Introdução

Preparei esta exposição como uma introdução a um género musical relativamente recente, cujo estabelecimento como género próprio tem seguramente menos de cinquenta anos de idade, embora já existissem ensaios desta prática desde o início do séc. XX. Este género, na sua forma mais extrema, propõe simplesmente o registo do som ambiente de determinado espaço e a sua reprodução e interpretação enquanto obra musical e composição. Estas peças são conhecidas como field recordings ou soundscapes. São diferentes dos registos de sons naturais mais conhecidos, com finalidades esotéricas e apaziguadoras, como registos de som de golfinhos, pássaros ou paisagens naturais bucólicas, e também são diferentes, embora não tanto, dos registos presentes nos bancos de sons usados para a produção sonora e fílmica. As composições soundscape são o oposto destes registos que enunciei. Não se destinam a um relaxamento mental e conseguem mesmo um efeito intenso e perturbante ao transformarem paisagens naturais aparentemente reconhecíveis em objectos estéticos re-interpretáveis. Ao longo desta exposição, quando me refiro a paisagens sonoras naturais não me refiro apenas àquele conceito de natureza que exclui a intervenção antrópica, mas a toda a expressão acústica não directamente influenciada por uma ordem acústica intencional, incluindo paisagens urbanas e industriais, ou seja, todo o som que é produzido no mundo. Embora a proposta possa parecer para uns aborrecida, para outros interessante, quer a nível teórico quer na prática, os produtos musicais daí resultantes são extremamente sensuais, complexos e apaixonantes. É pela sua qualidade enquanto expressão musical e não pela qualidade da teoria por detrás do género que estabeleço o ponto de partida para esta apresentação, embora, como é natural, acabemos também por observar muitas das questões teóricas que estão implicadas.

Em primeiro lugar, será bom relembrar a transformação da tradição musical do ocidente que ocorre no séc. XX, que é provavelmente mais significativa do que aquelas que tinham ocorrido no séc. XIV, com as inovações renascentistas do sistema tonal, e no séc. XVII, com o surgimento do barroco. No séc. XX, as revoluções do modernismo permitem a construção de modelos musicais baseados já não unicamente no sistema tonal mas no estabelecimento de outro tipo de relações, como relações de timbre. É o desenvolvimento tecnológico do registo sonoro que permite a constituição de objectos sonoros portáteis, que são registos de eventos irrepetíveis e cuja fixação em partitura é impossível. Este estado de coisas na música acompanha os desenvolvimentos nas outras artes, e segue uma tendência que podemos sumarizar como um afastamento das relações matemáticas do sistema tonal e uma aproximação a relações estéticas através de outras qualidades do som, ou mesmo através de fundamentos extra-acústicos. Neste ponto, convém lembrar que é preferível ultrapassar a leitura vulgar que aponta como o horror das guerras é reflectido na cacofonia da arte desse início do século, já que não é possível estabelecer uma relação de causa e efeito entre decorrências históricas e culturais, mas apenas eventualmente uma co-relação. De qualquer modo, entre as duas guerras há um intervalo de neoclassicismo, e os vocabulários das novas tradições são assimilados pela grande tradição musical do ocidente, o que nos leva a notar, acompanhando o pensamento do crítico de arte Clement Greenberg, que não se pode falar de rupturas em absoluto (Greenberg, 1960). Esta assimilação de vocabulário acontece tanto na música como nas outras artes.

Ao longo desta exposição abordarei, primeiramente, algumas teorias da música concebidas no período do romantismo, como as de Hanslick e Wagner, passando de seguida a descrever como no séc. XX o desenvolvimento tecnológico do registo sonoro e da electrónica, juntamente com o desenvolvimento das artes no modernismo, permitem não apenas um vocabulário musical novo mas também reinventar a representação na expressão musical, separando a fonte produtora do som e a sua mimese na reprodução. Serão abordados os conceitos de objecto sonoro de Pierre Schaffer, que substitui o registo do sistema tonal, e o conceito do mundo enquanto composição contínua, de John Cage, onde o material interpretável como música ocorre continuamente mas a escuta ocorre intermitentemente. Falarei também da ligação do som ao seu referencial físico e aos outros sentidos. Descreverei ainda como o género de soundscape se constitui e evolui, a partir de 1970, tanto em projectos de ambientalismo acústico como em outros mais específicos de expressão estética, com Murray Schafer, Barry Truax, Annea Lockwood, entre outros. Por último, tentarei determinar o posicionamento deste género como uma forma extrema de música concreta, relacionada com o minimalismo, já que reduz o compositor à mínima intervenção possível, recorrendo também aos conceitos de objecthood de Michael Fried e de mundos possíveis da lógica modal para ajudar a ilustrar e a compreender o processo de criação e de apreciação (embora esta abordagem não seja desenvolvida em profundidade).

 

Hanslick, Wagner, estética e música. Representação. Tom e timbre.

