Impedida de circular na estrada que habitualmente usa para fazer determinado percurso, devido ao facto de ali decorrer uma prova de corrida, uma jornalista portuguesa, que se define como «pessoa normal», culpou os «bandos de viciados em correr» por lhe estragarem a tarde, deixando no ar, enquanto confessava a ira que a possuía naquele momento, a seguinte questão: «por que é que não vão para o campo exibir as suas qualidades?». Para Manuela Moura Guedes (MMG), esta seria uma óptima solução para todos. Afinal, diz, correr no campo «seria mais saudável».[1] A atribuição de culpas a um elevado número de pessoas interessadas em praticar uma actividade não é propriamente uma novidade: existem pessoas que, após saberem que determinada biblioteca ou sala de cinema está completamente lotada, se queixam de haver pessoas a mais a estudar ou a querer ver filmes em vez de se queixarem da escassez de bibliotecas ou do número de lugares da sala de cinema. Houve quem pensasse desta forma durante a Crise da Batata que, em meados do século XIX, vitimou perto de um milhão de pessoas na Irlanda. Para certas pessoas, os problemas são sempre causados pelo facto de haver gente a mais a querer fazer alguma coisa, seja isso correr, estudar, ver filmes ou, simplesmente, comer.[2] Pese embora o seu espírito pouco democrático, este desabafo enfurecido de MMG, tão legítimo como qualquer outro, merece que se lhe dê alguma atenção porque sintetiza algumas das ideias comuns a propósito do running.

O desabafo parece relacionar o comportamento daquelas pessoas com um defeito de carácter comum a todos os que correm: uma tendência para o exibicionismo das virtudes de uma vida saudável. Nesse sentido, aquelas pessoas correriam para fazer a apologia de um estilo de vida no qual, sim, estariam viciadas: serem saudáveis. Para MMG, aquelas pessoas não estão a correr, mas sim a exibir um ideal; são uma espécie de soldados nazis cuja marcha durante uma parada em Berlim é mais uma manifestação de certos ideais, como, por exemplo, a supremacia da raça ariana, do que uma simples marcha. Seguindo esta ideia, o que as separa das pessoas normais, como MMG, não é tanto a actividade que praticam, mas a razão pela qual a praticam.

O que primeiro deve ser notado neste raciocínio é a certeza com que se estabelece que o fim de determinada acção só pode ser aquele e mais nenhum: aquelas pessoas correm para serem saudáveis e mostrar aos outros que o são. Este raciocínio estará certo a respeito de muitos praticantes de running, mas não está certo a respeito de todos. Como praticante de running num grupo com um número significativo de corredores (o Correr Lisboa), sei que este raciocínio nem sequer está certo a propósito da maioria das pessoas que correm com alguma frequência. A não ser que se dê um sentido muito amplo ao conceito vida saudável, o que não parece ser o caso no texto de MMG, não são assim tantos aqueles que correm apenas com o intuito de ter uma vida saudável e serão ainda menos aqueles que o fazem para exibir um ideal. Os motivos que levam pessoas a correr são tão corriqueiros como o saudosismo do ex-atleta que foi obrigado a parar de competir, menos vulgares como o hedonismo do corredor que gosta da sensação física obtida durante a corrida, ou tão inusitados como o de alguém que vê nesta actividade uma forma de homenagear um amigo doente impossibilitado de a praticar. Muitas vezes, parece-me até que existem pessoas que correm apenas porque isso lhes permite explorar com deleite os gadgets e as aplicações tecnológicas desenvolvidas para melhorar a performance desportiva. E se há corredores que vão a todas as provas e que parecem usar o running como desculpa para viajar pelo mundo, outros há que não falham um treino e se recusam a correr em provas. No entanto, a ideia de que as pessoas correm com o objectivo único de se tornarem ou manterem saudáveis está profundamente enraizada na opinião comum, sendo que, frequentemente, se confunde perigosamente boa saúde com um determinado aspecto físico. Deste modo, aquilo que é muitas vezes um efeito de uma actividade é interpretado como sendo o fim dessa actividade. Antes de se pensar que alguém é saudável porque corre, pensa-se sempre que essa pessoa corre para ser saudável.

É notório, porém, que, não obstante o facto de apresentarem um aspecto físico conotado com um bom estado de saúde, este tipo de raciocínio não é aplicado à maioria das pessoas que praticam outros desportos, sejam individuais ou colectivos, pois é raro encontrar alguém que pense que os basquetebolistas, os nadadores ou os alpinistas praticam esses desportos exclusivamente para ter uma vida saudável ou para propagandear determinado ideal. Os praticantes de running parecem, então, prestar-se a uma descrição que é alheia à maioria dos praticantes de outros desportos. Felizmente, a validade dessa descrição é por vezes contestada. É o que me parece acontecer no filme Forrest Gump (Robert Zemeckis, 1994). Quem viu o filme lembra-se, certamente, de que o protagonista atravessa várias vezes os Estados Unidos da América, de costa a costa, a correr. Esta cena famosa problematiza a relação entre a actividade da corrida e os fins dessa actividade de um modo muito interessante, pelo que talvez seja útil para analisar, e contestar, a ideia de que o running é apenas uma actividade que serve como meio para se atingir um certo estado físico ou como acto de propaganda de um ideal de vida.

