Introdução

O Immram Brain, ou «A Viagem de Bran», é um texto irlandês antigo onde é narrada a viagem de Bran, filho de Febal, ao Outro Mundo. Pertence, convencionalmente, a um grupo de narrativas irlandesas de viagens maravilhosas, os immrama. Embora em listas medievais irlandesas estejam catalogados um número maior de textos deste género, apenas nos chegaram outros três: Immram Curaig Máel Dúin, Immram Curaig Ua Corra e Immram Snédgusa ocus Maic Riagla. Geralmente, inclui-se ainda dentro deste género literário o texto latino Nauigatio sancti Brendani abbatis. O Immram Brain é julgado ser o mais antigo destes textos, sendo a sua composição datada do final do séc. VII ou início do séc. VIII.

Conquanto os textos difiram nos seus pormenores ― alguns são protagonizados por homens do clero em peregrinação, outros por destemidos guerreiros em busca de vingança ―, têm em comum a viagem marítima entre várias ilhas como elemento estruturante da narrativa. Os protagonistas destas navegações, acompanhados por um número definido de companheiros, partem geralmente em busca de uma ilha específica (por vezes de uma abundância idílica) passando por outras de caminho. As ilhas semeadas ao longo do percurso dos viajantes são geralmente definidas por uma característica peculiar, por vezes maravilhosa (e.g. habitada por aves falantes), e os episódios de visita são geralmente fechados em si mesmos, com uma conclusão moralizante que decorre das peripécias. Tanto no Immram Brain como na Nauigatio, o mote para a busca da ilha é dado por uma figura visitante, que descreve ao protagonista uma terra idílica. Entre estes cinco textos há ilhas e motivos partilhados, assim como episódios semelhantes, em quantidade variável.

A proximidade entre os textos irlandeses e a Nauigatio, assim como, principalmente no caso do Immram Brain, a mistura de elementos mitológicos célticos com elementos cristãos, motivaram desde cedo um fértil debate sobre a origem destas histórias. A sua primeira expressão seria, afinal, secular ou cristã? Dificilmente se pode considerar que foram atingidas conclusões definitivas, existindo ainda vozes dissonantes. No entanto, a crítica mais recente considera que o motivo das navegações terá tido origem na expansão de episódios de viagem em vitae latinas ― é possível que uma versão inicial da Nauigatio tenha sido o primeiro dos immrama. Poderão constituir, ainda, um comentário sobre as viagens de peregrinação marinha frequentemente encetadas pelos monges do Cristianismo céltico. 

O Immram Brain é, por vários motivos, um texto particular dentro deste género. Ao contrário dos restantes, o texto é sobretudo poético, inserido numa moldura de prosa. Além disso, a secção da viagem propriamente dita não é, proporcionalmente, tão extensa como nos outros immrama. Por este motivo, há quem defenda que o texto deve antes ser considerado uma echtrae ou «aventura», um tipo de narrativa que, com menos foco na viagem, envolve também uma passagem para o Outro Mundo feérico (localizado, por vezes, por baixo de lagos ou montes) estimulada por um visitante ou objecto de lá proveniente ― na verdade, o Immram Brain aparece também numa das listas medievais com echtrae no seu título, em vez de immram. Assim, no Immram Brain, os navegantes visitam apenas dois lugares, a Ilha da Felicidade e a Terra das Mulheres, embora se deparem também com outras maravilhas pelo caminho. Destaca-se o encontro com Manannán mac Lir (divindade do mar na mitologia céltica), que lhes descreve um reino no fundo do mar, sobre o qual Bran navega, e lhes declama um poema profético sobre o nascimento de Mongán mac Fíachnai. Trata-se de uma personagem histórico-lendária (um príncipe irlandês que terá morrido no início do séc. VII), e o texto descreve como esta criança terá uma natureza semi-divina, sendo óbvio o paralelismo com Cristo. Este segmento é, portanto, particularmente ilustrativo do sincretismo que caracteriza os immrama no geral.