Começarei então com uma descrição das teorias do séc. XIX de Eduard Hanslick e Richard Wagner sobre a relação entre expressão musical e experiência estética. Estas teorias podem ajudar-nos a enquadrar o registo sonoro de soundscapes na tradição musical do ocidente, partindo do princípio, mais uma vez, de que os desenvolvimentos musicais do séc. XX não constituem rupturas absolutas mas disrupções numa continuidade. Por um lado, Wagner entende a música como uma ponte para outras expressões, como a imagem e a palavra, constituindo a definição daquilo que se veio a chamar de música programática, própria de muitos compositores do romantismo e pós-romantismo. Esta teoria concorda com a descrição de Kant, que a antecede, na qual se vê a música como arte inferior pela sua aproximação ao sensitivo e pelo seu afastamento do conteúdo intelectual, que vê como ligado à palavra. Por outro lado, a teoria formalista de Hanslick descreve a expressão musical como auto-suficiente, referindo-se unicamente a si própria, constituindo aquilo a que se veio a chamar de música absoluta. Na perspectiva de Hanslick, um estudo estético da música não pode definir referentes empíricos, embora me pareça que deixe sempre em aberto um referencial metafísico, como representação directa de um uno primordial, da vontade schopenhaureana, ou até como não-representação, como música absoluta numa experiência estética pura. Se as características da expressão musical por si só não apresentam referentes figurativos claros, a possibilidade tecnológica do registo e reprodução de material acústico introduzida no início do séc. XX introduz uma nova distância entre a expressão musical e a sua origem física, permitindo a separação do som da sua fonte original e a consequente concepção da expressão musical como representação de segundo grau, tornando-a potencialmente mais abstracta.

Mesmo sem essa possibilidade tecnológica, a expressão musical implica sempre uma distância entre o seu objecto e a sua causa, conforme observaram vários críticos, como Roger Scruton ou Andy Hamilton,[1] embora, ao contrário de Hanslick, não neguem em absoluto o referencial. Essa distância resulta numa experiência estética acrescida. Se a música não tende à figuratividade da experiência empírica tão claramente como as artes plásticas, a proposta estética da soundscape apresenta um interessante antagonismo. Por um lado, pretende ser uma reprodução acústica tão fiel quanto possível da experiência empírica, e por outro lado propõe a quase total desvinculação do seu referente na interpretação. Assim, a constituição do registo sonoro fornece um novo vocabulário musical e abre a possibilidade a novos tipos de relações entre essas unidades, relações com as quais o sistema musical do ocidente não está preparado para lidar, já que o seu vocabulário primário é constituído por tons, que determinam as variações de timbre, enquanto que a nossa distinção dos sons naturais é feita principalmente através do timbre. Alguns críticos como Scruton e também Stanley Cavell defendem que a expressão musical depende fundamentalmente de relações tonais, que descrevem como relações entre objectos que resultam de uma percepção musical, embora possamos apontar como essas relações não são inerentemente acústicas, ou seja, não decorrem de relações necessárias entre eventos acústicos, mas sim de uma leitura quantitativa das suas propriedades, constituindo assim relações matemáticas.[2] Outros autores, como Arnold Schonberg ou Milton Babbitt, defendem que a tonalidade é uma característica inerente a qualquer som e, sendo assim, todos os sons têm relações tonais, não se podendo falar de atonalidade ou de ausência de relação tonal.[3] Esta discussão não será aqui desenvolvida em profundidade, mas para considerarmos soundscapes como composições teremos de assumir a segunda posição e partir do princípio que quaisquer tonalidades são relacionáveis entre si; ou teremos mesmo de considerar que não são sequer requeridas relações tonais para a constituição de expressão musical, bastando para isso constituir relações de timbre ou de qualquer outro tipo, mesmo até uma relação extra-acústica. Mais à frente analisaremos se as soundscapes se baseiam numa estrutura acústica ou extra-acústica e até que ponto é que existem relações acústicas naturais.

 

Som ambiente. Ruído e objecto sonoro, fundo e objecto. Avulso e individuações.

Assim, a teoria musical desenvolvida no séc. XX cria conceitos como o objecto sonoro e o mundo como composição a partir dessa tendência da música e da arte sonora que aproxima as unidades musicais da paisagem sonora de fundo. E se os vocabulários musicais da tradição do ocidente estão amplamente estudados em áreas de conhecimento próprias e instituídas há muito, o conceito de som ambiente não tem lugar preciso na academia, já que este som de fundo é, como veremos já a seguir, um material empírico avulso sem objectos discerníveis, e são as unidades acústicas da experiência empírica, sons determinados ou as unidades da experiência estética na música que se dispõem mais facilmente à interpretação e à sistematização. Encontramos abordagens ao tema do som ambiente nas áreas da musicologia, da engenharia de som e da audiologia, da psicologia e da sociologia, e do ambientalismo acústico (Truax, 1996). Dada a ausência de uma área de estudo específico, é necessário importar conceitos visuais e espaciais das áreas da geografia, da antropologia e das ciências naturais, como soundscape ou «paisagem sonora», que é derivada da landscape visual; soundmark, expressão que é baseada em landmark; e também conceitos compostos como «geofonia», «biofonia» ou «antropofonia».

