peculiar história de recepção e respectivos pressupostos, que os intelectuais do nosso tempo, e não só, tomaram apenas como um simples facto. Todos os casos de comparação pensáveis, não políticos ou religiosos, ficam bem atrás de Marx: as perspectivas e teses de Freud tiveram uma influência duradoura na vida individual na cultura ocidental nos sucessivos níveis da sua formulação, mas não a tiveram de todo numa dimensão colectiva; Rousseau foi para os revolucionários burgueses do fim do século XVIII e início do século XIX uma digna referência de inspiração, sem que o seu texto fosse entendido como um manual de instruções directas; as obras de figuras como Platão, Descartes ou Kant marcaram muitas gerações de intelectuais, porém nunca tiveram influência na vida de maiorias sociais. Como é que se explica esta atractividade única, em muitos sentidos, em relação ao texto de Marx? De que componentes imanentes poderá depender?

O que aqui é relevante é a observação de que o texto de Marx — apesar do supracitado e sério preceito da secularidade —, na sua implementação em ideologia política (através da implementação em diferentes «Marxismos»), sempre provocou determinadas formas de comportamento que, de um ponto de vista filológico, correspondem perfeitamente à tipologia dos textos religiosos. Acima de tudo, na insinuação de que estes escritos são dirigidos «a todos nós»; não apenas aos amigos, antagonistas e outros contemporâneos de Karl Marx, mas sim aos mil milhões de homens do seu futuro, cujas condições de vida ele próprio não conseguia imaginar. Esta insinuação de um poder imediato que ultrapassa todas as diferenças históricas foi descrito pelo teólogo protestante Rudolf Bultmann em relação aos Evangelhos com o conceito de «Kerygma».

Em segundo lugar, surgiram pouco depois da revolução soviética de Outubro, como primeiro acontecimento compreensivelmente político inspirado em Marx, acesas discussões acerca do conteúdo do seu texto, a manter como canónico na sua literalidade precisa, e sobretudo acerca da sua interpretação autoritária. Foi, pois, precisamente este o último triunfo na vida política de Lenine, que se repercutiu verdadeiramente a longo prazo de forma negativa: ter associado esta autoridade da manutenção e interpretação do texto ao Partido Comunista (com consequências negativas, de facto, porque o Partido renunciou à oportunidade de dispor de um potencial de sugestões de mudança e realidades alternativas por meio de novas interpretações — de fora, por assim dizer).

Tais observações tornam sem dúvida a questão em torno das razões da singularidade das ideias de Marx ainda mais urgente e interessante — sem lhe dar uma resposta imediata. Devem naturalmente sobrar propostas de resolução no plano da especulação e com diferentes graus de plausibilidade, uma vez que a evidência empírica ou estritamente lógica pode não se aplicar neste contexto. Em todo o caso, e desde já, uma série de respostas possíveis afastam-se da posição hodierna. As descrições de uma «sociedade sem classes», por exemplo, como uma nova forma de vida colectiva, que deveria motivar a acção revolucionária, permanecem surpreendentemente pálidas na obra de Marx — porque vão pouco mais além de um pensamento sobre o desaparecimento das estruturas tradicionais da hierarquia e da exploração. Além disso, se a teoria da luta de classes, que já se tinha desenvolvido na sua forma básica antes das revoluções europeias de 1848, e depois das experiências de 1848 se diferenciou enquanto caminho para uma nova sociedade, deveria ter funcionado convincentemente como modelo de acção, então a subsequente história política de sucessivos momentos de fracasso também deveria ter largamente reduzido o seu poder persuasivo. Por fim, Marx — no meio da admirável complexidade das suas reflexões —, nos manuscritos tardios à volta do «Capital», não alcançou uma solução para o problema da descrição da autodestruição e anulação do Capitalismo como algo necessário histórica ou sociologicamente.

O que é que permanece fascinante no seu texto — mesmo no seguimento do colapso das instituições e Estados construídos de acordo com as exigências do Marxismo? Há uma resposta, a meu ver, plausível, mesmo provável, que parte de experiências — e traumas — precoces da vida de Karl Marx. Por exemplo, de o seu pai ter visto como inevitável converter-se com a sua família ao Cristianismo pouco após o nascimento do filho em 1818 (ainda para mais à confissão protestante, o que na Trier maioritariamente católica criava uma certa distância), porque, apesar de todas as garantias para os cidadãos judeus confirmadas pela Restauração, tinha razões para assumir que sem este passo deixaria de poder exercer a sua profissão de advogado com êxito. Mas também, e talvez sobretudo, da experiência de ter de esperar muitos anos até à família não-judia da sua querida Jenny de Vestefália aceitar o matrimónio, sendo ele o mais brilhante de todos os jovens e liceais de Trier. 

O que Karl Marx trouxe ao seu máximo desempenho intelectual e literário não foi nem uma postura de solidariedade específica com a classe trabalhadora oprimida nem a utopia de uma igualdade económica total, mas antes a sua paixão muito abrangente, a sua obsessão, aliás, pela justiça de valores [Wert-Gerechtigkeit] — mais precisamente por uma justiça no que toca ao valor objectivo das formas de comportamento e de acção. O próprio Marx deve ter crescido com a sensação permanente de que ele e a sua família nunca viveram esta justiça — e nunca teve, até à sua morte, a ocasião de rever esta impressão (pois a larga ressonância internacional e política dos seus escritos só se deu postumamente).

Uma tal fixação específica pela justiça poderia explicar por que é que nenhum outro conceito abrange toda a obra de Marx com semelhante multiplicidade de perspectivas, teses e questões como o conceito de «valor» [Wert-Begriff]. Esta fixação conduz a diferenciação dos conceitos valorativos sob a previsão de diferentes contextos sociais e práticos tendencialmente ao infinito, mas desta infinidade de perspectivas não se parece tornar nunca um caminho para a relatividade dos valores. Pelo contrário, mesmo no que diz respeito aos conceitos que construiu enquanto ponto de intersecção de outros conceitos valorativos — tal como o conceito de produto no valor material, valor de mercado, valor de utilidade e valor do trabalho investido convergem —, a questão da objectividade dos valores e por conseguinte da sua justiça não foi anulada.

Contrariamente à concentração de emergências sociais, visíveis e urgentes no mundo histórico de Karl Marx, a questão da justiça dos valores mantém-se actual nas sociedades — aquelas que seguem os princípios de base do Estado social — que tentam eliminar determinados graus de mal-estar social. O próprio Karl Marx não cresceu de todo sob condições precárias, mas teve a ocasião de se sentir «desvalorizado». Tal sentimento (na maior parte dos casos bem menos plausível), o de se ser tratado «ao desbarato», suscita hoje discussões, por exemplo, à volta de um salário máximo —, e pertence, pois, ao horizonte de motivações de vagas formas de «protesto social», que provavelmente mais depressa se transformam em violência destrutiva e inconsequente onde a violência deve ser eliminada do dia-a-dia. Mas isso já é outra questão.

 

[1] O autor refere-se aos protestos desencadeados pela Cimeira do G20 nos dias 7 e 8 de Julho de 2017. (N. do T.)

 

* Texto originalmente publicado em alemão no blog Digital/Pausen, que o autor mantém no site Frankfurter Allgemeine Zeitung. Traduzido para português por Pedro Franco.

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