A cena referida começa com um grande plano dos ténis do protagonista, que lhe foram recentemente oferecidos por Jenny, a sua eterna amada, juntamente com o aviso de que ele os devia usar «just for running». Num movimento igual ao da cena inicial do filme (em que o protagonista, meses depois, se encontra na mesma posição numa paragem de autocarro, mas com estes mesmos ténis excessivamente gastos e sujos), a câmara prossegue num sentido ascendente até focar o rosto perfilado de Forrest Gump, que, numa postura absorta, se encontra sentado num banco no alpendre da sua casa. Abandonando o seu estado contemplativo, Forrest começa subitamente a correr de forma desenfreada até à estrada mais próxima. Chegado à estrada, continua a sua corrida até à cidade e, sem parar, decide atravessar o condado de Greenbow e, posteriormente, todo o estado do Alabama. A corrida prolonga-se até chegar ao Oceano Pacífico, na Califórnia, onde decide dar meia-volta e correr até ao Oceano Atlântico. Lá chegado, volta para trás e continua a correr até à outra costa do seu país. Esta corrida, que dura mais de três anos, é caracterizada por episódios em que Forrest contribui involuntariamente para acontecimentos importantes na história da cultura americana.

Algum tempo depois desta aventura, quando narra esta corrida a uma senhora com quem partilha o banco da paragem de autocarro, Forrest confessa que no momento em que começou a correr não o fez por um motivo particular. Acrescenta ainda que continuou a correr ao longo de tantos quilómetros também sem ter uma razão especial para o fazer. Corria, diz, simplesmente porque lhe apetecia fazê-lo. É esta, aliás, a resposta que dá aos repórteres que lhe perguntam se corre pela paz mundial, pelos direitos das mulheres, pelo ambiente ou pelos direitos dos animais; no fundo, se a sua corrida é uma declaração política. A estes jornalistas parece impossível que a corrida de Forrest não esteja associada a um qualquer fim ulterior, o que causa espanto ao corredor: «They just couldn’t believe that somebody would do all that running for no particular reason». A perplexidade de Forrest advém do facto de os jornalistas não serem capazes de acreditar que aquela corrida era só uma forma de satisfazer um desejo interior, o cumprimento de uma vontade estritamente pessoal. Esta percepção de que aquela corrida não se pode dever apenas à realização de um impulso privado é também partilhada pelos elementos do grupo que, a partir de determinado momento, começam a seguir Forrest para todo o lado, julgando que este corre para expressar um ideal de vida ou proclamar uma filosofia revolucionária qualquer, que ninguém sabe qual é, mas à qual pretendem aderir, tornando-se, assim, discípulos de um mestre que eles próprios conceberam, até ao dia em que Forrest os abandona repentinamente, sem lhes dizer se e como devem prosseguir. A confirmação de que esta jornada pela América consiste apenas num projecto pessoal em que não há espaço para ideais colectivos torna-se ainda mais evidente quando o profeta Gump, de semblante mosaico, cessa a corrida e abre caminho pelo meio do seu povo, numa espécie de correcção do episódio bíblico em que Moisés guia o povo judeu até à Terra Prometida, separando as águas do Mar Vermelho. Esta alusão serve sobretudo para sublinhar as diferenças entre uma jornada completamente pessoal, a de Forrest Gump, e uma jornada colectiva, a de Moisés, pois esta última não obedece a um desejo do profeta, mas sim a uma ordem que lhe é ditada por terceiros (Deus), e visa o bem de uma comunidade mais do que o bem de Moisés.

Mais à frente na narração desta sua corrida de longuíssima distância, contudo, Forrest diz que julga ter percebido o motivo para a sua origem e para a sua continuidade: «My Momma always said you got to put the past behind you before you can move on. And I think that’s what my running was all about». O próprio admitira já que a sua corrida fora significativamente marcada por períodos de natureza meditativa: «I’d think a lot about Momma and Bubba, and Lieutenant Dan, but most of all, I thought about JennyI thought about her a lot». Deste modo, não há como não interpretar esta cena do filme como a representação de uma viagem introspectiva. Aquela corrida parece ser uma espécie de retiro espiritual em movimento, através da qual o herói tenta esquecer o passado para poder seguir em frente. Importa, então, perceber que passado é esse que tem de ficar para trás.