É especificamente nas áreas da audiologia e da engenharia de som que encontramos frequentemente essa equivalência entre o conceito do som ambiente e o conceito de ruído. São descritos como uma espécie de paisagem acústica de fundo, primordial, um material avulso que antecede a constituição de objectos. Desse modo, alguns autores definem o ruído como transcendental, no sentido kantiano, uma condição apriorística a partir da qual é possível o objecto sonoro: «Rather, noise is the set of sonic forces that are capable of entering into differential relations with one another in such a way that they surpass the threshold of audibility and become signal» (Cox, 2009). Assim, a escuta daquilo a que temos chamado paisagem sonora é anterior à escuta de unidades acústicas e de construções musicais. Neste modelo, o som é um contínuo que existe como vibração física e que, de acordo com as leis da conservação da energia, está em permanente transformação, o que permite que o som nunca cesse, dissipando-se pelo espaço e transformando-se noutros sons. A este respeito, podemos recuperar algumas observações de Gottfried Wilhem Leibniz sobre a percepção de objectos, quando usa o exemplo do som do mar, referindo como não é necessário identificar objectos perceptíveis como as ondas para constituir a percepção do som do mar. Leibniz distingue então entre uma percepção inconsciente da totalidade do material avulso empírico, pré-individuado, e a constituição consciente de objectos da percepção. Na sua descrição, apenas o divino concebe a unidade, e apesar do sujeito ter acesso à totalidade do material empírico do evento, não o sabe entender como uma unidade. Consegue apenas constituir objectos que nunca se somam na totalidade do material empírico, restando sempre um ruído de fundo não interpretável.

 

Séc. XX, música e arte, urbanidade, modernismo.

Depois da inovação atonal de Arnold Schonberg, no séc. XIX, na continuidade da música romântica e pós-romântica, e dos seus discípulos, como Anton von Webern, encontramos no séc. XX uma diversificação das fronteiras da música que acompanha a revolução modernista em todas as artes. Surge assim o interesse no ruído, na variedade de eventos acústicos extra-musicais e no som como expressão artística extra-musical, tendências que estão associadas à continuidade da revolução industrial no modernismo e à intensificação da vida urbana. Ocorre uma intersecção da música com as outras artes, possibilitada pela tecnologia do registo sonoro. No início do século, surgem várias obras não propriamente de música mas de arte sonora, as primeiras obras de soundscape ou registo de paisagem sonora natural, e também obras de sonificação, que implicam a transformação de outras fontes, como material visual ou dados empíricos em som. Podemos encontrar exemplos destas expressões nas composições ao acaso de Duchamp, na poesia sonora de Raoul Hausmann, em trabalhos sonoros de Jean Dubuffet e Wayne Klein, e no interesse de Luigi Russolo pelo ruído enquanto material artístico. Marinetti e Walter Ruttman, ainda nas primeiras décadas do século, fazem as primeiras montagens com som ambiente das cidades inspiradas nas city symphonies fílmicas da década de 20, como Manhatta (Paul Strand, 1921), Berlin, Symphony of a Metropolis (Walter Ruttman, 1927) ou O Homem da Câmara de Filmar (Dziga Vertov, 1929). Mais tarde, na segunda metade do século, o movimento Fluxus dará continuidade a estas correntes. Assim, as fronteiras entre expressão sonora e expressão musical esbatem-se.

Uma possível distinção entre arte sonora e música apresenta a primeira como não temporal, não programática e tendencialmente site-specific, ao contrário das soundscapes, que são obras portáteis (Demers, 2009). A música, por outro lado, parte de um processo composicional, mas aceitar as soundscapes como música implicará aceitar uma muito limitada intervenção da parte do compositor (Licht, 2009). Este aproximar das fronteiras é descrito por alguns autores como uma libertação do som da imposição musical, mas outros, pelo contrário, entendiam as vanguardas musicais do séc. XX como um processo de radical integração do som na música. Encontramos assim uma linha que vai do acaso de Duchamp, do ruído de Russolo, até às teorias de John Cage, que propõem a inclusão de toda a expressão acústica do mundo no conjunto do material musicalmente interpretável. Assim, estes novos objectos artísticos do início do século abrirão a porta à apreciação estética da paisagem sonora de fundo, constituída por ruído, e permitirão encontrar nela material acústico interpretável musicalmente.

 

A electrónica. Schaffer contra Schafer.

Como já vimos, a atenção à paisagem sonora permitida por estas novas expressões artísticas aproxima o sujeito da fronteira entre fundo e objecto, conseguindo excitações da percepção e fenómenos de estranhamento derivados dessa aproximação à génese do som interpretável. Mas o que permite a separação entre o som e a fonte produtora do som é o aparecimento do registo sonoro, que possibilita a reprodução e, mais tarde, da electrónica, que possibilita a manipulação dos registos como unidades de composição. A expressão musical deixa de ser apenas a representação por si só,  conforme a entendiam Schopenhauer ou Hanslick, e passa a um segundo nível de abstracção, passando a ser também a representação de um evento passado, deslocada da sua ligação à sua origem física. A captura do evento acústico e a sua manipulação através de meios electrónicos facilita também o abandono de um sistema exclusivamente tonal e possibilita o uso do objecto sonoro mimetizável para estabelecimento de outras relações não-tonais.