Partilhe:
Facebook, Twitter.
Leia depois:
Kindle
 

Bibliografia

The Otherworld Voyage in Early Irish Literature – An Anthology of Criticism, editado por Jonathan M. Wooding. Dublin: Four Courts Press, 2000.

Radner, Joan Newlon. “Irish Literature: Voyage Tales.” In Dictionary of the Middle Ages vol. 6, editado por Joseph R. Strayer, 550-552. Charles Scribner’s Sons: New York, 1985.



 

Imrum Bruín Meic Febuil Andso ocus a Eachtra Annso Síss

 

[1] Cóeca rand ro-gab in ben a tírib ingnad for lár in t(a)ige do Bran mac Febail óro-boí a rígthech lán di rígaib, a nnád-fetatar can do-lluid in ben óro-bátar ind liss dúntai.

 

[2] Is ed tossach in scéoil. Im-luid Bran láa n-and a oenur i comocus dia dún. Co-cúalai a céol íarna chúl. A ndon-écad tara éssi ba íarna chúl béus no-bíth a céol. Con-tuil asennad frissa céol ara bindi. A ndo-foisich asa chotlad co n-accai in cróeb n-aircit fua bláth ḟind ina ḟarrud, na-pu hasse etarscarad a blátha frissin croíb. Do-bert íarom Bran in croíb ina láim dia rígth(a)ig. Óro-bátar inna sochaidi isind rígth(a)ig co n-accatar in mnaí i n-étuch ingnad for lár in t(a)ige. Is and cachain in caecait rand-so do Braun, arron-chóalai in slóg, ocus ad-condarcatar uili in mnaí.

 


[3] Cróeb dind abaill a hEmain,

      do-fet samail do gnáthaib,

      gésci findarc(a)it forra

      abrait glana co mbláthaib.

 

[4] Fil inis i n-etarcéin

     imma-taitnet gabra réin,

     rith find friss’ toíbgel tonnat

     cethrar cossa fos-longat.

 

[5] Is lí súile, sreth íar mbúaid,

      a mmag for-clechtat in tṡlúaig;

      consna curach fri carpat

      isin maig des Findarcat.

 

[6] Cossa findru(i)ne foë;

      taitni tria bithu gnóë;

      caín tír tria bithu bátha

      for-snig inna hilblátha.

[7] Fil and bile co mbláthaib

     fors-ngairet éoin do thráthaib,

     is tre cho(i)cetal is gnáth

     con-gairet uili cach tráth.

 

[8] Taitnet líga cach datha

      tresna maige moíthgnatha;

      is gnáth sube, sreth imm chéul,

      isin maig des Arcatnéul.

 

[9] Ní gnáth ecoíniud ná mrath

      i mruig deanda etargnath;

      ní-bí nach guth garc fri cró(a)is

      acht mad céul mbind friss-ben cló(a)is.

 

[10] Cen brón, cen dubai, cen bás,

        cen nach galar, cen indgas:

        is ed etargnae nEmnae,

        ní comtig a comamrae.

 

[11] Caíne tíre adamrai

        ata comgnú(i)si cadli,

        asa rodarc find fiä[11],

        ní frithid boith i ciä.

 

[12] Má ad-cetha Aircthech íar tain

       for-snig dracoin ocus glain,

       do-snig a mmuir fri tír toinn,

       trillsi glana asa moing.

 

[13] Moíni, dússi cach datha

        i Cíuin, cani-étatha?

        étsecht fri céul co mbindi,

        óol fíno cen ingrindi.

 

[14] Carpait órdi íar Maig Réin

       taircet la tu(i)le don gréin ;

       carpait aircit i Maig Mon

       ocus crédum(a)i cen on.

 

[15] Graig óir buidi and for srath,

       graig aile co corcardath,

       graig aile olaill tar aiss

       co ndath nime uileglaiss.

