Wittgenstein escreveu pouco sobre Freud e o que escreveu é por vezes contraditório e ambivalente. Por exemplo, tanto se considerou um «discípulo de Freud» e um «seguidor de Freud»,[1] como disse que «a psicanálise é uma prática perigosa e sórdida & tem feito um mal infinito & relativamente pouco bem».[2] Este é o tipo de ambivalência que parece pedir uma interpretação psicanalítica (da variedade bloomiana, provavelmente). Não obstante, as suas reflexões são muito iluminadoras, tanto de Freud e da psicanálise, como da sua própria filosofia.

O exemplo mais notório da centralidade das teorias de Freud nas reflexões de Wittgenstein sobre a sua filosofia é-nos relatado pelo amigo e também filósofo O. K. Bouwsma. Em 1949, perto portanto do final da vida, Wittgenstein conta-lhe que «Quando se tornou professor em Cambridge, apresentou um dactiloscrito ao comité. Keynes era um dos membros desse comité. Das 140 páginas, 72 eram dedicadas à ideia de que a filosofia é como a psicanálise».[3] Sabe-se que este dactiloscrito (TS 220) corresponde a uma versão prévia das Investigações Filosóficas e que as 72 páginas em causa estão reproduzidas, numa ordem diferente, nos parágrafos §§89-133 das Investigações Filosóficas. Pode-se assim concluir que as leituras e reflexões de Wittgenstein acerca de Freud e da psicanálise foram instrumentais para o modo como veio a reformular, já em Cambridge, o método e problemas da filosofia, depois de ter concluído que, afinal, não os resolvera a todos com a escrita do Tractatus.

Na secção das Investigações Filosóficas acima mencionada, encontramos dois parágrafos que ilustram bem esta importância, precisamente aqueles que a fecham e que a abrem. Em §133 lê-se: «A descoberta autêntica é a que me torna capaz de terminar o trabalho filosófico quando eu quero, de pôr a Filosofia em paz consigo própria, de modo a não ser fustigada por questões que a põem a ela própria em questão. (…) Não há um método, mas há na Filosofia, de facto, métodos, tal como há diversas terapias.» Esta é a concepção terapêutica da filosofia in nuce, a que corresponde uma visão dos problemas filosóficos como uma espécie de compulsão. Já em §89 Wittgenstein cita a perplexidade de St. Agostinho sobre o tempo («O que é então o tempo? Se ninguém me pergunta, sei, se quero explicá-lo a alguém, não sei», nas Confissões) como exemplo paradigmático de um problema filosófico: «Aquilo que sabemos se ninguém nos perguntar, e que já não sabemos se tivermos que explicá-lo, é algo que temos que trazer à consciência. (E obviamente é algo que, por um motivo qualquer, dificilmente trazemos à consciência.)»[4] Um problema filosófico surge aqui, portanto, como uma coisa que simultaneamente se sabe e não se sabe, e este paradoxo é apenas aparente, pois a diferença entre saber e não saber prende-se com a necessidade de explicar essa coisa ou não. Esta primeira semelhança entre psicanálise e filosofia tem como consequência outra: problema e solução estão, por assim dizer, dentro da pessoa.

Wittgenstein vê Freud como alguém que dá boas explicações sobre a nossa vida interior mas que está enganado sobre a natureza delas — Freud pensa estar a dar explicações científicas quando o que faz é mais próximo da interpretação de obras de arte e de fazer filosofia. Freud, com efeito, insiste em vários pontos da sua obra que o seu método e descobertas são científicos. Por exemplo, em Sinopse da Psicanálise [Abriss der Psychoanalyse] afirma que «A nossa hipótese [de um aparato psíquico] (…) permitiu-nos edificar a psicologia sobre fundamentos semelhantes aos de qualquer outra ciência natural, como por exemplo a física. (…) Encontrámos os meios técnicos que nos permitem colmatar as lacunas dos fenómenos da nossa consciência, e recorremos a eles como os físicos recorrem a experiências.»[5]

Para Karl Popper, famosamente, isto é falso. Em The Logic of Scientific Discovery Popper instituiu o critério da falsificabilidade para aferir se dada teoria é científica ou não, concluindo que a psicanálise não o é, pois pode sempre ser alterada para acomodar quaisquer observações empíricas — já uma teoria propriamente científica, como a da relatividade proposta por Einstein, tem consequências que podem ser confirmadas ou infirmadas pela experiência (por exemplo, a deflexão da luz em corpos sólidos, que veio a ser provada mais tarde). Também o Círculo de Viena concorre nesta sentença e desqualifica a psicanálise como ciência. Rudolf Carnap, em particular, defendia uma «concepção científica do mundo», segundo a qual o conhecimento científico é ilimitado, não havendo nenhuma questão cuja resposta não possa por princípio ser dada pela ciência. Ora, se a ciência pode em princípio responder a qualquer questão, e se a psicanálise não é científica, segue-se daqui que as questões que levam as pessoas a procurar ajuda na psicanálise são pseudo-questões.

