De todas as opções para residência permanente, aquela que me parece mais encantadora é uma aldeia pequena perdida no campo; uma vizinhança pequena, não de mansões finas habitadas por gente fina, mas de casas de campo e casas do tipo das casas de campo, «propriedades de habitação ou bens imóveis», como um amigo meu chama a essas habitações ignóbeis e inclassificáveis, com habitantes cujas caras nos são tão familiares como as flores do nosso jardim; um pequeno mundo só nosso, concentrados e isolados como formigas num formigueiro, ou abelhas numa colmeia, ou ovelhas num curral, ou freiras num convento, ou marinheiros num navio; onde conhecemos toda a gente, todos nos conhecem, interessados em todos, e permitindo-nos crer que todos se interessam por nós. Quão agradável é deslizar nestes sentimentos sinceros resultantes da influência bondosa e inconsciente do hábito, e aprender a conhecer e a gostar das pessoas à nossa volta, com todas as suas peculiaridades, assim como aprendemos a conhecer e a gostar dos cantos e recantos das vielas sombrias e solarengas pastagens comuns por que passamos todos os dias. Até nos livros gosto de uma região circunscrita, assim como gostam os críticos quando falam de unidade. Nada é mais cansativo do que ser levado por meia Europa pelas rodas da carruagem de um herói, ir dormir a Viena, e acordar em Madrid; causa uma fadiga real, um cansaço de espírito. Por outro lado, nada é mais encantador do que nos sentarmos numa aldeia num dos romances deliciosos da Menina Austen, certos de que antes de o deixarmos teremos estabelecido uma relação íntima com cada canto e cada pessoa nele contidos; ou vaguear com o Sr. White[1] na paróquia de Selbourne, e formar uma amizade com os campos e as matas, assim como com os pássaros, ratos, e esquilos que os habitam; ou navegar com Robinson Crusoe até à sua ilha, e viver lá com ele e as suas cabras e o seu escravo Sexta-feira — quanto tememos qualquer recém-chegado, qualquer importação fresca de selvagem ou marinheiro! Nunca nos condoemos sequer por um momento com a necessidade de companhia do nosso herói, e ficamos tristes quando ele escapa —; ou naufragar com Ferdinand nessa outra ilha mais encantadora — a ilha de Próspero, Miranda, Caliban, Ariel e mais ninguém, nenhuma das invenções exóticas de Dryden:  é o melhor de tudo.

E uma vizinhança pequena é tão boa na realidade sóbria desperta como na poesia ou na prosa; uma vizinhança de aldeia, como este lugarejo em Berkshire onde escrevo, uma rua comprida, irregular, sinuosa no fim de uma bela elevação, com uma rua a atravessá-la, sempre cheia de carroças, cavaleiros e charretes, e mais recentemente animada por uma mala-posta de B— para S—, que passou há cerca de dez dias, e que suponho que regresse um dia destes. Há carruagens de todos os tipos hoje em dia; talvez esta seja para uma diligência mensal, ou uma deslocação quinzenal. Vem percorrer a nossa aldeia comigo, leitor cortês? A viagem não é longa. Vamos começar na extremidade mais baixa e seguir colina acima.