 

 [16] Do-feith la turcbáil ngréne

        fer find for-osndi réde;

        redid mag find friss-mben muir,

        mesc(a)id fo(i)rci co-mbi fuil.

 

[17] Do-fet in slóag tar muir glan,

       don tír don-aidbri imram;

       imrat íarom dond liic léur

       asa-comérig cét céul.

 

[18] Can(a)id airfitiud dond tṡlóg

       tre bithu sír, nád-bí tróg;

       tormaig céol co córib cét,

       ní-frescat aithbe ná éc.

 

[19] Emnae ildelbach fri rían,

       bésu ocus, bésu chían,

       i fil ilmíli brecc mban;

       immus-timchella muir glan.

 

[20] Márod-chó(a)la ló(a)d in chiúil,

       isnach énán a hImchíuin,

       do-fet banchuire di á

       cusa cluichemag i-tá.

 

[21] Do-fet soíre la slá(i)ni

       don tír friss-ferat gá(i)ri;

       is i nImchíuin co n-ó(a)gi

       do-fet bóane la há(i)ni.

 

[22] Is lá suthaine síne

       do-snig arcat i tíre;

       aill érfind for idna réin

       foa-feid a grís a gréin.

 

[23] Graibnid in slóg íar Maig Mon,

       clu(i)che n-álaind nád indron;

       i mbruig mbrecht óas ma(i)sse mét,

       ní-frescat aithbe ná éc.

[24] Étsecht fri céul in[d] adig

        ocus techt i nIldathaig;

        mbruig mbrecht, liig óas ma(i)sse mind,

        asa-taitni in nél find.

 

[25] Fil trí coícta inse cían

       isind oceon frinn aníar;

       is mó Érinn co fa dí

       cach aí díïb nó fa thrí.

 

[26] Ticfa mórgein íar mbethaib

       nád-biä for forclethaib;

       mac mná nád-festar céle,

       gébaid flaith na n-ilmíle.

 

[27] Flaith cen tosach cen forcenn,

       do-rósat bith co coitchenn;

       dos-roirbe talam ocus muir,

       is mairc bíäs foa étuil.

 

[28] Is é do-rigni nime,

        cé(i)n-mair dia-mba findchride;

        glainfid slúagu tre linn nglan,

        is é ícfas for tedman.

 

[29] Ní dúib uili mo labrae,

       ci ad-fes a mmóramrae;

       étsed Bran de betho bró

       a ndi ecnu ad-féat dó.

 

[30] Ná tuit fri lige lescae;

       nachid-throíthad do mescae;

       tinscan imram tar muir glan

       dús in-rísta Tír na mBan.

[31] Luid in ben úadaib íarom, a nnád-fetatar cia-luid, ocus birt a croíb lee. Leblaing in chroíb di láim Brain co mboí for láim inna mná, ocus ní-boí nert i lláim Brain do gabáil inna croíbe.

 

[32] Luid Bran íarom ara bárach for muir. Trí nónbuir a lín. Oínḟer forsna trib nónburaib dia chomaltaib ocus comaísib. Óro-boí dá láa ocus dí aidchi forsin muir co n-acc(a)i a dochum in fer isin charput íarsin muir. Canaid in fer ísin tríchait rand n-aile dó, ocus sloindsi dó, ocus as-bert ba hé Manannán mac Lir, ocus as-bert boí fair tuidecht i nÉrinn íar n-aimseraib cíanaib, ocus no-gigned mac óad, .i. Mongán mac Fiachnai, is ed forid-mbíad.

 


[33] Caíne amrae lasin mBran

       ina churchán tar muir nglan;

       os mé im charput do chéin,

       is mag scothach imma-réid.

 

[34] A n-as muir glan

       don noí bro(i)nig i-tá Bran,

       is mag meld co n-immut scoth

       damsa i carput dá roth.

 

[35] At-chí Bran

       lín tonn tibri tar muir glan;

       At-chíu cadéin i mMaig Mon

       scotha cennderca cen on.