O advento da música electrónica propriamente dita ocorre na década de 1950, onde irão surgir duas escolas especializadas. Uma, com experiências no estabelecimento da música concreta, com Pierre Schaeffer, a Radiodiffusion Television Française, RTF, em Paris, que se apropria dos sons existentes para a criação de composições. A outra, de Stockhausen, Westdeutscher Rundfunk, wdr, em Colónia, foca-se na criação de novos sons por meio electrónico. Nesta sintetização, as relações matemáticas voltam a ser invocadas, mas desta vez para mimetizarem o som natural ou construírem material sonoro baseado unicamente em variáveis, sem relação com uma fonte acústica original. Estas duas especializações iniciais da aplicação electrónica irão mais tarde, e até hoje, diluir-se na que se veio chamar música electro-acústica, que utiliza material de ambas. Mas é apenas na década de setenta que se vai desenvolver o interesse específico pela paisagem sonora, com o World Soundscape Project, de Barry Truax e Murray Schafer, um projecto de tendência documental, e com o surgimento de composições a partir de elementos de paisagem sonora, com Annea Lockwood e Hildergard Westerkamp. Assim, a eletrónica, além de permitir o registo sonoro, conforme o conhecemos hoje, como condição basilar das soundscapes, permite também o uso desses registos como objectos musicais para a constituição de vocabulários, afastando-se assim de um sistema tonal baseado no alcance dos instrumentos e registável em partitura. Estas inovações tornaram a electrónica um instrumento incontornável.

 

Cage e Schaeffer. O mundo como composição. A escuta acusmática.

É o trabalho de dois compositores que permite o estabelecimento da soundscape como género musical próprio. Além de compositores, são ao mesmo tempo teóricos e as suas composições têm origem em trabalho teórico de vanguarda. Um deles é John Cage, que propõe o mundo como composição, entendendo a música como um contínuo sonoro, enquanto que a escuta ocorre intermitentemente, repetindo aqui um aforismo de Thoreau.[4] Assim, Cage aponta como é a disposição para a interpretação, por parte do sujeito, que permite distinguir entre a expressão acústica do ruído de fundo e a expressão musical. Mais tarde, Pierre Schaeffer, da escola da RTF, usa o conceito de objecto sonoro possibilitado pelo registo como unidade mínima da composição, substituindo o sistema da tonalidade. Para a construção desse vocabulário, propõe uma escuta reduzida ou escuta acusmática, que implica uma disciplina mental de estranhamento do referencial do som, esquecendo a familiaridade e interpretando-o como um objecto unicamente estético. Mas enquanto Cage propõe, nalgumas obras, a insistência na origem do som, relevando-a, como em 4’33’’, Schaeffer propõe o seu distanciamento, tornando o objecto sonoro resultante mais abstracto. Porém, a sua teoria da escuta acusmática parte de vários equívocos. Um é o da interpretação do termo acusmático, que corresponde a um véu que Pitágoras utilizava para separar o docente dos iniciados de modo a que estes se concentrassem no seu discurso, um véu que poderia referir-se à linguagem obscura utilizada, sendo assim figurativo e não literal. A teoria parece supor também a possibilidade de eliminar totalmente o referencial no uso dos sentidos, embora creia que Schaffer não fosse ingénuo nesse ponto. Outro equívoco é o de assumir que a escuta musical tradicional, não-concreta, pressupõe necessariamente conhecimento da origem dos sons, quando isso nem sempre ocorra, nem precise de ocorrer. O conceito é, porém, inteiramente adequado à nova disposição estética que muitas vanguardas do séc. XX pretenderam trazer para a interpretação musical. A escuta reduzida de Schaffer é semelhante à objecthood da proposta do minimalismo, e faz mais sentido quando aplicada estritamente aos sons do quotidiano, que são eventos acústicos identificáveis primariamente com objectos físicos e não como expressões musicais.[5] É apenas através do registo sonoro que a performance da música pode ocorrer neste modo representativo, a partir de sons pré-existentes. Este vocabulário natural já estava disponível, mas a possibilidade de reprodução permite estabelecer esses vocábulos como unidades potencialmente mais abstractas que as representações musicais do sistema da tonalidade, já que são representação mais distante da fonte. Distingue-se assim do minimalismo pictórico ou escultórico por ser uma arte inerentemente mimética.

Mais tarde, na segunda metade do séc. XX, com o advento da composição soundscape, encontramos duas correntes estéticas que se distinguem na sua teleologia, mas que não são antagónicas. Por um lado, Murray Schaffer propõe uma estética do minimalismo e do silêncio, com preocupações eco-acústicas, numa aplicação mais documental, ambientalista e preservacionista do registo de soundscapes, aproximando assim o material acústico da sua origem e acrescentando outros objectivos aos fins artísticos, que também estão presentes. Por outro lado, Pierre Schaffer propõe uma aplicação puramente estética do registo, construindo objectos que se distanciam da sua origem e se tornam composições. A este respeito posso citar Francisco López, cuja prática se identifica com a de Pierre Schaffer, quando pede que os schaferianos de Murray Schafer deixem os schafferianos de Pierre Schaffer terem a mesma liberdade de um pintor na apresentação e na composição da paisagem sonora, sublinhando também que quanto mais relação com a realidade física o objecto tiver, menos artístico será.[6] Esta é, portanto, a corrente assumidamente estética das soundscapes. Francisco López aponta ainda o objecto sonoro e a música absoluta como as mais importantes inovações recentes na história da música, por insuflarem o seu carácter abstracto. Existe assim um contraste entre uma tendência documental e uma tendência de expressão estética pura, mas estas práticas não são absolutas, pois o registo documental tem em si uma expressão estética associada, e o registo sonoro de intuitos estéticos passa também pela expressão documental. Estas duas dimensões constituem esse interessante e inerente antagonismo da soundscape, que existe por um lado como abstracção e por outro como registo tão exacto quanto possível do evento natural.