A casa de campo arranjada, quadrada, vermelha do lado direito, com o longo jardim bem repleto à beira da estrada, pertence a um cobrador de impostos reformado de uma cidade vizinha; uma pessoa importante com uma mulher agradável; alguém que se gaba da independência e da indolência, fala de política, lê os jornais, detesta o ministro e que apela à reforma. Introduziu na nossa vizinhança pacífica a inovação rebelde de uma festa luminosa por conta da absolvição da Rainha.[2] Protesto e persuasão foram em vão — ele falava de liberdade e de janelas partidas, então todos nos animámos. Oh! Como ele brilhou naquela noite com velas, louro, arcos brancos, papel dourado e uma transparência (originalmente concebida para um lenço de bolso) com um retrato flamejante de Sua Majestade, de chapéu e de penas, em vermelho ocre. Não tinha rival na aldeia, isso todos reconhecíamos; a própria fogueira era menos esplêndida; os pequenos rapazes reservaram os melhores foguetes para serem lançados em sua honra e ele deu-lhes mais meio xelim do que todos os outros. A ele agradar-lhe-ia uma festa luminosa uma vez por mês, visto que não deve ser omitido que, apesar da jardinagem, da leitura dos jornais, de pequenas viagens na sua carroça e das idas à igreja e aos seus encontros, o nosso valoroso vizinho começa a sentir o cansaço da indolência. Debruça-se sobre o portão e tenta aliciar os caminhantes a parar e conversar; voluntaria-se para fazer pequenos trabalhos por todo o lado, queima cerejeiras para curar a praga e descobre e elimina todos os ninhos de vespa da paróquia. Hoje tenho visto muitas vespas no nosso jardim e vou encantá-lo com a notícia. Ele até ajuda a esposa nas suas varredelas e limpezas. Pobre homem! É uma pessoa muito respeitável, e seria muito feliz se acrescentasse uma pequena ocupação à sua dignidade. Seria o sal dos seus dias.

Ao lado da sua casa, embora separada por outro jardim comprido com um caramanchão de teixo na ponta, está a bonita residência do sapateiro, um homem pálido, com ar doente, de cabelo preto, o modelo perfeito da indústria solene. Ali se senta ele na sua pequena loja desde manhã cedo até noite dentro. Um terramoto dificilmente o agitaria: a festa não o fez. Permaneceu imóvel até à última, desde o primeiro acender, passando pela longa chama forte e o lento decair, até a sua solitária vela grande ser a única luz nas redondezas. Não se consegue conceber nada mais perfeito do que o desdém que o homem das transparências e o homem dos sapatos devem ter sentido um pelo outro nessa noite. Havia pelo menos tanta vaidade na assiduidade resoluta como na indolência vigorosa, porque o nosso sapateiro é um homem com meios; emprega três jornaleiros, dois aleijados e um anão, de tal modo que a loja parece um hospital; pagou o arrendamento da sua habitação espaçosa, alguns até dizem que a comprou mesmo; e tem apenas uma bonita filha, uma rapariga de catorze anos, ligeira, delicada, de cabelos claros, a defensora, protectora e companheira de brincadeiras de todos os fedelhos com menos de três anos, que põe a saltar, dançar, que embala e alimenta o dia inteiro. Uma pessoa muito interessante, essa rapariga que adora crianças. Nunca vi ninguém da idade dela que tivesse tão marcadamente esse charme indefinível, a aparência de senhora. Veja-a num domingo na simplicidade do seu vestido branco, e poderia passar por filha de um conde. Também gosta de flores e tem uma profusão de goivos brancos debaixo da sua janela, tão puros e delicados quanto ela.

A primeira casa do lado oposto do caminho é a do ferreiro; uma habitação sombria, onde o sol nunca parece brilhar; escura e fumarenta tanto por dentro como por fora, como uma forja. O ferreiro ocupa uma posição de grande autoridade no nosso meio pequeno, nada menos do que a de polícia. Mas, ai! Ai! Quando surgem tumultos e o polícia é chamado, geralmente é encontrado embrenhado na confusão. Sorte seria a da sua mulher e a das suas oito crianças se não existisse uma taberna na terra: uma inclinação inveterada para entrar por essas portas sedutoras é o único defeito do Sr. Polícia.

Ao lado desta casa oficial está um elegante edifício de tijolo, vermelho, alto e estreito, ostentando, uma por cima da outra, três janelas de guilhotina, as únicas da aldeia, com uma clematite de um lado e uma roseira do outro, altas e estreitas como ele. Essa mansão esguia tem um aspecto belo, refinado. A pequena sala de estar parece feita para a velha empregada de Hogarth e o seu lacaio definhado; para festas de chá e jogos de cartas — apenas caberia uma mesa —; para o ruge-ruge de sedas desbotadas e o esplendor de porcelana antiga; para o deleite de quatro às honras e um pequeno escândalo abafado, discreto entre jogadas; para distinção afectada e fome real. Esta deveria ter sido a sua sorte, mas o destino tem sido pouco favorável: pertence a uma dama roliça, alegre, animada, com quatro crianças gordas rosadas, barulhentas, a própria essência da vulgaridade e da abundância.

