Temos uma ideia do autoconhecimento que o associa à introspecção, à auto-análise—é uma actividade individual ou até constitutiva do indivíduo. Trata-se de uma concepção herdeira da filosofia de Descartes, segundo a qual temos acesso privilegiado aos conteúdos da nossa mente e, por conseguinte, só nós podemos saber verdadeiramente, ou afirmar legitimamente, quais são as nossas intenções ao falar ou ao agir, ou o que sentimos em dado momento. Já os outros só sabem isto acerca de nós se os informarmos. Na mesma medida, cada um de nós só sabe acerca das intenções, pensamentos, sensações e sentimentos dos outros por inferência (vejo alguém a contorcer-se como eu me contorço quando me magoo e infiro que está em sofrimento) ou se eles nos informarem (e nós acreditarmos). Assim, acerca dos conteúdos da mente dos outros pode-se sempre ter dúvidas, mas não acerca dos conteúdos da própria mente. Foi esta espécie de infalibilidade que levou Descartes a considerar a introspecção a base de todo o conhecimento.

Wittgenstein abalou esta concepção com o seu famoso argumento da linguagem privada, segundo o qual só temos acesso aos conteúdos da nossa mente porque temos um vocabulário para os descrever, e esse vocabulário provém de uma linguagem comum. Por conseguinte, para Wittgenstein, a posição cartesiana é insustentável: as experiências privadas e os conteúdos privados da consciência são indestrinçáveis do domínio de uma linguagem (e de uma forma de vida) comum.

Porém, a maneira mais cogente de pôr em causa esta imagem que Descartes criou, e que vigora ainda, é-nos dada, segundo creio, pelo pensamento minoritário, que acrescenta duas dimensões ao autoconhecimento que a filosofia tradicional muitas vezes ignora: a ética e o poder. Estas duas dimensões resultam de o autoconhecimento não ser aqui separável do conhecimento dos outros.

No prefácio ao seu livro Teoria Feminista: Da Margem ao Centro, bell hooks descreve a sua vida de mulher negra numa pequena cidade segregada do Kentucky, que todos os dias atravessa as linhas de caminho-de-ferro, deixando para trás as barracas e as casas abandonadas da periferia e dirigindo-se ao centro para trabalhar («como criada, como auxiliar, como prostituta, desde que fosse na condição de servir» (hooks 2020, 21), onde as ruas são pavimentadas, onde há lojas, nas quais não pode entrar, onde há restaurantes, nos quais não pode comer, e onde não pode olhar os outros (brancos) nos olhos.[1] Esta sua experiência de vida leva-a a formular uma concepção do autoconhecimento e do conhecimento dos outros centrada na dialéctica entre margem e centro: «Vivendo como vivíamos — na periferia —, desenvolvemos uma maneira peculiar de ver a realidade. Olhávamos tanto de fora para dentro como de dentro para fora. Concentrávamos a nossa atenção no centro, e também na margem. Compreendíamos ambos. Esta maneira de ver lembrava-nos de que existia todo um universo, um corpo principal composto por margem e centro. A nossa sobrevivência dependia de uma contínua consciencialização pública da separação da margem e do centro, e de um contínuo reconhecimento privado de que éramos uma parte necessária desse todo» (hooks 2020, 21-22).

De acordo com esta concepção, viver na margem proporciona um olhar singular, e esta singularidade pode ser expressa nos seguintes termos: um olhar, tão discriminado que não pode olhar outros nos olhos, torna-se visionário porque conhece mais da realidade (as pessoas marginalizadas conhecem a margem e o centro, ao passo que as pessoas do centro só conhecem o centro), porque está ciente do paradoxo da sua marginalização (a consciência pública da sua segregação e a consciência privada da dependência do centro em relação à margem) e, sobretudo, porque disso depende a sua vida. Não é por acaso que grande parte do pensamento minoritário parte de relatos autobiográficos—tal como os nossos sentidos ficam mais alerta quando estamos em perigo, para pessoas à margem conhecer os outros e a si mesmas é uma questão de sobrevivência.

Em Um Quarto Só Seu, Virginia Woolf lança o desafio: «Suponha-se, por exemplo, que os homens só eram representados na literatura como os amantes das mulheres, e que nunca eram os amigos dos homens, soldados, pensadores, sonhadores; seriam tão poucos os papéis que lhes poderiam ser atribuídos nas peças de Shakespeare; que golpe para a literatura!» (Woolf 2021, 125).[2] Em 1929, ano em que o livro foi publicado, o golpe seria tão grande que a literatura simplesmente deixaria de existir, já que o número de obras literárias que representavam os homens apenas como amantes das mulheres era precisamente zero. E esta provocação servia para demonstrar, a contrario, a enorme carestia que a literatura sofrera desde sempre por os autores representarem as mulheres «quase sem excepção na sua relação com os homens. (…) E essa é uma parte tão pequena da vida de uma mulher (…)» (Woolf 2021, 124).

