— É com desespero que temo, Sue, que aquele teu irmão se vá fazer um efeminado, foi a apóstrofe do bom proprietário rural Michael Howe para a sua bonita filha Susan, enquanto caminhavam uma bela tarde durante as colheitas por umas vielas estreitas e ricamente arborizadas, que curvavam entre os campos murados da sua quinta de Rutherford West, situada naquela parte de Berkshire longe-de-tudo enfaticamente chamada «o País Baixo» por nenhuma outra razão que eu consiga discernir que não o ser precisamente a parte mais acidentada do condado real.
— É com tristeza que temo, Sue, que ele se vá fazer um efeminado! — o agricultor robusto brandiu a pá alta que em tempos lhe serviu de bengala e de sacho, e começou a erradicar vigorosamente os enormes cardos que cresciam ao longo da estrada, como um mero escape para a sua tormenta. — Vais ver que ele vai regressar um completo descarado — disse Michael Howe.
— Ó pai! Não diga isso — replicou Susan. — Por que haveria de pensar tão mal do pobre William, o nosso querido William, que não temos visto nestes três anos? Que mal fez ele ao mundo?
— Que mal, rapariga? Olha para as cartas dele! Sabes bem que te envergonhas quando o carteiro t’as entrega. Papel cor-de-rosa, pois claro, e tinta azul, e um selo com bocados de imitação de ouro sarapintados como se fossem asas de joaninha. Detesto todas as imitações, todos os esquemas: são piores do que veneno – e fedem um odor esquisito, de tal forma que sou forçado a fumar um par de cachimbos extra para me livrar do cheiro. Das últimas vezes, como se esta tolice não fosse suficiente, enfiou esses gatafunhos preciosos numa espécie de embrulho de papel, colados como se de propósito para nos fazer pagar dupla franquia. Chamei-lhe efeminado? Ele é ainda mais fada do lar do que uma mulher.
— Querido pai, todos os rapazes vão ser tolos de uma maneira ou outra; e sabe o que o meu tio diz: que o William é maravilhosamente aplicado para um homem tão novo, e que o patrão está tão satisfeito com ele que agora é supervisor do seu grande negócio. Tem de perdoar um pequeno disparate de um rapaz do campo, atirado de repente para uma loja fina na parte mais colorida de Londres, e com a herança do padrinho a cair-lhe inesperadamente no colo e a torná-lo demasiado rico para um comerciante por conta de outrem. Mas agora vem ver-nos. Teria vindo há seis meses, assim que recebeu este dinheiro, se o patrão o tivesse dispensado; e vai ficar mais sensato antes de voltar para Londres.
— Ele não. Espera; Londes! Por que raio foi ele para Londes? Porque é que não assentou em Rutherford como o pai dele e o pai do pai dele, a tratar da quinta? Que tinha ele que ir fazer para uma loja fina? Um retroseiro-homem, chamam-lhe. O que tinha ele que ir fazer para Londes, pergunto eu? Responda-me a isso, Menina Susan.
— Querido pai, o pai sabe muito bem que quando o Mestre George Arnott foi infortunadamente teimoso sobre o assunto do curso-de-água e o ameaçou pôr em tribunal, jurou que, em vez de casar com o William, a pobre Mary deveria casar com o produtor de malte rico, o velho Jacob Giles; o William, que amava a Mary desde que eram crianças, não aguentou ficar no campo e fugiu para o tio, proibindo-me de alguma vez mencionar o nome dela numa carta; e…
— Ora bem, ora bem! — replicou o pai, um tanto amenizado. — Mas não precisava de se ter feito descarado e dandy por causa de um desgosto amoroso. Bah! — acrescentou o bom agricultor, dando um puxão forte com a pá a um verbasco que calhou estar no seu caminho. — Eu próprio tive um desgosto amoroso, na minha juventude, mas não fugi para me fazer alfaiate. Engravidei outra rapariga da aldeia – a tua pobre mãe, Susan, que morreu há muito – e agarrei-a como um homem. Casei-me com ela num mês, rapariga, e era isso que o Will devia ter feito. Temo que o iremos dar com ele feito um efeminado triste. O Jem Hathaway, o avaliador, disse-me no último dia de mercado que o viu um domingo lá, como-vós-chamais àquilo – no Parque, coberto de anéis, correntes de ouro, e belos veludos – todo verdes e dourados, como o nosso pavão grande. Ora bem! Em breve veremos. Ele chega hoje à noite, dizes tu? Não são mais de seis da tarde p’lo sol, e a carruagem de Wantage não chega antes das sete. Mesmo que lhe emprestem um cavalo e uma carroça em Nag’s Head, não consegue chegar nas próximas duas horas. Então ainda vou tratar de limpar o campo de dez hectares e estarei em casa a tempo de lhe apertar a mão se vier como um homem, ou expulsá-lo porta fora se parecer um dandy. — E o agricultor robusto saiu a passos largos nos seus sapatos remendados, polainas de pele e guarda-pó, com barba de seis dias (era sexta-feira), assemelhando-se prodigiosamente dos pés à cabeça a um homem que cumpriria a sua palavra.