Depois vem a loja da aldeia, semelhante às lojas de outras aldeias, com a diversidade de um bazar: um armazém de pão, sapatos, chá, queijo, fitas e bacon; de tudo, em suma, excepto aquela coisa em particular que acontece querermos naquele momento e que é certo que não iremos encontrar. As pessoas são educadas e prósperas, e frugais, não obstante; arrendaram a parte de cima da casa a duas mulheres jovens (uma delas é uma rapariga bonita de olhos azuis) que ensinam às crianças pequenas o A B C e fazem bonés e vestidos para as suas mamãs — são parte professora primária, parte modista. Acredito que vêem o adornar do corpo como uma vocação mais proveitosa do que o adornar da mente.

Separada da loja por um quintal estreito, e em frente à do sapateiro, encontra-se a habitação de cujos moradores nada direi. Uma casa de campo — não — uma casa de miniatura, com muitos anexos, pequenos lugares avulsos, despensas e afins; angulosa, de um encantador dentro-e-fora; um pequeno pátio em tijolo em frente a uma metade e um pequeno jardim florido em frente a outra; as paredes, velhas e manchadas pelo clima, cobertas com alteias, rosas, madressilvas e um grande alperceiro; os caixilhos cheios de gerânios (ah! Lá está o nosso soberbo gato branco a espreitar por entre eles); os armários (o nosso senhorio tem a presunção de lhes chamar quartos) cheios de estratagemas e armários de canto; e o pequeno jardim nas traseiras cheio de flores comuns, túlipas, cravinas, esporeiras, peónias, goivos e cravos, com um caramanchão de alfeneiro, não muito diferente de uma guarita, onde se vive numa deliciosa luz verde e se observa o mais alegre canteiro de flores dos canteiros de flores alegres. Essa casa foi construída de propósito para mostrar como o conforto pode ser confinado a um espaço extremamente reduzido. Bem, não me vou demorar lá mais tempo.

O próximo edifício é um local de importância, a Hospedaria Rose: um edifício caiado, recolhido da estrada atrás do seu belo sinal oscilante, com um pequeno quarto de janela saliente a sair de um lado e formando, com o nosso estábulo do outro, uma espécie de praça aberta que tem a afluência constante de carroças, carruagens grandes e malas-postas. Agora estão lá duas carroças o meu anfitrião está a servir-lhes cerveja no seu eterno colete vermelho. É um homem bem-desenvolvido e corpulento, como prova o seu colete, alargado duas vezes este ano. O nosso senhorio tem uma mulher mexida, um filho prometedor e uma filha, a beldade da aldeia; não tão bonita quanto a linda ninfa da sapataria, e muito menos elegante, mas dez vezes mais arranjada: toda rolos de manhã, como um porco-espinho, toda caracóis à tarde, como um caniche, com mais folhos do que rolos e mais amantes do que caracóis. A Menina Phoebe adequar-se-ia mais à cidade do que ao campo — para lhe fazer justiça, ela tem consciência dessa adequação, e dirige-se à cidade sempre que pode. Foi hoje para B— com o seu mais recente e principal amante, um sargento de recrutamento — um homem tão alto quanto o Sargento Kite, e igualmente impudente. Um dia destes vai agarrar a Menina Phoebe.