Wittgenstein concorda que o que Freud faz não é nada parecido com o que se faz na física, mas tem uma atitude radicalmente diferente, dir-se-ia oposta, à de Popper e de Carnap. Para Wittgenstein, a ideia de que as únicas explicações válidas são as explicações dadas pelas ciências naturais, ou, por outras palavras, que o único conhecimento digno do nome é o científico[6] é não só redutora como perigosa, porque hostil ao espírito humano. Assim, se o grosso da sua crítica consiste em contestar que a psicanálise seja minimamente parecida com as ciências naturais, o objectivo não é, ao contrário de Popper ou de Carnap, o de desqualificar a psicanálise, mas o de tentar preservar algumas boas características das explicações que Freud dá — e de reformular a sua concepção da filosofia com base nelas.

Em Lectures, Cambridge 1932–1935, Wittgenstein explicita que a principal confusão de Freud está em ver as explicações psicanalíticas como causas quando na verdade elas são razões. Esta diferença, segundo Wittgenstein, faz com que a psicanálise, pace Freud, seja parecida não com as ciências naturais mas com os estudos literários, por exemplo. Também se poderia dizer que interpretar a vida interior de pessoas é, segundo Wittgenstein, afim de interpretar poemas e de fazer filosofia e resolutamente diferente de estudar buracos negros. E o problema de Freud (e em termos latos do nosso tempo) consistiria então em sobrepor ao seu objecto de estudo um modelo teórico que não lhe é adequado. Melhor dizendo, consistiria em conseguir dizer coisas válidas acerca do seu objecto de estudo apesar do modelo teórico que lhe impõe, e não graças a ele.[7]

Um exemplo concreto é a teoria de Freud acerca das piadas. «Freud thinks it is part of the essential mechanism of a joke to conceal something, say, a desire to slander someone, and thereby to make it possible for the subconscious to express itself. (…) When we laugh without knowing why, Freud claims that by psychoanalysis we can find out. I see a muddle here between a cause and a reason. Being clear why you laugh is not being clear about a cause. If it were, then agreement to the analysis given of the joke as explaining why you laugh would not be a means of detecting it. The success of the analysis is supposed to be shown by the person’s agreement. There is nothing corresponding to this in physics.»[8]

Assim, segundo Wittgenstein, se a psicanálise fosse parecida com as ciências naturais, conceberia experiências que testariam certas hipóteses que seriam confirmadas ou infirmadas pela observação dos factos. Mas Freud não faz nada que se pareça com uma experiência, nem é claro que espécie de experiência poderia provar a sua teoria (acerca das piadas, dos sonhos ou qualquer outra). As suas explicações são válidas (ou mesmo eficazes, já que curam sintomas), mas essa validade não resulta da explicitação correcta de uma causa, resulta de a/o paciente concordar com elas. Como Wittgenstein bem nota, não há nada de parecido com este acordo intersubjectivo nas ciências naturais, mas há nas ciências humanas, em particular, no estudo de obras de arte (e também na filosofia). «The psychoanalytic way of finding why a person laughs is analogous to an aesthetic investigation. For the correctness of an aesthetic analysis must be agreement of the person to whom the analysis is given. The difference between a reason and a cause is brought out as follows: the investigation of a reason entails as an essential part one’s agreement with it, whereas the investigation of a cause is carried out experimentally.»[9]

Do mesmo modo, para Wittgenstein, a terapia filosófica que agora começa a elaborar só pode resultar, à semelhança da terapia psicanalítica, se o filósofo perplexo aceitar como correcta a expressão que lhe for dada da sua desorientação: «It is only when he acknowledges it (psychoanalysis) as such as its correct expression.» Assim como os sintomas de um paciente desaparecem, ao longo da psicanálise, quando ele consegue formular, depois de o trazer à consciência, o problema que lhes subjaz, também «the philosopher gives us the word with which the thing can be expressed and made inoffensive».