Julgo que é mais urgente, porém, responder a outra questão: por que é que a corrida é a maneira que Forrest encontra para poder seguir em frente e libertar-se do passado? A resposta está relacionada com o facto de ter sido através da corrida que Forrest conseguiu resolver quase todos os problemas da sua vida e porque foi isso que mais vezes lhe foi recomendado por Jenny. Vários episódios parecem corroborar esta ideia. Quando ainda é uma criança com uma deficiência na coluna que o obriga a usar umas talas nas pernas que o impedem de caminhar normalmente, Forrest é atacado à pedrada por outros miúdos. Após a pequena Jenny lhe gritar «run, Forrest!», ele fá-lo tão arrebatadamente que rebenta com as talas e se cura do seu problema de coluna. A partir de então, conta, passou a ir para todo o lado a correr apenas porque isso lhe dava prazer e não por achar que aquelas corridas lhe trariam quaisquer benefícios subsequentes. Curiosamente, durante a adolescência, num episódio de fuga aos mesmos rufias, agora mais velhos, Forrest interrompe o treino da equipa de futebol americano do liceu, entrando a grande velocidade no campo de jogos, o que deixa maravilhados os treinadores, desejosos de aproveitar a extraordinária capacidade física do «local idiot». A sua velocidade aplicada ao futebol americano acabará por levá-lo a um sítio que sempre lhe parecera inacessível devido à sua capacidade intelectual aparentemente débil: a universidade. Mais tarde, antes de partir para a Guerra do Vietname, Jenny pede-lhe que não se arme em herói durante os combates, lembrando-lhe que o melhor que tem a fazer perante o perigo é «just run». Uma vez mais, este conselho de Jenny vai ser decisivo, pois é através da corrida que Forrest se salva a si e a vários companheiros durante um bombardeamento, acto que o levará a ser condecorado pelo Congresso (honra que diz ter recebido apenas porque cumpriu a ordem de Jenny). O que todos estes episódios mostram é que a acção correr não só livrou Forrest de problemas imediatos (ser atingido por uma pedra ou por uma granada), como ainda lhe resolveu, quase miraculosamente, problemas que pareciam crónicos (o defeito na sua coluna, a impossibilidade de frequentar o ensino superior).

Assim se percebe que, em Forrest Gump, o verbo run nunca significa apenas fugir, uma vez que as corridas de Forrest, mesmo quando começam por ser fugas, acabam sempre por extravasar essa definição, na medida em que deixam de ser uma simples retirada para serem o início de investidas aparentemente inconscientes e acidentais sobre qualquer outra coisa. Apesar disso, uma interpretação que confundisse motivos com consequências, como a que vimos anteriormente a propósito de a corrida tornar as pessoas mais saudáveis, seria absurda, pois concluiria que Forrest corria para se curar de um defeito na coluna, para entrar na universidade ou para ser homenageado pelo Congresso.

Perante esta história de vida, não é, então, assim tão estranho que, a dado momento da sua vida, o protagonista considere a corrida como o melhor método para resolver problemas. Quando Forrest se levanta do banco, fá-lo pensando que uma little run talvez o ajudasse a resolver os seus problemas actuais. Todavia, os problemas que o assolam no momento em que o vemos apático a contemplar o vazio antes de iniciar uma longa corrida pelo país não são da mesma natureza que os problemas anteriores e é por isso que a sua resposta não poderá ser exactamente igual: se anteriormente lhe bastara um sprint ou dois para resolver a situação que o atormentava, agora precisará de uma corrida de longa duração para o fazer. Desta vez não há o perigo de ser atingido por uma pedra ou por uma granada, mas sim o desgosto causado pela inexplicável partida de Jenny depois de uma noite romântica entre ambos. O problema que Forrest tem de resolver parece ser o de como continuar a viver sem Jenny, ou, nas suas palavras, o de esquecer o passado para poder seguir em frente. Só que, para Forrest, a ideia de seguir em frente é indissociável de uma resposta pronta à ordem/conselho «run!». 

Pensa-se, geralmente, que o passado a que Forrest se refere é aquele em que viveu na companhia de Jenny, um período que ele próprio descreve como tendo sido o mais feliz da sua vida. Por isso, a corrida pela América é muitas vezes interpretada como a maneira que o protagonista encontra para libertar o seu espírito do tempo perfeito que vivera com a sua amada, de modo a iniciar uma nova etapa na sua vida. Ora, parece-me que Forrest quer realmente libertar-se de um passado para poder seguir em frente, mas que esse passado de que se quer libertar não é aquele relativo ao tempo em que viveu com Jenny, mas sim ao tempo que passou apático entre a partida desta e o momento em que começou aquela corrida. Nesse sentido, Forrest não quer afastar-se de Jenny, mas sim do vazio causado pela ausência dela. Não é, decerto, por acaso que a primeira das seis canções escolhidas para musicar estes cinco minutos de filme é «Running On Empty», de Jackson Browne, sobretudo se atentarmos no trecho que é possível ouvir:

