A PROPÓSITO DE ANDORINHAS

— para a Joana Dinis, que sabia todos os ninhos

 

Nada imaginei que pudesse ser admitido
pelos que não entendem uma teoria de pássaros. 
LÊDO IVO

 

Primavera I

 

Gritos iguais nem sempre
dizem o mesmo regresso,
sobretudo se os ouvirmos
de janela fechada, olhos corridos.
Há ausências que pertencem
só a um, ao mais pequeno,
e que os outros ouvem
sem perceber a dor.

É tudo
uma questão de escala.
Sobrevive-se
à chuva, ao abismo,
mas a crueldade humana
das manhãs é sempre
mais feroz do que a louça
frágil de qualquer ternura.
Voltar à alegria
pode tornar-se rotina,
um não conhecer outro
destino para o nosso voo:
porquê ficar se
nos destruíram as razões?
Porquê cantar quando
nos apagaram o amor?

Escrever é, por vezes,
guardar a imagem
de pássaros que nunca nascerão.
Demasiado pouco.

 

Primavera II

andorinhas.jpg
 

 

Primavera III

 

Morreu um dia atrasado.
Mão humana travara-lhe
o primeiro voo,
prevendo que seria
também o último
(Vem em todos os livros).

Ícaro não o sabia;
precipitou-se aplicadamente
numa confusão morna
de penas e futuro,
do olhar ao chão. E
o seu tempo pequenino ficou
ali parado, espelho
intacto da nossa falta
de talento para a eternidade.

Não há canto possível
desta vez. A vizinha sairá
de manhã para o varrer,
entre queixas de dilúvios
e outros males menores.
Já não precisa de cair,
ela, nem de parar,
só de não sentir a espera.

Ícaro deixou o mundo,
mas este continua.
Continuamos, aliás,
testemunhas inúteis à janela,
a exigir esperança,
enquanto tentamos esquecer
todos os poemas perdidos.

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