 

Redução do compositor e abstracção do objecto sonoro

O minimalismo que está implícito na soundscape permite reduzir o acto da composição ao simples registo. Assim, passamos da revolução atonal, no final do séc. XIX, ao advento da electrónica e ao objecto sonoro, em meados do séc. XX, até à soundscape que, na sua forma mais extrema, limita a função do compositor da paisagem sonora natural, constituindo um tipo que composição que se apresenta como uma espécie de música concreta pura. Apesar disso, o género pode mesmo assim incluir obras que envolvam a manipulação de qualidades acústicas do material registado, ou até mesmo o uso de vocábulos acústicos para a criação de uma paisagem sonora de forma artificial, através da composição, reunindo arbitrariamente elementos, ou através da sua diminuição, comprimindo o tempo em que decorrem, ou ainda da sua extensão, distendendo o tempo. Mas a forma mais extrema, a do simples registo, parece contrária à noção de composição e de autoria a que estamos habituados. Apesar disso, o que nos permite definir a soundscape como composição é considerarmos o registo sonoro não como processo neutro mas como processo de selecção, ou montagem, e a respectiva interpretação nele imanente, tornando-o desde logo composição. Aliás, alguns autores preferem referir-se à soundscape não como composição mas como uma mediação de registos, registos que são fenómeno e experiência concreta, ao contrário do sistema tonal que parte de uma base conceptual.[7] A soundscape está assim ligada a uma prática documental, que é indissociável da sua interpretação.

Mas neste ponto convém lembrar que o material acústico escutado no local não é equivalente ao material acústico capturado e reproduzido. Trata-se sempre de uma reprodução mimética cujo valor  estético depende mais da semelhança e não tanto da absoluta imitação. É o que observa Michel Chion, num ensaio sobre relação entre som e imagem, apontando como ocorre na reprodução um desvio de trajectória do objecto sonoro original que altera assim a sua identidade.[8] Tal não é responsabilidade exclusiva dos meios de registo e de reprodução utilizados, pois a prática do registo enquanto mimese da experiência auditiva é um processo subjectivo, atingida através da filtragem dos sons em que teoricamente um sujeito se concentra, seja devido às limitações do meio ou à intervenção do autor, e este critério não é, como é evidente, universal. Gravar não é como ouvir. Assim, o fonógrafo, ou qualquer outro aparelho de registo sonoro, não interpreta como os ouvidos. Se por um lado capta os eventos acústicos dentro da limitação da sua capacidade, por outro lado isso permite uma concentração das propriedades capturáveis desses eventos, sintetizando-os e maximizando-os. Por essa razão, muitos autores de soundscapes usam auscultadores durante a própria recolha para terem acesso directo à representação, e alguns referem como têm mais interesse nesse campo irreal que emerge do campo real. Usam também tipos diferentes de microfones e restante equipamento para cada tipo de material acústico, como por exemplo microfones shotgun para sons específicos de fonte determinada e microfones binaurais para a captura de som ambiente. Tendem ainda a relevar, através de equalização, os sons mais marcantes de um espaço, pretendendo reconstruir aproximadamente a experiência auditiva, e isto acontece com quase todos os registos de soundscape.

Todo este processo, assim, depende tanto do trabalho em estúdio como no campo. Mais uma vez, encontramos aqui o compositor como mediador e a representação acústica como uma interacção com o meio. Alguns autores descrevem o encanto das primeiras gravações que fizeram, enquanto crianças, como um processo de parar o tempo e dominá-lo, ou seja, roubar algo da experiência empírica, que é efémera, e constituí-la como forma fixa. Mas parte deste encanto passa pela distância entre a cópia e o original, entre a representação e a experiência. Assim, no sentido mimético, a representação da soundscape não é uma cópia exacta mas uma representação parcial que reproduz no ouvinte não o evento acústico originalmente experienciado pelo autor, mas uma equivalência da sua paisagem sonora mental, à falta de melhor termo. Esta equivalência analógica é mesmo assim suficientemente próxima em termos figurativos do evento acústico original, ou seja, uma gravação é parecida com o evento acústico. Mas este é sempre uma interpretação. Não existe um registo puro e neutro do som ambiente de determinado local, sendo porém legítimo que vários projectos de preservação acústica tenham inevitavelmente de inventar critérios de objectividade para os seus registos, os quais desconheço se são uniformes ou se diferem de caso para caso, sendo então também arbitrários.

 

Afastar o referencial sem o obliterar. Acústica e tacto.