 

[36] Taitnit gabra lir i sam

       sella roisc ro-ṡiri Bran;

       bru(i)ndit scotha srúaim de mil

       i crích Manannáin maic Lir.

 

[37] Lí na fairci fora-taí,

       geldod mora imme-raí,

       ros-sert buide ocus glass:

       is talam nád écomrass.

[38] Lingit ích bricc ass de brú,

        a mmuir find for n-aicci-siu;

        it loíg, it úain co ndath,

        co cairdi, cen imarbath.

[39] Cé ad-chetha oínchairpthech

        i mMaig Meld co n-immud scoth,

        fil mór d’echaib fora brú

        cen suide, nád aicci-siu.

      

[40] Mét in maige, lín in tṡlóig,

        taitnit líga co nglanbóaid;

        findruth aircit, drep[p]a óir,

        táircet fáilti caich imróil.

 

[41] Clu(i)che n-aímin n-inmeldag

       aigdit fri find-imborbag,

       fir is mná míne fo doss

       cen peccad cen immarboss.

  

[42] Is íar mbarr fedo ro-sná

        do churchán tar indrada,

        fil fid fo mess i-mbí gnóe

        fo braine do beccnoe.

 

[43] Fid co mbláth ocus torad

        fors-mbí fíne fírbolad,

        fid cen erchra[e] cen esbad

        fors-fil du(i)lli co n-órdath.

 

[44] Fil dún ó thossuch dú(i)le

        cen aíss, cen forbthe n-ú(i)re,

        ní-frescam de mbeth anguss,

        nín-táraill int immarbuss.

 

[45] Olc líth do-lluid ind nathir

        cosin n-athair dia chathair,

        saíbsi sec[h] recht i mbith ché

        co-mbu haithbe nád buë.

 

[46] Ron-ort i croís ocus saint

        tresa-nderbaid a ṡoírchlaind,

        ethais corp crín cró péne

        ocus bithaittreb rége.

 

[47] Is recht óabair o mbith ché

        cretem dú(i)le, dermat nDé,

        troíthad  galar ocus aíss,

        apthu anma[e] tria togaís.

[48] Ticfa tessarcon úasal

        ónd Ríg do-rea-rósat,

        recht find fo-glóisfe[a] muire,

        sech bid Día, bid duine.

 

 

Esta é a navegação de Bran, filho de Febal, e a sua viagem, que abaixo se segue.

[1] Foram cinquenta as quadras que, no meio da casa, a mulher vinda das terras de maravilhas cantou a Bran, filho de Febal, quando o seu palácio estava repleto de reis, que não sabiam de onde viera a mulher, uma vez que os taludes estavam fechados.[1]

 

[2] Este é o início da história. Certo dia, Bran tinha ido passear sozinho nas proximidades do seu forte, quando ouviu música atrás de si. Cada vez que olhava para trás, era atrás dele que continuava a estar a música. Por fim, adormeceu com a música, por causa do seu som melodioso. Quando acordou do sono, viu ao seu lado um ramo prateado com flores brancas; e não era fácil distinguir as flores do ramo. Então Bran levou o ramo na mão para o seu palácio. No momento em que a multidão estava no palácio, viram no meio da casa uma mulher com uma estranha veste. Foi então que ela cantou estas cinquenta quadras para Bran, enquanto a hoste as ouviu e todos viram a mulher.

 

[3] Um ramo da macieira de Emain,

      tal que excede os conhecidos,[2]

      galhos branco prata sobre ele,

      cílios[3] de cristal com flores.

 

[4] Há uma ilha distante

      em torno da qual refulgem cavalos do mar,[4]

      curso brilhante contra a onda de alvo flanco;

      quatro pés sustêm-na.

 

[5] É um deleite para os olhos, uma extensão gloriosa,

      a planície onde as hostes se exercitam em jogos;

      curach contende contra carro

      na planície a sul de Findarcat.[5]

 

[6] Sob ela, pés de bronze branco[6];

      brilha através de idades de beleza;

      terra formosa através das idades do mundo,

      sobre a qual chove uma miríade de flores.