No entanto, não é apenas a literatura que sofre com o silenciamento das mulheres, como autoras e como personagens. Desta representação incompleta resulta um autoconhecimento necessariamente deficitário, porque, segundo Woolf, «todos temos uma mancha do tamanho de um xelim na nuca que não conseguimos ver por nós» (Woolf 2021, 136). E se as mulheres beneficiaram desde sempre da descrição da mancha que têm na nuca através da literatura feita por homens («Pensem no muito que as mulheres ganharam com os comentários de Juvenal; com as críticas de Strindberg. Pensem na humanidade e brilhantismo com que os homens, desde os tempos mais remotos, indicaram às mulheres aquela mancha escura na nuca!» (idem)), o mesmo não se pode dizer daqueles. E, no entanto, «nunca será possível pintar uma imagem verdadeira do homem antes de uma mulher ter descrito essa mancha do tamanho de um xelim» (idem).

Além disso, os homens precisam tanto mais destas descrições quanto a discriminação das mulheres consiste, segundo Woolf, numa distorção cognitiva que lhes permite sobrestimarem crassamente o seu valor e capacidades. «As mulheres têm servido ao longo de todos estes séculos como espelhos que possuem a magia e o delicioso poder de reflectirem a figura do homem com o dobro do seu tamanho natural» (Woolf 2021, 52). E esse excesso de autoconfiança, estritamente dependente da diminuição das mulheres,[3] é nada menos do que a base sobre a qual assenta toda a civilização: «Pois como poderá [um homem] continuar a julgar casos, a civilizar nativos, a fazer leis, a escrever livros, a vestir-se pomposamente e a discursar em banquetes, se não se conseguir ver ao pequeno-almoço e ao jantar com pelo menos o dobro do tamanho que realmente tem?» (Woolf 2021, 53). Um dos efeitos da literatura escrita por mulheres seria então o de corrigir as imagens que mulheres e homens têm de si mesmos, distorcidas num caso e noutro ora por defeito ora por excesso do valor próprio.

Estas duas autoras subvertem assim a noção tradicional que temos do autoconhecimento: a ideia de que nos conhecemos a nós próprios por via da introspecção, analisando os nossos sentimentos, pensamentos e acções, bem como a ideia concomitante de que estamos em posição privilegiada para o fazer, pois conhecemos melhor do que ninguém o que sentimos e pensamos. bell hooks e Virginia Woolf sugerem que o autoconhecimento envolve necessariamente outras pessoas e que, em aspectos muito relevantes, não só não temos nenhuma autoridade especial para nos pronunciarmos, como podemos ser os mais cegos sobre quem somos. A grande diferença entre uma concepção e outra é que a primeira omite inteiramente questões de poder e questões éticas, ao passo que, para a segunda, estas são necessariamente centrais, pois, neste ponto de vista, a identidade, a dignidade e em última instância a sobrevivência dependem da maneira como se é tratado por quem detém o poder.

Com isto em mente, podemos voltar a Descartes e notar a estranheza da ideia de que só por inferência conheço a vida interior dos outros. É fácil pensar que nunca podemos realmente saber o que outra pessoa pensa ou sente porque só podemos pensar os nossos pensamentos e sentir os nossos sentimentos, não os de outra pessoa — é fácil porque é a imagem que ainda hoje nos governa. No entanto, se à minha frente está uma pessoa que sangra e grita, seria muito estranho eu afirmar que só por inferência sei que ela sofre. Seria uma reacção humanamente pouco inteligível (mais facilmente seria compreensível como a reacção de um marciano).

E se este encapsulamento na nossa mente fosse, não uma condição universal, como pretende ser, mas idiossincrática? E se este olhar que substitui a empatia pela inferência fosse, não uma boa descrição da maneira como percebemos o mundo e os outros, mas um handicap ético do autor? «Eis que, por acaso, observo pela janela homens que passam na rua, os quais (…) também digo que vejo: porém, o que vejo além de chapéus e vestes, sob os quais podem esconder-se autómatos?» (Descartes 1992, 131). Quando a nossa atitude em relação aos outros e à sua vida interior é de cepticismo, a dúvida acerca da sua humanidade é apenas uma conclusão lógica: o que me garante que não são autómatos? E este olhar desumanizador é o primeiro passo para segregar e eventualmente subjugar ou aniquilar alguém. Estou certa de que Descartes não tinha nada disto em mente — tal como o melhor anarquista é um banqueiro, quem mais poder tem é quem menos tem de pensar nele. E, assim, a contraparte da concepção visionária do autoconhecimento avançada pelo pensamento minoritário seria uma concepção acerca do poder e do privilégio enquanto cegueira ética e cognitiva.

[1] Feminist Theory: From Margin to Center foi originalmente publicado em 1984 pela South End Press.

[2] A Room of One’s Own foi originalmente publicado em 1929 pela Hogarth Press.

[3] Também se poderia dizer, inversamente, que os homens são espelhos que reflectem a figura da mulher com metade do seu tamanho natural.

 

Bibliografia

Descartes, René. Meditações Sobre a Filosofia Primeira (trad. Gustavo de Fraga)Coimbra: Almedina,  1992.

hooks, bell. Teoria Feminista: Da Margem ao Centro (trad. Helena Silveira). Lisboa: Orfeu Negro, 2020.

Woolf, Virginia. Um Quarto Só Seu (trad. Isabel Castro Silva). Lisboa: Penguin Clássicos, 2021.

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