Susan, por seu lado, continuou a seguir as estreitas vielas sinuosas que iam dar a Wantage, percorrendo-as calmamente e compondo enquanto caminhava, meio distraidamente, um ramo com as flores silvestres da estação. A campainha delicada, a fava persistente, a escabiosa azul, as urzes que se reuniam na margem, a elegante campânula alta lilás, os cálices níveos do convólvulo, a nova roseira brava e aquela espécie de clematite que, talvez porque geralmente aponta para a existência de casas na zona, conquistou para ela o nome bonito de alegria-do-viajante, enquanto a mais bonita das flores silvestres, cujo nome é agora tão sentimentalizado que lhe retiraram a beleza, a intensamente azul não-me-esqueças, estavam lá em abundância.
A própria Susan não era muito diferente do seu ramo de flores; doce, delicada e cheia de uma certa graça pastoral. A sua figura leve e airosa adequava-se à expressão doce, que se desfazia em vermelhidões e sorrisos quando ela falava, favorecida pelo contraste dos vivos anéis de cabelo dourados, separados por uma risca na testa branca, e pendurados em longos caracóis junto às bochechas admiravelmente redondas. Sempre bem, mas nunca excepcional, dócil, bem-disposta e modesta, seria difícil encontrar um espécime mais bonito de filha de agricultor inglês do que Susan Howe. Mas de momento a pequena donzela envergava um ar de preocupação que não era hábito das suas feições bonitas e tranquilas; parecia, e estava, cheia de inquietações.
«Pobre William!», assim pensava, «o pai nem sequer atendeu à última carta dele porque o envenenou com almíscar. Pergunto-me como é que o William pode gostar desse cheiro desagradável! E espera o pai que ele desça do cimo da carroça quando em vez disso ele diz que quer comprar uma… uma… (até nos seus pensamentos a pobre Susan não conseguia acertar na palavra, e era obrigada a recorrer à carta almiscarada) britschka – ah, é isso! – ou um droshky; pergunto-me que tipo de coisas são estas. E que só nos visita en passant em viagem, para a qual, estando a cidade tão vazia, e o negócio parado, o patrão o dispensou, e na qual deve estar acompanhado pelo amigo Monsieur Victor… Victor… – não me consigo lembrar do outro nome dele – um perfumista eminente que vive na casa ao lado. Pensar em trazer um francês para aqui, sabendo o quanto o pai detesta a nação toda! Valha-me, valha-me deus! Mas eu conheço o William. Sei porque é que ele se foi embora e acredito que, apesar da dose de adornos e disparates, e de todas as britschkas, droshkies e Victors metidos ao barulho, vai ficar contente por regressar a casa. Lar, doce lar! Até nestas cartas tontas esse sentimento está sempre presente. Terei ouvido uma carroça adiante? Sim! Não! Não consigo perceber. Tudo se parece com o som de rodas quando se espera por um amigo querido! Se conseguirmos que ele se pareça com o que se costumava parecer, e seja o que costumava ser, não nos voltará a deixar nem por todas as belas lojas na Rua Regent ou todas as britschkas e droshkies da Cristandade. O meu pai está a ficar velho, e o William devia ficar em casa», pensou a irmã carinhosa; «acredito piamente que aquilo que deve fazer, ele fará. Além de que - definitivamente já ouço uma carroça agora». Justamente quando Susan chegou a este ponto das suas cogitações, aquele som que lhe havia perseguido a imaginação toda a tarde, o som de rodas a avançar rapidamente, tornou-se mais e mais audível, e foi subitamente sucedido por um estrondo tremendo, misturado com vozes masculinas – uma delas a do seu irmão – a barafustar em duas línguas (porque Monsieur Victor, qualquer que fosse o seu nível de inglês, recorria nesta emergência à língua nativa) as diferentes exclamações de raiva e espanto que é quase certo acompanharem um tombo. Ao virar a esquina na viela, Susan viu pela primeira vez a britschka ou o droshky, o que quer que fosse, que tanto tinha baralhado a sua compreensão simples, na forma de uma pesadona carruagem aberta embelezada com avental e cobertura, virada do avesso junto a um poste do portão, cujas rodas tinham caído. O seu irmão estava de mãos cheias a soltar os cavalos dos tirantes, a repreender o seu companheiro pela má condução, que declarou ter ocasionado o acidente, e a dar-lhe instruções para ir procurar ajuda a uma casa de campo meia milha para trás na estrada que vai dar a Wantage, enquanto ele próprio anunciou a sua intenção de continuar caminho e procurar mais ajuda na quinta. O francês obediente – que, apesar do expectável desalinho que o seu penteado naturalmente poderia ter experienciado no trambolhão que deu, pensou Susan, estava como se o cabelo fosse posto em papelotes todas as noites e oleado todas as manhãs, como se toda a sua elegante pessoa estivesse impregnada das melhores essências, uma espécie de loja ambulante de perfumista, uma caixa de perfume peripatética – afastou-se na direcção indicada, com um ar de submissão costumeira, que mostrava muito claramente que, fosse enquanto proprietário da britschka azarada, ou pela própria força de carácter, William era considerado o líder da presente expedição.