 

[7] Ali há uma árvore antiga com flores,

      sobre a qual pássaros chamam pelas horas,[7]

      é em harmonia que têm por hábito

      chamar todos em uníssono cada hora.

 

[8] Refulgem fulgores de todas as cores

      através das planícies acolhedoras[8];

      É constante a felicidade, acompanhada por música,

      na planície a sul de Arcatnél.[9]

 

[9] Não são conhecidos lamento nem dolo

      na terra do bem conhecido forte;

      não há qualquer voz rude com aspereza,

      mas antes música melodiosa que atinge o ouvido.

  

[10] Sem sofrimento, sem tristeza, sem morte,

        sem qualquer doença, sem debilidade[10]:

        é o que distingue Emnae,

        não é comum uma maravilha assim.

 

[11] Beleza de uma terra maravilhosa

        cujos aspectos são formosos,

        cuja visão é bela e excelente,

        não é como estar na neblina.

  

[12] Se visses depois Aircthech

        sobre o qual chovem dracôntias[12] e cristais,

        o mar precipita contra terra a onda,

        tranças de cristal da sua crina.

 

[13] Riquezas, tesouros de todas as cores

       em Ciúin, não foram eles obtidos?[13]

        ouvindo música melodiosa,

        bebendo vinho delicioso.

  

[14] Carros de ouro ao longo de Mag Réin[14]

       vêm com a cheia em direcção ao sol;

       carros de prata em Mag Mon[15]

       e de bronze sem imperfeição.

 

[15] Lá, no prado, cavalos de um amarelo-dourado,

       outros cavalos com cor púrpura,

       outros cavalos sobre outros[16]

       com a cor do céu todo azul.

 

[16] Vem, ao erguer do sol,

       um belo homem[17] que ilumina a planura;

        percorre a planície brilhante contra a qual bate o mar,

        agita o oceano até se tornar sangue.

 

[17] Vem a hoste sobre o límpido mar,

       em direcção à terra para onde aplica os remos[18];

       remam depois para a grande pedra

       da qual se eleva uma centena de canções.

 

[18] Canta uma melodia para a hoste,

       através de longas eras, e não é triste;

       a música cresce com coros de centenas:

       não esperam decadência nem morte.

 

[19] Emnae formosa virada para o mar,

       talvez seja próxima, talvez distante,

       onde há miríades de mulheres de vestes variegadas;

       cinge-a o límpido mar.

 

[20] Se tiver ouvido o som da música,

       O canto[19] dos passarinhos vindo de Imchiúin,[20]

       vem da altura um bando de mulheres[21]

       para o campo de jogos em que está a música.[22]

  

[21] Chega liberdade com saúde

       à terra para onde se derramam risos;

       a Imchiúin primoroso

       chega perenidade com deleite.

  

[22] É um dia de permanente bonança

       que faz chover prata sobre as terras[23];

       uma alvíssima falésia sobre a beira do mar,

       que recebe do sol o seu calor.

  

[23] A hoste corre a cavalo ao longo de Mag Mon,

       competição bela que não é fraca,

       no campo variegado de desmedida beleza:

       não esperam decadência nem morte.

 

[24] Ouvir música à noite

       e ir para Ildathach[24];

       campo variegado, gema sobre um belo diadema,[25]

       de onde brilha a alva nuvem.

 

[25] Há três vezes cinquenta ilhas distantes

       no oceano a oeste de nós,

       é duas vezes maior do que a Irlanda

       cada uma delas, ou três vezes.

 

[26] Sobrevirá, passados séculos, um grandioso nascimento

       que não será em lugares elevados[26];

       o filho de uma mulher que não conhecerá companheiro,

       que tomará o poder sobre os muitos milhares.

 

[27] Rei sem princípio, sem fim,

       que criou o mundo inteiro,

       dele são a terra e o mar;      

       ai de quem lhe causar desgosto.