Como vimos, é a constituição de objectos sonoros, unidades concretas opostas às unidades conceptuais do sistema tonal, juntamente com a equivalência estabelecida entre material sonoro e material musical interpretável, que leva ao advento da forma de minimalismo extremo das soundscapes. Estas manifestações apontam à abstracção da identidade acústica e à maximização da sua distância em relação ao objecto acústico original, inserindo essa identidade num todo esteticamente experienciável. A mimese e a representação, a diferença entre o original e o reproduzido, são processos centrais no conceito da soundscape, tanto no caso de alguns autores que preferem a proximidade à experiência original, tentando mimetizar a experiência acústica no registo, salientando as noções de espaço e de presença, como no caso de outros que acentuam a distância, preferindo encarar o registo como uma outra coisa apreciável por si só. O efeito estético da abstracção de sons familiares é bem-sucedido e resulta numa experiência satisfatória, mas o referencial físico nunca se perde. Não se perde o referencial semântico que parte da experiência e que nos faz reconhecer determinados sons como correspondentes a determinados objectos ou eventos, nem se perde a ligação estreita entre a experiência do som e a concepção do espaço.

A este propósito, alguns autores relembram-nos como o som, que é o sentido ao qual reagimos mais rapidamente, está ligado primeiramente ao tacto e ao mundo físico e só secundariamente à visão, que é tipicamente apontada como o sentido mais central da nossa percepção.[9] A experiência acústica remete necessariamente para uma expressão espacial e táctil, já que as ondas sonoras se propagam por vibração. É assim necessária a relação não só da paisagem sonora mas de qualquer experiência acústica com o espaço e o lugar, o mundo físico que é perceptível primeiramente pelo tacto.[10] Aliás, o tacto funciona de forma complementar também à visão, do qual esta depende para a interpretação tridimensional do conteúdo bidimensional que vemos na retina. Esta concepção de um espaço físico que realizamos perante uma experiência acústica, e que lhe é inerente, é uma espécie de projecção de um campo diferente que determina a interpretação do material acústico. Assim, ao diferir de outras composições ao pretender o registo do som ambiente da maneira mais acrítica possível, a soundscape acentua ainda mais essa projecção de um espaço. Esta espacialidade não se sobrepõe à apreciação da composição através de um critério estético exclusivamente acústico, mas este critério tem sempre imanente um referencial físico. Assim, a soundscape difere ligeiramente da música concreta por não pretender constituir objectos sonoros distantes de uma referencial mas basear-se na representação de um todo acústico que é assumidamente concebido como espaço, seja espaço de uma origem física referenciável ou um espaço mentalmente projectado.

Mas nas soundscapes, mesmo na sua tendência marcadamente documental, o referencial espacial, apesar de imanente, não é absolutamente determinativo da experiência estética, já que a narrativa ou o objecto que daí emergem não são necessariamente uma representação do mundo físico ou visual, mas uma representação que vale por si só. Esta constituição enquanto objecto estético pode ser melhor entendida através do conceito da objecthood, ou como mundo possível. O som, em particular o som natural, é interpretado tanto pelas suas propriedades empíricas como pela sua contextualização, e ambas as interpretações constituem a experiência estética. Perante isto, o projecto acusmático ou da escuta reduzida não se torna descartável. Apesar da subtracção das relações culturais associadas a um vocábulo acústico ser na pratica impossível, é possível modelar as suas imposições à interpretação do conteúdo musical, quer através da limitação dessas referências e da construção de um efeito de estranhamento, como Schaffer propõe, quer através da sua maximização, como em algumas obras de Cage. Neste ponto, convém também sublinhar que a objecthood do minimalismo e a escuta reduzida de Pierre Schaffer são expressões culturais e não conceitos universais que impliquem a redução total da participação do sujeito no processo de interpretação, participação que aliás não é exclusiva a obras do minimalismo, e é universal em toda a percepção.[11]

 

Participação do ouvinte, imaginação.

Como vimos, a experiência estética do minimalismo nas soundscapes não é inteiramente desligada das propriedades culturais do objecto, e uma objecthood absoluta é impossível. A objecthood permite de facto uma disposição para a interpretação, constituindo uma experiência estética de referenciação mais limitada do que a experiência empírica. Nas soundscapes, a subtracção de sistemas musicais familiares e as várias possibilidades de desreferenciação do som tornam o ouvinte mais participativo, usando a imaginação para interpretar e reorganizar ligações entre as unidades sonoras. O ouvinte baseia-se menos na convenção de sistemas pré-existentes, sejam estes sistemas musicais ou sistemas de referencial física. A re-interpretação de um material acústico familiar resulta numa composição activa por parte do sujeito através de pensamentos secundários, que pode ser comparada às palavras cruzadas, onde é realizada uma montagem da linguagem fora do seu domínio comunicacional (Norman, 1996). Assim, enquanto que a interpretação da percepção empírica opera através da dedução, subtraindo elementos da experiência para constituir um todo interpretável, a interpretação da soundscape pretende adicionar novos elementos e novas associações à percepção (Norman, 1996). Mas definir em absoluto a soundscape como uma percepção criativa e a percepção empírica como convencional será demasiado redutor, já que não é necessariamente assim.