Tendo mandado o camarada embora, William Howe, deixando os corcéis a explorar calmamente a beira da estrada, tomou o caminho para casa. Susan avançou rapidamente ao seu encontro; em poucos segundos o irmão e a irmã estavam nos braços um do outro. Após os mais afectuosos cumprimentos, ambos concordaram sentar-se num bocado de madeira caída junto ao talude – a viela estava delimitada de um lado por uma velha mata –, e começaram a fazer um ao outro as mil perguntas que tanto interessam às crianças de uma mesma casa que estão separadas há muito.
Certamente foram raras as vezes em que a casca áspera e rugosa de um ulmeiro tosco teve a honra de suportar um dandy tão perfeito. Jem Hathaway, o cobrador de impostos, em nada tinha exagerado a magnificência do nosso jovem londrino. Desde sapatos que pareciam ter vindo de Paris na mala do embaixador, ao cabelo encaracolado e o rosto com suíças e bigode (porque o chapéu que teria sido a jóia da coroa estava em falta, provavelmente em consequência da viragem recente), dos pés à cabeça ele estava adequadamente vestido para um baile no Almack’s, ou para uma festa na Casa Bridgewater; mas, ah! Quão desajustado à propriedade antiquada de Rutherford West! A parte de baixo, meias e calças, era da melhor seda entrançada; o casaco era cor de clarete, de um corte que andava na moda; o colete – por falar no belo pavão, esse teria parecido apagado e sombrio perante tamanho esplendor de cor! – o colete encandeou literalmente os olhos da pobre Susan; e os anéis, correntes, botões e broches pareceram à rapariga espantada quase o suficiente para encher uma joalharia.
Apesar de todo este despropósito, era claro para ela por todos os olhares e palavras que não estava enganada em acreditar que William não tinha mudado as ideias nem o temperamento, e que havia um coração caloroso e bondoso debaixo dos adornos. Além disso, ela sentia que, se a magnificência inconveniente pudesse ser posta de lado, as suíças e bigodes retirados, e a sua bela pessoa masculina restabelecida no vestuário campestre em que estava acostumada a vê-lo, o irmão iria então aparecer largamente melhorado na cara e no corpo, mais alto, mais vigoroso, e com uma expressão de inteligência e franqueza deliciosa de se ver. Mas como se livrar dos adornos, do francês e da britschka? Ou como reconciliar o pai com iniquidades que excedem tanto o cheiro a almíscar?
William, por sua vez, tinha pela irmã uma admiração indescritível. Tinha deixado uma risonha rapariga em flor, encontrara uma delicada e encantadora jovem mulher, ainda mais encantadora pelas lágrimas que se misturavam com os seus sorrisos, verdadeiros símbolos da mais pura ternura.
— Estás mesmo contente por me ver, Susy? O pai está bem? Aqui está o velho sítio, com o mesmo aspecto de sempre; casa, feno e eira, não bem à vista, mas sente-se que se pode vê-los ao virar da esquina – e a grande mata mesmo em frente, mais densa e verde do que nunca! Quantas vezes fomos apanhar frutos secos nessa mata! O azevinho alto no portão, com a videira virgem a trepar, e a torcer os seus doces ramos à volta do rebento mais alto, como uma grinalda – tantas e tantas vezes subi ao azevinho para entrelaçar a espiral flutuante no teu chapéu de palha, Menina Susy! E aqui, do outro lado da sebe, está precisamente o campo onde o Hector e a Harebell famosamente deram cinquenta voltas à lebre antes de a matarem, sem sequer a deixarem sair do restolhal. Esses foram dias agradáveis, Susan, apesar de tudo!
— Dias felizes, querido William!
— E temos de ir apanhar frutos secos outra vez, não temos?
— Claro, irmão querido! Só… — Susan parou de repente.
— Só o quê, Menina Susy?
— Só não vejo como é que poderias ir para a mata assim vestido. Pensa como os espinheiros iriam picar e rasgar, e como essa corrente se iria prender nos ramos da aveleira! E quanto a trepar o azevinho nesse belo casaco justo, ou procurar lebres no restolhal nesses delicados sapatos finos, percebes porque é que a coisa está fora de questão. E realmente não acredito — continuou Susan, percebendo que era mais fácil continuar do que começar — não acredito que quer o Hector quer a Harebell te reconhecessem se te vissem assim aperaltado.