Outra semelhança entre explicações psicanalíticas, interpretação de obras de arte e fazer filosofia é a importância da analogia. Sobre este ponto Wittgenstein apresenta um argumento muito interessante acerca da interpretação freudiana dos sonhos. Freud faz face à ideia comum de que os sonhos querem dizer alguma coisa, ainda que não seja nada claro o quê, estabelecendo uma correspondência entre certos elementos recorrentes e outros tantos significados. Deste ponto de vista, segundo Wittgenstein, podemos ver a Interpretação dos Sonhos como uma tradução. Acontece que a tradução de uma língua para a outra comporta a possibilidade da retroversão, possibilidade esta que não existe no caso dos sonhos. Ou seja, a explicação dos sonhos que Freud propõe fica aquém dos sonhos, não é uma tradução mas uma redução. Noutro ponto explica que «The display of elements of a dream, for example, a hat (which may mean practically anything) is a display of similes. As in aesthetics, things are placed side by side so as to exhibit certain features. These throw light on our way of looking at a dream; they are reasons for the dream.»[10] Em relação à filosofia, uma maneira de descrever a mudança que ocorreu entre o Tractatus e a filosofia que Wittgenstein começou a fazer a partir dos anos 1930 consistiria em notar que as analogias deixaram de ser vistas como formas de expressão deficitárias (pense-se na insuficiência que Wittgenstein imputava, por exemplo na Conferência sobre Ética, às nossas proposições éticas ou estéticas por comparação com as nossas proposições sobre factos, uma insuficiência que se manifestaria no uso necessário de símiles) para passarem a ser vistas como o veículo ideal para fazer filosofia: «Usually we think of similes as second-best things, but in philosophy they are the best thing of all.»[11]

Em suma, poder-se-ia dizer que, para Wittgenstein, há semelhanças fundamentais entre fazer filosofia, interpretar obras de arte e curar traumas. E há diferenças fundamentais entre estas três coisas e aquilo que se estuda, e o modo como se estuda, na física.[12] E confundir estes domínios, em particular tentando fazer filosofia, interpretar poemas e ajudar alguém numa crise existencial como quem estuda buracos negros, não é apenas redutor, pode, segundo Wittgenstein, contribuir para a «destruição dos seres humanos (ou seja, dos seus corpos, ou das suas almas ou da sua inteligência)».[13]

Acerca da supremacia do conhecimento das ciências naturais e da ameaça que ela representa,[14] vale a pena notar aqui que vários membros do Círculo de Viena fizeram psicanálise (aliás, foram para Viena em parte por essa razão) — incluindo Carnap, que foi psicanalisado ao longo de vinte anos, em Viena e depois nos EUA. Esta incongruência entre o seu pensamento e a sua vida deveria ter sido motivo suficiente para reverem o primeiro. Mas o ponto filosófico aqui em jogo é que a ideia de que o conhecimento científico é ilimitado e pode em princípio responder a todas as questões da vida é uma teoria, um sistema de valores, uma mundivisão, uma ideologia, o que se quiser — mas não é ciência, ou seja, não é uma hipótese que possa ser empiricamente observada e experimentalmente testada, é portanto uma concepção que exorbita do domínio do conhecimento segundo os critérios por ela própria definidos. Por outras palavras, a vexata quaestio da verdade e da prova em torno das explicações relevantes para interpretar poemas, a vida interior de pessoas e problemas filosóficos é exactamente a mesma da «concepção científica do mundo».

Sobre este ponto o que Wittgenstein diz é muito insatisfatório: «Se somos levados pela psicanálise a dizer que na realidade pensávamos isto ou aquilo ou que na realidade o nosso motivo era este ou aquele, isso não é um caso de descoberta, mas sim de persuasão. Podíamos ter sido persuadidos de uma coisa diferente de um modo diferente. Claro que se a psicanálise cura a nossa gaguez, cura-a, e isso é uma realização. Pensamos que certos resultados da psicanálise são uma descoberta de Freud, diferente de uma coisa de que um psicanalista nos persuadiu, e quero dizer que não é esse o caso.»[15] O problema aqui é que, se as duas únicas hipóteses possíveis são a descoberta e a persuasão, então não temos como explicar que alguém tenha curado a sua gaguez graças à psicanálise. Pois, se a psicanálise não descobre nada, na medida em que problema e solução estão já dentro da pessoa não sendo necessário aduzir nada de exterior a ela, e se se trata apenas de persuasão, podendo o paciente ter sido persuadido de qualquer outra coisa, então que a gaguez tenha desaparecido é mera coincidência. Este é um problema que Wittgenstein não pode deixar em aberto, pois na sua concepção a filosofia também não descobre nada, deixa tudo como está, mas ele nunca diria acerca do que faz que é mera persuasão.