Assim, a soundscape existe na fronteira entre representação e estranhamento, estranhamento esse que se aproxima do território do ficcional e do fantástico. A disposição acusmática inverte um meio aparentemente familiar e torna-o re-interpretável. Mas esta experiência da alteridade é apenas intensificada pela disposição do estranhamento, não sendo exclusiva desta disposição, já que qualquer percepção, mesmo despida de ligações óbvias ao contexto empírico, carrega sempre um valor metafórico. O sujeito não tem acesso a uma coisa em si kantiana independente de um estado relacional. Convém neste ponto lembrar a teoria fenomenológica de Husserl, que define como qualquer percepção empírica depende do imaginário. Ou seja, também na apreciação de uma expressão musical baseada em relações tonais o imaginário do sujeito está presente, construindo uma narrativa de causalidade. No caso da soundscape essa participação é intensificada por características naturais da soundscape, como a variedade de distinções de timbre e a desestruturação inerente à paisagem sonora natural. Estas características permitem uma disposição que é absolutamente adequada à proposta acusmática da música concreta.

 

A variedade de vocabulário e a desestruturação intrínseca.

Deste modo, as soundscapes evidenciam essa enorme riqueza, em termos da variedade de vocabulário e desestruturação extrema, da expressão acústica natural enquanto composição. Por um lado, usa a paleta de vocábulos musicais com os limites da produção natural, geofónica, biofónica e antropofónica, de enorme variedade quer em amplitude acústica quer em diversidade de timbre, subordinada sempre aos limites das frequências audíveis, que são fronteiras naturais da experiência acústica. Por outro lado, enquanto que no caso da música tonal a narrativa é construída a partir de relações que não são naturalmente acústicas mas matemáticas, no caso da soundscape não existem de forma evidente relações tonais, relações baseadas em interpretações exclusivamente acústicas ou relações matemáticas aplicadas a outras propriedades do som, deixando que a narrativa seja construída quase exclusivamente pelas contingências do mundo físico. Esta sua fundamentação possibilita uma base não-musical para a construção de relações acústicas estéticas sem uma estrutura exclusivamente acústica. Assemelha-se assim a projectos de sonificação que convertem material de outras fontes em material acústico. Essa origem não acústica das relações estéticas acrescenta ao efeito de estranhamento de que também depende a experiência estética, através da separação entre reconhecimento e interpretação. De maneira inversa, também o estabelecimento de relações acústicas a partir de diferentes fontes do material acústico originará semelhanças entre extremos, afinidades surpreendentes, como uma gravação que se assemelhava ao estalar da madeira numa lareira mas que se tratava do som de um conjunto de pequenos camarões numa gravação subaquática; e o caso de Annea Lockwood, autora de várias obras de mapeamento musical de rios, que chegou a um interesse pelo som dos rios através do som do vidro esmagado.[12]

Dada a superioridade quantitativa, em termos de recursos e de variedade estrutural, de tal composição em relação à música tonal, e que não corresponde necessariamente a uma diferença qualitativa, é fácil tratar-se de uma composição interessante a partir do momento em que se aceitam as regras de associação estética propostas. A partir daí, a natureza ou o mundo têm uma disposição natural para a realização de excelentes composições. Enquanto uma construção musical realizada por processos mentais tem associada sempre uma série de estruturas lógicas e uma paleta de elementos limitados, o objecto musical resultante da composição natural é particularmente assistemático e a sua paleta de elementos de difícil determinação, não sendo porém uma obra produzida por algoritmos matemáticos que simulem o acaso, já que existe, na paisagem sonora natural, um contínuo acústico que deriva de uma base física. Ainda assim, o que determina a qualidade de uma composição pode ser uma estrutura matemática ou lógica presente na soundscape. É difícil descrever como se processa o papel do compositor na construção desse valor qualitativo da soundscape, dado que a sua intervenção é mínima, tornando o processo um pouco esotérico. Muitos passam muitas horas ou mesmo dias num determinado local até se familiarizarem o suficiente com a experiência acústica e saberem quando iniciar o registo. Esta descrição da prática  da soundscape é insuficiente, e não tenho experiência nem conhecimento dos processos com que ela decorre (processos que são, como já referi, um pouco herméticos).

 

Conclusão

Terminarei tentando descrever o que constitui uma composição soundscape e aquilo que a distingue de outras expressões musicais, correndo o risco de falhar devido à falta de formação específica para lidar com o tema e devido ao género ser tão novo que não existe ainda suficiente trabalho crítico nem maturação da sua definição. Numa definição estreita, podemos descrever as field recordings como uma música electrónica, concreta, sem compositor no sentido tradicional. Retém os princípios de investigação acústica e alargamento das fronteiras da definição de música desenvolvidas pelo grupo de Paris e pelo grupo de Colónia, mas anula a necessidade de registo específico de elementos sonoros, objectos ou da sua sintetização. Trata o som como um contínuo espontâneo e separa a intervenção do compositor ao nível elementar, tornando-a mais hermética. Reduz assim a divisão da música em elementos e apresenta-a como uma expressão absoluta e orgânica, à falta de melhor palavra, reduzindo também o critério de exigência estrutural mas mantendo a necessidade de fenómeno, ou seja, não é música sem som. É também uma aproximação à música sacra mas numa forma panteísta, dado que recebe a obra directamente da natureza e tem com ela uma relação de veneração e mistério que também se associa à ecologia e à conservação. Na soundscape não há dissolução do sujeito na composição, já que embora a intervenção em termos composicionais seja muito reduzida, este continua a ver-se como um elemento activo, até com mais atenção do que em música de som intencionalmente ordenado, conforme refere Westserkamp ao apontar a consciência do sujeito como produtor de som, inerente à composição soundscape (Mccartney, 2002).