Alinhada com a janela saliente está um muro de jardim baixo, pertencente a uma casa em reparação: a casa branca em frente à loja do correeiro, com quatro tílias diante dela e uma carroça carregada de tijolos à porta. Essa casa é o brinquedo de uma pessoa rica, bem-intencionada e caprichosa, que vive a cerca de uma milha dali. Tem uma paixão por imobiliário e, sendo demasiado sensato para interferir com a sua própria habitação, diverte-se a alterar e re-alterar, melhorar e re-melhorar, fazer e desfazer aqui. É uma teia de Penélope perfeita. Carpinteiros e pedreiros têm estado a trabalhar nestes dezoito meses e, contudo, às vezes fico parada a olhar para lá e pergunto-me se realmente foi feita alguma coisa. Uma façanha em Junho passado não deixou, no entanto, qualquer margem para dúvidas. O nosso bom vizinho achou que as limeiras faziam sombra aos quartos, e os tornavam escuros (não havia uma criatura na casa que não os trabalhadores), então mandou despir todas as árvores de todas as folhas. Ali ficaram elas, pobres esqueletos miseráveis, tão nus como o Natal sob o brilho do solstício de Verão. A natureza vingou-se, à sua maneira doce e graciosa: folhas novas despontaram e perto do Natal a folhagem estava tão brilhante como quando foi cometido o ultraje.

Na casa do lado vive um carpinteiro, «conhecido num raio de dez milhas, e merecedor de toda a sua fama» — poucos marceneiros o ultrapassam, com a sua excelente mulher e a pequena filha Lizzy, o brinquedo e a rainha da aldeia, uma criança com três anos de acordo com o registo, mas seis em tamanho e força e inteligência, em poder e em teimosia. Ela controla toda a gente daqui, incluindo a professora primária; expulsa as filhas do fabricante de rodas da sua pequena carroça e fá-las desenhá-la; consegue bolos e chupa-chupas mesmo a partir da montra da loja; obriga os preguiçosos a carregá-la, os tímidos a falar com ela, os sérios a brincar com ela; faz tudo o que quer; é absolutamente irresistível. A sua principal atracção reside na enorme capacidade de amar e na confiança firme que deposita no amor e na benevolência dos outros. Quão impossível seria desapontar a querida rapariga pequena quando ela corre para vos cumprimentar, desliza a sua bonita mão na vossa, olha alegremente para a vossa cara e diz: «Vem!». Tendes de ir: não conseguis resistir. Outro aspecto do charme dela é a sua beleza singular. Juntamente com uma parte considerável da personalidade de Napoleão, ela tem algo da sua forma quadrada, robusta, direita, com os membros mais belos do mundo, uma expressão puramente inglesa, uma alegre face redonda, queimada pelo sol e rosada, grandes olhos azuis alegres, cabelo castanho encaracolado e um maravilhoso jogo de compostura. Também tem atitudes imperiais e adora ter as mãos atrás das costas, ou cruzadas sobre o peito; e às vezes, quando tem uma ponta de timidez, cruza-as no cimo da cabeça, alisando os caracóis brilhantes e parecendo-se tão elegantemente bonita! Sim, a Lizzy é a rainha da aldeia! Não tem senão uma rival nos seus domínios, uma galgo branca de nome Mayflower, muito sua amiga, que se parece com ela em beleza e força, no espírito brincalhão, e quase na sagacidade, e que reina sobre o mundo animal tanto quanto ela sobre o humano. Estão ambas a vir comigo, a Lizzy e a sua «bonita May». Estamos agora no fundo da rua; uma passagem estreita, uma ponte de corda à sombra de limeiras e carvalhos e um fresco lago límpido com ulmeiros suspensos levam-nos ao sopé da colina. Ainda há uma casa ao virar da esquina, acabando na loja pitoresca do fabricante de rodas. A casa de habitação é mais ambiciosa. Veja-se as belas persianas floridas, a porta verde com a aldraba em latão e a pessoa algo cerimoniosa, mas muito educada, que está a despedir-se de um trabalhador com «senhores» e vénias suficientes para um príncipe de sangue. Estes são os aposentos do coadjutor — a sua senhoria chamar-lhes-ia apartamentos; ele vive com a família a quatro milhas dali, mas uma ou duas vezes por semana vem à pequena saleta arrumada para escrever sermões, para casar ou para enterrar, consoante o caso possa requerer. Nunca houve pessoas melhores ou mais bondosas do que o seu anfitrião e anfitriã; há neles uma ponderação de importância clerical, dada a conexão com a Igreja, que é bastante edificadora — um decoro, uma gravidade, uma amabilidade solene. Oh, ver o merecedor fabricante de rodas levar as vestes do seu inquilino num domingo, todo aprumado com o melhor lenço da sua mulher! Ou ouvi-lo a repreender uma criança aos gritos ou uma mulher briguenta! O coadjutor não lhe é nada. Ele foi feito para ser fabriqueiro perpetuamente.