William riu-se à gargalhada.
— Não pretendo ir caçar com estes sapatos, garanto-te, Susy. Isto é roupa formal. Tenho um casaco de caça com todos os apetrechos na britschka, que não vai espantar quer a Harebell, quer o Hector, porque é exactamente aquilo com que estão habituados a ver-me.
— Veste-o, então, rogo-te? — exclamou Susy. — Veste-o já!
— Ora, não vou caçar esta noite.
— Não - mas o pai! Ah, querido William, se soubesses o quanto ele detesta adornos, estrangeiros, suíças e britschkas! Ah, querido William, manda embora o senhor francês e a carroça bizarra; corre para a mata e veste a roupa de caça!
— Ah, Susan! — começou William; mas Susan, tendo encontrado coragem suficiente para dar voz às suas queixas, continuou o ataque com um fervor que não admitia qualquer interrupção.
— O pai detesta adornos ainda mais do que a Harebell ou o Hector. Tu conheces as suas ideias rústicas, querido William; acho que recentemente ele tem vindo a detestar mais do que nunca tudo o que parece londrino e ultra-moderno. Nós somos pessoas antiquadas, em Rutheford. Por exemplo, a tua velha amiga, a bonita Mary Arnott, tolera essas futilidades tanto quanto o pai.
— Mary Arnott! Queres dizer a Sra. Giles. Por que me haveria de preocupar com o que ela gosta ou não gosta? — exclamou William, altivamente.
— Quero dizer Mary Arnott, não Sra. Giles, e tu preocupas-te e muito com o que ela gosta ou não gosta — respondeu a irmã, com alguma malícia. — Pobre Mary, quando chegou a semana antes do casamento, sentiu que não conseguia casar-se com o Mestre Jacob Giles; então arranjou maneira de falar com ele a sós e contou-lhe a verdade. Até acredito, embora não tenha nenhum fundamento para o dizer, que ela confessou que não o conseguia amar porque amava outro. O Mestre Giles comportou-se como um homem sensato, e disse ao pai dela que seria muito errado forçar a sua vontade. Ele comportou-se bondosa e sensatamente, já que tentou reconciliar todas as partes, e pôs as coisas em ordem para o casamento que tinha impedido o dele. Naquela altura, o Mestre Arnott não queria nem ouvir falar nisso, e então não te dissemos que o casamento que tomaste como garantido tinha caído. Até há três meses, aquele processo legal odioso ainda estava em andamento, e o Mestre Arnott estava tão violentamente virado contra o pai como sempre. Depois, contudo, ficou doente, e, quando estava às portas da morte, mandou chamar o velho amigo, pediu o seu perdão, e nomeou-o tutor da Mary. E lá está ela em casa – não viria encontrar-se contigo – mas lá está ela, na esperança de te encontrar tal como eras quando te foste embora, e a odiar os franceses, as britschkas, os adornos e o cheiro a almíscar, tal como se fosse filha do pai de verdade. Acredita, querido William, sei o que te tem passado pela cabeça, quase tão bem como se os corações fossem cosmoramas e se se conseguisse ver o fundo deles ao ritmo de uma moeda por olhar. Sei que te foste embora por amor a Mary, e que te entregaste aos adornos de Londres na tentativa de a tirares da cabeça, o que resultou em todo este disparate de britschkas, patilhas, coletes e anéis, só para lhe mostrares o pretendente que tinha perdido ao perder-te – foi por isso, não foi? Bem! Não fiques parado a apertar-me a mão, mas vai ter com o teu amigo francês, que arranjou um homem, vejo, para ajudar a levantar a carruagem tombada. Vai e livra-te dele — disse Susan.
— Como? — exclamou William, rindo-se, perplexo.
— Dá-lhe a britschka — respondeu a irmã —, e manda-os embora juntos o mais depressa possível. Vai ser uma despedida magnânima. Depois leva a tua mala até à mata e troca todo este disparate pelo casaco de caça e o resto que lhe pertence; depois volta e deixa-me aparar essas patilhas o mais rente que as tesouras o deixarem, e vamos para a quinta, para alegrar os corações da Harebell, do Hector, do querido pai, e… de outra pessoa. E não há-de ser culpa dessa pessoa se alguma vez voltares a ir para Londres, ou entrares numa britschka, ou usares uma corrente, ou um anel, ou escreveres com tinta azul em papel cor-de-rosa, enquanto viveres. Agora vai e manda o francês embora — acrescentou Susan, a rir —, e caminhemos juntos até casa o irmão e a irmã mais felizes da Cristandade.