 

[28] Foi ele quem fez os céus.

       feliz aquele que tiver coração puro:

       ele purificará as hostes com águas puras,

      será ele a curar as vossas doenças.

 

[29] Não é para todos vós o meu discurso,

       ainda que eu conte a grande maravilha;

       que Bran ouça, de entre a multidão do mundo,

       o que de sabedoria lhe conto.

  

[30] Não caias num leito de ócio;

       que a tua embriaguez não te subjugue;

       dá início a uma viagem sobre o límpido mar

       para saber se alcançarás a Terra das Mulheres.

 

[31] Em seguida a mulher partiu de junto deles, sem que eles soubessem para onde fora, e consigo levou o seu ramo. O ramo saltara da mão de Bran e foi parar à mão da mulher, pois na mão de Bran não havia força para segurar no ramo.

[32] Então, no dia seguinte, Bran partiu sobre o mar. Três grupos de nove homens era o número dos que o acompanhavam.[27] Um homem de entre os seus irmãos adoptivos, dos que eram da sua idade, à frente de cada um dos três grupos de nove. Quando já estava no mar há dois dias e duas noites, viu um homem num carro vindo na sua direcção sobre o mar. Aquele homem cantou-lhe outras trinta quadras, e disse-lhe o seu nome, disse-lhe que era Manannán, filho de Ler, e que após longas eras era chegado o momento de ele ir para a Irlanda, que dele nasceria um filho, que Mongán, filho de Fíachnae, seria o nome dele. Então cantou-lhe estas trinta quadras:

  

[33] É uma maravilhosa beleza para Bran

       no seu pequeno curach sobre o límpido mar;

       e eu no meu carro à distância,

       é uma planície florida que ele percorre.

 

[34] Aquilo que é um límpido mar

       para a nau com proa em que está Bran,

       é uma aprazível planície com abundância de flores,

       para mim, num carro de duas rodas.

 

[35] Bran vê

       muitas ondas que rebentam sobre o límpido mar;

       Eu vejo-me a mim mesmo em Mag Mon,

       flores sem imperfeição coroadas de vermelho.

  

[36] Refulgem cavalos do mar no verão:

       a vista que Bran alcançou com o olhar;

       as flores vertem uma corrente de mel

       na terra de Manannán, filho de Ler.

 

[37] O esplendor do pélago sobre o qual te encontras,

       a cor brilhante do mar em que remas,

       espalhou amarelo e verde:

       é terra que é firme.

 

[38] Salmões variegados saltam dele,[28] do ventre,

       do mar brilhante que tu percorres com o olhar;

       são vitelos, são cordeiros coloridos,

       amistosos, sem discórdia.

  

[39] Ainda que vejas um só auriga

       em Mag Meld[29] rico em flores,

       há muitos outros cavalos no seu seio,

       que tu não vês.

        

[40] A vastidão da planície, a multidão da hoste,

       Refulgem fulgores com pura glória;

       um belo rio de prata, escadas[30] de ouro,

       provocam a alegria de toda a abundância.[31]

 

[41] Um jogo agradável, muito aprazível,

       jogam-no em bela competição[32]

       sob árvores homens e mulheres plácidos,

       sem pecado, sem transgressão.

 

[42] Foi ao longo do topo dum bosque que navegou

       sobre leivas[33] o teu pequeno curach;

       Há um bosque com fruto[34] onde há beleza,

       sob a proa do teu barquinho.

 

[43] Um bosque em flor e com fruto,

       nos quais há[35] a genuína fragrância da vinha,

       bosque sem putrefacção, sem defeito,

       onde há folhas cor de ouro.

  

[44] Nós somos desde o princípio da criação

       sem idade, sem corrupção da juventude,[36]

       não esperamos enfraquecer,[37]

       não nos visita o pecado. 

 

[45] Nefasto o dia em que a serpente chegou

       ao pai na sua sede,[38]

       perverteu-o, além do lícito, neste mundo,

       de modo que passou a existir decadência, que não é original.