Agora temos de atravessar a viela para a ponte de corda sombria. Aquela bonita casa de campo branca em frente, que se encontra isolada no fim da aldeia num jardim cheio de flores, pertence ao nosso pedreiro, o mais baixo dos homens, e à sua mulher linda, alta: ele, um anão, com a voz de um gigante — até nos sobressaltamos quando se põe a falar como se estivesse a gritar por um trompete falante; ela, a irmã, filha e neta de uma longa linhagem de jardineiros, não sendo ela uma de desprezar. É muito magnânimo da minha parte não a odiar, já que ela me ganha na minha especialidade, nos crisântemos, dálias e ornamentos do género. As plantas dela vivem pela certa; as minhas fazem o triste truque de morrer, talvez porque as amo, «não sensatamente, mas demasiado bem», e mato-as com bondade em demasia. A meio da subida está outra casa de campo autónoma, a residência de um oficial e da sua família bonita. Aquele rapaz mais velho, que está pendurado no portão a olhar com intensa admiração infantil para a minha Lizzy, pode ser um modelo para um Cupido.

Quão agradavelmente a estrada serpenteia colina acima, com as suas verdes bordas largas e sebes tão densamente arborizadas! Quão admiravelmente o pôr-do-sol cai naquele talude escavado na areia e toca a granja no topo da elevação! E quão claramente definida e destacada está a figura do homem que está agora a descer! É o pobre John Evans, o jardineiro — um jardineiro excelente até há cerca de dez anos, quando perdeu a mulher e ficou louco. Foi enviado para St. Luke e mandado embora como curado; mas o seu poder e a sua força tinham-se perdido: já não conseguia arranjar um jardim, nem submeter-se ao internamento, nem enfrentar a fadiga de um emprego regular. Então retirou-se para a casa de acolhimento, o lugar dos reformados e factótuns da aldeia, entre os quais divide os seus serviços. A cabeça dele divaga com frequência, decidida num qualquer plano fantástico e impraticável, longe do que se está a passar; mas é perfeitamente inofensivo e cheio de uma simplicidade infantil, um contentamento sorridente, a mais tocante gratidão. Toda a gente é boa para o John Evans, pois há nele muito para se gostar; e o seu desamparo, a sua fragilidade total são um apelo irresistível para todos os melhores sentimentos. Não conheço ninguém que inspire tão profunda e terna compaixão; ele melhora todos à sua volta. É útil, também, dentro do alcance das suas capacidades limitadas; faz qualquer coisa, mas gosta mais de jardinagem e ainda se gaba das suas antigas artes de podar árvores de fruto e cultivar pepinos. Agora, é o mais feliz dos homens, ao ter ficado com a gestão de uma plantação de melões — uma plantação de melões! — que vergonha! Que nome grandioso e pomposo aquele dado a três meloeiros debaixo de uma luz. O John Evans está convencido de que vão dar fruto. Veremos; como disse o chanceler: «Eu duvido.»