 

Looking out at the road rushing under my wheels
Looking back at the years gone by like so many summer fields
In sixty five I was seventeen and running up one on one
I don’t know where I’m running now, I’m just running on

Running on, running on empty
Running on, running blind
Running on, running into the sun
But I’m running behind

Gotta do what you can just to keep your love alive

 

Apesar de estar emocionalmente na reserva e de não saber para onde vai, Forrest persiste em correr porque, como diz a canção, é isso que lhe permite manter o seu amor vivo. Ainda que quem o veja pense que corre para a frente, into the sun, ele corre, na verdade, para o passado, para o tempo em que foi feliz com Jenny. Também não será certamente por acaso que depois de ouvirmos a confissão de que pensava muito em Jenny e o verso «Gotta do what you can just to keep your love alive» se faça ouvir o refrão de uma canção que diz repetidamente «It keeps you runnin’», da autoria dos Dobbie Brothers. É o amor que sente por Jenny que faz Forrest continuar a correr. Quanto mais corre, mais consegue suprir a ausência da sua amada, o que parece ser confirmado pelos versos da terceira canção que é possível escutar nesta cena, «Got to use my Imagination», de Gladys Knight and the Pipes:

I’ve really got to use my imagination
To think of good reasons
To keep on keepin' on (keep on keepin’ on)

Got to make the best of (best of, best of) a bad situation (bad situation)
Ever since that day (ever since that day) I woke up and found
That you were gone (gone, gone)

Estes versos são particularmente importantes para a compreensão da cena porque me parecem deslocados, uma vez que, de todas as seis canções que se ouvem nesta sequência, são os únicos que não têm referências explícitas à acção de correr ou de se deslocar numa estrada. São versos que visam sobretudo a descrição de um processo psicológico, aquele pelo qual o protagonista está a passar durante a sua corrida. Tendo Forrest admitido que pensava principalmente em Jenny, não custa a perceber quais são as «good reasons» produzidas pela sua imaginação para que lhe seja possível «keep on keepin’on». Quanto mais corre, mais pensa em Jenny, e quanto mais pensa em Jenny, mais corre. Nesta espécie de círculo virtuoso, é esse amor que lhe vai enchendo o depósito que inicialmente estava vazio. Forrest corre para estar mais perto do seu amor e não para fugir dele, algo que é sugerido pelo próprio, na última vez em que os vemos juntos antes da morte de Jenny, quando o protagonista diz à sua amada que estivera sempre com ele durante a sua corrida. O passado que deixa para trás quando termina a corrida e regressa a casa só pode ser, assim, o dos dias vividos após o desaparecimento incompreensível daquela que sempre amou e não o dos dias felizes que passavam juntos. É por isso que quando recebe uma carta de Jenny a pedir-lhe que a vá visitar, parte imediatamente para se encontrar com ela.

Posto isto, se uma corrida pode ser a forma encontrada por alguém para preservar a paixão intensa que teve por uma pessoa que desapareceu, como a cena da longa corrida levada a cabo por Forrest Gump acaba por mostrar, então, são incontáveis e frequentemente insondáveis os motivos que levam as pessoas a correr.

[1] O texto a que me refiro foi publicado na página de Facebook de Manuela Moura Guedes no dia 6 de Janeiro de 2018. Ei-lo na sua totalidade: «Que praga! Esta mania agora das maratonas pela cidade faz vir ao de cima os piores instintos. Só me apetece atropelar estes bandos de viciados em correr que estragam a vida de qualquer pessoa normal com direito a deslocar-se na cidade. Hoje, fim de semana, um percurso que eu demoraria 10 m a fazer levou 1 h e tal! Porque é que não vão para o campo exibir as suas qualidades? Não será muito mais saudável? Deixem-nos a nós em paz a respirar o bom ar da cidade!» Depois de ter sido criticada por alguns dos seguidores da página, MMG apagou o texto. Este, no entanto, já fora republicado por alguns órgãos de comunicação social, entre os quais a revista Flash: https://www.flash.pt/atualidade/nacional/detalhe/moura-guedes-atacada-depois-de-incitar-ao-atropelamento-de-corredores

[2] Como é óbvio, isto não significa que o crescente número de corridas realizadas nas cidades portuguesas não cause problemas àqueles que não estão interessados em praticar aquela actividade, particularmente no que diz respeito ao tráfego automóvel. Estes constrangimentos, todavia, só revelam que as cidades não estavam preparadas para o aparecimento de uma prática que, contrariamente a certas previsões, teima em aumentar no que toca ao número de interessados.

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