 

[46] Destruiu-o com gula e ganância,[39]

       através das quais lhe arruinou a linhagem,

       foi o corpo fenecido para um antro de dor[40]

       e eterna morada de castigo.

 

[47] É a lei do orgulho neste mundo

       acreditar em criaturas, esquecer Deus,

       ser subjugado às doenças e aos anos,

       a morte da alma pelo engano.

 

[48] Virá uma nobre salvação

       do Rei que criou as vastidões,[41]

       uma lei justa que o Senhor porá em movimento,[42]

       ele será tanto Deus quanto homem.[43]

[1] O irlandês les designava o espaço privado contido entre o talude que o delimitava e a casa. Usado aqui no plural, refere-se provavelmente aos taludes.

[2] Perante a interpretação controversa de do-fet, seguimos a opção de Mac Mathúna.

[3] Mac Mathúna prefere traduzir por «folhas».

[4] As ondas.

[5] Prata Branca. Meyer prefere traduzir «in southern Mag Findargat», «no sul de Mag Findargat». Mac Mathúna chama a atenção para o uso preposicional de des, «a sul de», aqui a reger apenas Findarcat.

[6] findruine, termo de etimologia e significado controversos. Possivelmente electro.

[7] Horas canónicas.

[8] Composto de interpretação problemática. Meyer edita como móithgretho, «de voz suave». Mac Mathúna vê naquela opção uma interpretação errónea do sinal de lenição (cf. p. 143) e prefere a concordância de dois manuscritos que apresentam a lição moíthgnatha, «suavemente familiares», que aqui traduzimos tentativamente por «acolhedores».

[9] Nuvem Prateada.

[10] indgás: refere-se especificamente à debilidade decorrente de uma ferida.

[11] Forma mais recente de fía.

[12] Tradução tentativa de dracoin, do latim dracontia, tipo de pedra preciosa.

[13] A interpretação de cani-étatha é controversa. Seguimos a opção preferida por Mac Mathúna, interpretando cani como particula interrogativa negativa (lat. nonne), e étatha como 3ª pessoa plural do perfeito, voz passiva, do verbo ad-cota. A outra alternativa, na qual se baseia a tradução de Meyer, lê caíne étatha, beleza de viço, viçosa beleza.

[14] Planície do Mar.

[15] Planície das Proezas.

[16] olaill é lição controversa. Meyer prefere a alternativa de alguns manuscritos, ualann, que associa ao substantivo mais regular oland, «lã», dando a tradução «com lã sobre o dorso». Seguimos aqui Mac Mathúna, ainda que o sentido que resulta da leitura olaill seja obscuro.

[17] Aqui joga-se com os vários sentidos de find: brilhante, louro, belo. Todos eles se aplicam facilmente àquilo que representa este homem, o Sol.

[18] Literalmente, para onde aplica o remar (imram).

[19] A palavra isnach é de difícil compreensão. É aqui interpretada como forma deturpada de esnad.

[20] Topónimo que significa «Muito calmo».

[21] Mac Mathúna edita banchuire, mas traduz o diminutivo banchuiren, «pequeno bando de mulheres», que é lição da maioria dos manuscritos, escolhida também por Meyer. Optamos por traduzir banchuire.

[22] A oração relativa i-tá subentende o sujeito, «música», que recuperamos na tradução.

[23] Preferimos aqui a lição seguida por Meyer, não só por nos parecer ser validada pelos manuscritos, como também por favorecer a construção transitiva de do-snig, paralela à que encontramos na quadra 12.

[24] Topónimo que significa «multicolor».

[25] Lit. «sobre um diadema de beleza».