Os praticantes de field recording são de origens variadas: arquivistas, museólogos, ambientalistas, técnicos de som, artistas de arte abstracta, artistas de arte concreta. São composições que se podem integrar em campos da música extrema, com os quais têm afinidades, como o da música muito ruidosa ou música construída à base de infra-frequências, devido à atenção particular à textura do som que propõem. A variedade e a desestruturação extremas da composição soundscape são úteis, mesmo que não sejam vistas como parte de um género com mérito próprio, para compositores de qualquer género. A partir do momento em que se ultrapassa a barreira da tonalidade, da autoria e até da representação, o objecto musical resultante, se admitido como tal, revela-se imensamente complexo, dificilmente sistematizável, contendo porém elementos sistemáticos, sendo no entanto interpretável. A sua qualidade não-humana, emoldurado pela intervenção do compositor, torna-o mais superficial, para quem não tenha ultrapassado essa barreira, e mais profundo para quem a tenha ultrapassado, permitindo também uma espécie de reconciliação entre um ambientalismo acústico e o humanismo, dado que o sujeito se reconhece na natureza através da interpretação estética do seu estado quase bruto de expressão acústica. Aproxima-se à música absoluta sem referencial exterior de Hanslick ao mesmo tempo que retira os seus objectos da natureza, que tem um conteúdo referencial imanente, constituindo um antagonismo muito interessante.

Mas a emergência do género da paisagem sonora advém do aparecimento da electrónica e da mudança que esta trouxe aos vocabulários musicais utilizáveis, existindo assim como uma extensão incontornável do exercício mimético possibilitado pelo registo sonoro, como expressão extrema da equivalência entre música e objecto sonoro apreciável esteticamente. Neste ponto final, convém mencionar que a electrónica não permite apenas expressões particulares, mas redefine toda a música da contemporaneidade. A grande maioria das produções e recepções de material acústico musical passam por meios electrónicos. Pode dizer-se que hoje podemos ver toda a música como electrónica e todo o compositor na contemporaneidade tem esse factor como inerente. A constituição de objectos sonoros, a reprodução e o envolvimento da electrónica no processo de composição, de registo e no processo de reprodução, é parte não descartável da tradição musical do ocidente, sendo impossível excluí-la enquanto o sistema tonal ou qualquer outro sistema não conseguir substituir o tanto que ela dá à expressão musical.

*

Adenda: a discussão que se seguiu à presente exposição focou-se particularmente na distinção entre tom e timbre, sua descrição técnica e respectivas relações. É notório que o tom fornece um material e uma estrutura mais reconhecível para aquilo que entendemos como música, e o seu uso enquanto vocabulário é mais ou menos universal. Considerou-se, durante a discussão, que isso poderia ser devido ao tom ser registável, enquanto que o timbre, por ser composto de maior complexidade, que leva a uma desistematização, só é registável a partir do momento em que se conseguem realizar registos sonoros e respectivos conceitos de objecto sonoro, substituindo o alfabeto tonal. Não creio que seja só por isso. Existe algo no tom que o constitui como substancialmente diferente do timbre. Várias pessoas de inteligências respeitável, como Scruton e Cavell, descrevem, embora imperfeitamente, a tonalidade e a relação tonal como mais ligadas àquilo que entendemos como música do que outras características acústicas. Analisando as suas características e a génese de cada um destes conceitos, encontramos o tom como vibração pura, quantificável, e por isso registável. O timbre, por outro lado, parece ser sempre uma realização particular da vibração aplicada a um material específico e irrepetível. É possível uma sistematização, mas a sua complexidade torna-a dificilmente legível. Porém, o tom é assim uma característica absolutamente ideal e abstracta. Nunca existe uma tonalidade sem expressão timbral. A expressão que a música tonal procura é, assim, tendencialmente idealista, enquanto que a expressão da música timbral é concreta. Por último, se existe uma experiência estética do som e uma idêntica ou muito semelhante experiência estética do som musical, a categoria de música, associada a uma expressão tonal específica e a relações matemáticas constituídas como tradição, não perde o significado mas torna-se menos relevante.

 

[1] Hamilton, Andy, Aesthetics and Music, p. 7.

[2] Ibid., p. 58.

[3] Arnold Schoenberg, Style and Idea: Selected Writings, p. 283

[4] vd. Cox, 2009.

[5] O conceito de Michael Fried, usado para explicar o Minimalismo, encontra-se descrito em Fried, “Art and Objecthood”, Artforum, 1967.

[6] Vd. López, 1997

[7] Vd. Cusack e López in Cathy Lane e Angus Carlyle, In the Field: The Art of Field Recording, Axminster: Uniformbooks, 2014. e Chattopadhyay, 2012.

[8] Chion, Michel, Sound on Screen. Vd. Chattopadhyay, 2012

[9] Vd. Ford, in Lane e Carlyle, 2014, e Mcartney, 2002.

[10] A este respeito, a filosofia de Edward Casey é referida por alguns autores de soundscapes. Vd. Norman, 1996, Mcartney, 2002.

[11] Vd. Demers, 2009.

[12] Vd. Lane e Carlyle, 2014.

 

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