Parece-me claro que se achamos que interpretar peças de teatro ou traumas ou o sentido da linguagem é uma forma de conhecimento, é algo que é iluminador, é algo que se pode ensinar e aprender, é algo que umas pessoas fazem melhor do que outras, é algo que pode ter a ver com o sentido da vida, então não podemos dispensar o conceito de verdade, porque é ilógico dizer que a leitura que Stanley Cavell faz de King Lear é muito iluminadora, falar sobre isso com outras pessoas, debater razões, e no fim admitir: mas, claro, tudo isto pode ser mera ilusão. Se achamos que algo pode ser mera ilusão, não achamos que também pode ser iluminador — são qualidades incompatíveis. Quanto à questão da prova, ela não está ausente, é apenas muito diferente daquilo que constitui prova nas ciências naturais e muito mais complicada. Passa por aquilo a que Wittgenstein irá dar o nome «formas de vida» e que a biógrafa de Simone Weil eloquentemente formulou assim a propósito do conhecimento de Deus: «A única prova exterior de uma experiência mística de revelação é a vida que se lhe segue.»

[1] Wittgenstein, Aulas e Conversas, Miguel Tamen (trad.), Cotovia, Lisboa, 2009, p. 79.

[2] Em carta a Norman Malcolm de 1945.

[3] O. K. Bouwsma, Wittgenstein – Conversations 1949-1951, Hackett, Indianapolis, 1986, p. 36.

[4] Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, M. S. Lourenço (trad.), Gulbenkian, Lisboa, 2002.

[5] Sigmund Freud, Schriften aus dem Nachlass, Imago, Londres, 1955, pp. 126-127 (trad. minha do alemão).

[6] Por «científico» entenda-se das ciências naturais, porque uma consequência desta demarcação do conhecimento é que a noção de «ciências humanas» passou a ser uma contradição nos termos. Esta mesma contradição nos termos encontramo-la em qualquer faculdade de letras no presente: faz parte de uma universidade, i. e., de uma instituição de produção e divulgação de conhecimento, mas o seu objecto de estudo (sejam elas obras literárias ou filosóficas), métodos e resultados foram definidos, por um critério que lhes é exterior, como exorbitando do domínio do conhecimento – uma contradição que não será alheia à sua paulatina irrelevância e desaparecimento da sociedade.

[7] Do mesmo modo, quando se lê análises estruturalistas ou semióticas de poemas tem-se muitas vezes a desconcertante sensação de que um bom crítico só consegue dizer coisas válidas acerca de poemas apesar da lente estruturalista ou semiótica, e não graças a ela. E também neste caso o modelo teórico é imposto por ser parecido com modelos retirados das ciências naturais. No entanto, como poemas e a vida interior das pessoas são muito diferentes de partículas subatómicas, e como o que é relevante dizer acerca de poemas e da vida interior das pessoas é muito diferente do que é relevante dizer acerca de partículas subatómicas, a sua aplicação resulta num empobrecimento do que se consegue dizer, e logo compreender, acerca de poemas e da vida interior das pessoas. A necessidade de adequar a maneira de falar àquilo de que se fala era já clara para Aristóteles, quando, a propósito de outro assunto (a justiça equitativa) ilustra o mesmo ponto com a analogia da régua de Lesbos, uma régua que não é rígida e que, logo, se adapta ao que tem de medir: «For what is itself indefinite can only be measured by an indefinite standard, like the leaden rule used by Lesbian builders; just as that rule is not rigid but can be bent to the shape of the stone, so a special ordinance is made to fit the circumstances of the case.» (Ética a Nicómaco, livro V, cap. 10.)

[8] Citado por Jacques Bouveresse, Wittgenstein reads Freud, trad. Carol Cosman, Princeton UP, Princeton, 1995.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] Ludwig Wittgenstein: Dictating Philosophy to Francis Skinner, Arthur Gibson e Niamh O’Mahony (eds), Springer, 2020, p. 110.

[12] A necessidade de adequar a maneira de falar àquilo de que se fala era já clara para Aristóteles, quando, a propósito de outro assunto, ilustra o mesmo ponto (na Ética a Nicómaco, livro V, cap. 10) com a analogia da régua de Lesbos, uma régua que não é rígida e que se adapta ao que tem de medir: «For what is itself indefinite can only be measured by an indefinite standard, like the leaden rule used by Lesbian builders; just as that rule is not rigid but can be bent to the shape of the stone, so a special ordinance is made to fit the circumstances of the case.»

[13] Na carta a Norman Malcolm já mencionada.

[14] A ameaça é representada pela supremacia epistémica, não pelas ciências naturais, evidentemente. Ou seja, trata-se de combater aquilo a que Mary Midgley chamou a «monocultura conceptual» e de defender um «pluralismo científico» que permita que a expressão «ciências humanas» deixe de ser considerada uma contradição nos termos.

[15] Aulas e Conversas, p. 56.

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