[26] Passo de interpretação difícil, uma vez que contém a palavra forclethaib, dativo plural de um nominativo forcleth, não atestado na restante literatura conhecida. Mac Mathúna sugere a derivação a partir de cleth, «poste» ou «estaca». Precedido do prefixo for, significaria algo como «sobre postes». Os tradutores, que aqui seguimos, optam pelo sentido figurado «em lugares elevados». Se esta quadra se refere com efeito a Cristo, o seu berço humilde adequa-se a esta expressão.

[27] Lit. «Três grupos de nove era o número deles».

[28] Do mar, referido na quadra anterior.

[29] A «planície aprazível» da quadra 34. Como a expressão mag meld é aqui utilizada em sentido próprio toponímico, preservamos o irlandês.

[30] A origem e significado de dreppa são controversos. Meyer traduz segundo uma interpretação a partir do latim drappus («tecido», «pano»), assumindo porém que esta é uma hipótese duvidosa. Afigura-se-nos mais plausível a interpretação seguida por Mac Mathúna e pelo DIL, que postulam a origem escandinava da palavra, trappa em islandês antigo (dinamarquês trappe e alemão Treppe), com o significado de escada. Mac Mathúna, seguindo Almqvist e Greene (1976), observa que neste contexto a palavra pode significar uma falésia ou encosta inclinada, as margens inclinadas do rio brilhando à luz do sol.

[31] O vocábulo imról, que literalmente significa o acto de beber em grande quantidade, está sobretudo atestado com o sentido figurado de abundância. Preferimos por isso esta opção, já seguida por Meyer, àquela apresentada por Mac Mathúna, que traduz «beget joy at every great feasting».

[32] Verso de difícil interpretação.

[33] O mar como um terreno lavrado pelo barco?

[34] Literalmente, «sob fruto» (fo mess). O vocábulo mess aplica-se de forma generalista a todos os frutos semelhantes à bolota.

[35] A lição f- sníc (for snig), transmitida pelo Livro Amarelo de Lecan e preferida na edição de Van Hamel, poderá ser a original, como reconhece Mac Mathúna, que no entanto não a acolhe no seu texto crítico. O mesmo verbo é usado em [7]. O verso significaria assim «sobre o qual chove a genuína fragrância da vinha».

[36] O vocábulo que aqui traduzimos por «juventude», úire, pode ser genitivo singular de duas palavras distintas: úir, «terra»; ou úire, que exprime a qualidade do que é fresco, novo, e daí, juventude, ou por vezes beleza. A aceitar a primeira hipótese, como Meyer, a tradução seria «sem corrupção da terra», entendendo-se a decomposição do corpo após a morte. Como MacMathúna observa, a escolha desta forma ambígua pode ter sido intencional por parte do poeta, que quis jogar com os dois sentidos possíveis apontando para uma ideia que, no fundo, é a mesma.

[37] Lit., «sem a fraqueza (que vem) da decadência».

[38] A Adão no Paraíso.

[39] Seguimos a interpretação de Mac Mathúna, que lê o n da forma verbal ron-ort (ran-ort) como manifestação da nasalização causada pelo pronome sufixo de 3ª pessoa do singular. Contudo, a leitura divergente de Meyer não nos parece despropositada. Este autor vê no n o pronome sufixo de 1ª pessoa do plural, o que conduz à tradução «Destruiu-nos».

[40] Seguimos aqui Meyer. Mac Mathúna parece interpretar corp crín como um aposto do sujeito contido na forma de 3ª pessoa do singular da forma verbal ehtais.

[41] Sentido literal do neutro plural rea. Mac Mathúna sugere que aqui o substantivo se refira aos céus, traduzindo «who has created the heavens».

[42] O verso é ambíguo pela ambivalência de muire. Traduzimos interpretando muire como o nominativo singular masculino com o sentido de «chefe, senhor». Outra possibilidade seria ver em muire o acusativo plural neutro de muir, «mar». Teríamos assim a tradução alternativa «uma lei justa que agitará os mares». A respeito desta última interpretação, Mac Mathúna relembra o motivo bíblico do poder divino que se manifesta no controlo do mar.

[43] A alusão profética a Cristo é evidente.