Estamos agora precisamente no cume da elevação, perto da casa da colina e do seu bonito jardim. Na borda externa da paliçada, pendurado sobre o talude que orla a estrada, está um velho espinheiro — que espinheiro! Os longos rebentos cobertos com flores níveas, tão delicadas, tão elegantes, tão claras e no entanto tão cheirosas! Falta apenas uma poça debaixo do espinheiro para se conseguir uma reflexão ainda mais encantadora, palpitante e trémula, como um tufo de penas, mais brancas e verdes do que a vida, e mais agradavelmente misturadas com o azul forte do céu. Devia mesmo haver uma poça; mas no relvado escuro, debaixo do talude alto, coroado por aquela magnífica nuvem, há algo que funciona quase tão bem — a Lizzy e a Mayflower no meio de um jogo barulhento, «a trazerem o sol para aquele local sombrio»; a Lizzy a rebolar, a rir, a bater palmas e a brilhar como uma rosa; a Mayflower a brincar à volta dela como um relâmpago de Verão, ofuscando os olhos com viragens repentinas, saltos, ressaltos, ataques e fugas. Corre como uma flecha em torno da adorável rapariga pequena, com o mesmo toque momentâneo com que a andorinha roça na água, e tem exactamente o mesmo poder de fuga, a mesma facilidade e força e graciosidade inigualáveis. Que quadro bonito elas dariam; e que primeiro plano bonito fazem na paisagem real! A estrada sinuosa a descer a colina com uma ligeira inclinação, como aquela da Rua High, em Oxford; uma carroça a subir lentamente, com o cavaleiro a passá-la a trote largo (ah! Lizzy, a Mayflower vai certamente abandonar-te para brincar com aquele puro-sangue!); a meio da descida, mesmo na curva, a casa de campo vermelha do tenente, coberta de trepadeiras, a imagem exacta de conforto e contentamento; mais abaixo, do lado oposto, a casa branca pequena do pedreiro baixo; depois as limeiras e a ponte de corda; depois a rua da aldeia, a espreitar por entre as árvores, cujos topos aglomerados escondem tudo menos as chaminés, os vários telhados e aqui e ali algum ângulo de uma parede; mais à frente, a elegante cidade de B—, com os seus belos campanários e pináculos velhos; toda a vista rodeada por uma série de penhascos brancos e em todas as partes do quadro, árvores tão profusamente dispersas que parece uma pintura de paisagem, com clareiras e aldeias misturadas. As árvores são de todos os tipos e de todas as cores, principalmente o ulmeiro finamente esculpido, de um verde tão vivo e profundo, as pontas de cujos ramos de fora caem com uma nitidez e uma riqueza semelhantes às de uma grinalda, e o carvalho, cuja forma imponente está agora tão esplendidamente adornada pela cor soalheira das folhas novas. Subindo de novo a colina, encontramo-nos naquele charme peculiar da paisagem inglesa, uma pastagem verde comum, dividida pela estrada; o lado direito orlado por sebes e árvores, com casas de campo e granjas irregularmente distribuídas, e interrompidas por uma dupla avenida de carvalhos nobres; o esquerdo, ainda mais bonito, pintalgado por poças de água brilhantes, e ilhas de casas de campo e jardins, afundando gradualmente até aos campos de milho e prados, e uma velha granja, com telhados pontiagudos e chaminés aglomeradas, a espreitar do seu pomar em flor, com as colinas arborizadas atrás. A pastagem comum é a parte mais bonita da vista: metade coberta com tojo baixo, cujas flores douradas reflectem tão intensamente os últimos raios do pôr-do-sol, animada com vacas e ovelhas e dois conjuntos de jogadores de críquete: um de homens jovens, rodeados de espectadores, alguns em pé, outros sentados, alguns estendidos na relva, todos a ter um interesse prazeroso no jogo; o outro, um grupo alegre de rapazes pequenos, a uma distância respeitosa, para quem o críquete mal é animado o suficiente, a gritar, a saltar e a divertirem-se à vontade. Mas os jogadores de críquete e os rapazes do campo são pessoas demasiado importantes na aldeia para serem faladas apenas como figuras na paisagem. Merecem ser apresentados individualmente — ter um ensaio só para eles — e vão tê-lo. Não há o risco de se esquecerem as caras bem-humoradas que se nos deparam nas nossas caminhadas todos os dias.

 

[1] A História Natural e Antiguidades de Selbourne, de White, é um dos livros mais fascinantes jamais escritos. Pergunto-me como é que nenhum naturalista adoptou o mesmo plano.

[2] A absolvição da Rainha Carolina de Brunsvique (1768-1821), casada com o Rei Jorge IV. (N. da T.)

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