Pode medir-se a vitalidade de um poeta pelo modo como a sua influência continua a manifestar-se nos poetas que lhe sucedem. No caso de Alexandre O’Neill, o poeta e tradutor Manuel Resende é, porventura, o autor que, nos últimos anos, mais assumidamente se posicionou como continuador da dicção poética de «Alexandre, o Grande», título de um seu poema que configura, simultaneamente, uma homenagem e um reconhecimento da influência de O’Neill. Assinalando a grandeza deste que se viu como «grande poeta menor» (O’Neill, 1985: 32), Manuel Resende assume a persistência desta influência que pode ser, por vezes, «[i]nconveniente», mas que acaba por revelar-se «sempre fiel amiga»:

Alexandre, meu velho, nunca me abandonaste,
Nem na noite escura, nem no dia claro,
Sempre presente com o teu português suavíssimo;
Daqui te escrevo uma carta que não te mandarei —
E para onde? Onde é essa morada em que estás? O código
   postal? O fax?
Mas porque escorrega esta poesia preguiçosa ou impotente
Para uma falta de ritmo assustadora? Sim, que isto é
   poesia, da mais pura, daquelas que se dirigem aos que
   muito amamos, procurando atingi-los num coração
   indolente, sabendo que não nos ouvem, Alexandre,
   meu deus, e O’Neill.

Os teus versos perseguem-me pelos corredores, agarram-
   -se-me à depressão ou à suspeita alegria para-fora,
   como uma caspa
Inconveniente, mas sempre fiel amiga.
(Resende, 2018a: 144)

Podem os versos de O’Neill perseguir-lhe a escrita, agarrar-se-lhe «como uma caspa / Inconveniente», mas sempre essa caspa acaba sendo bem acolhida, sem constrangimentos, como uma «fiel amiga» (Ibid.). Na poesia de Manuel Resende, o mecanismo da influência não se situa, pois, no plano da angústia ou do confronto, mas no da amizade, no de uma relação amena e fraterna com a tradição literária, muito ao arrepio da proposta de Harold Bloom em A Angústia da Influência. Para o crítico norte-americano, a influência resultaria numa fuga angustiada a um «Pai Poético» (Bloom, 2017: 103) ou num combate levado a cabo por «poetas fortes, figuras maiores com a persistência para lutar, se necessário até à morte, com os seus precursores igualmente fortes» (Ibid.: 63). A influência seria, deste modo, determinada pelas noções de paternidade e de confronto. Pelo contrário, na sua relação com a tradição, a poesia de Manuel Resende é, fundamentalmente, fraternal e convivial. Em entrevista ao Jornal de Letras, questionado sobre a «angústia da influência», Resende responde da seguinte forma: «A Literatura, para mim, não é um combate, é um ato de amor. Aceito todas as influências. Afirmo-me com o que recebo. É daí que vem o gosto pela tradução, a procura de me exprimir e ser outro pela voz alheia» (Resende, 2018b).

A escrita não é um combate, mas um acto de amor pela tradição. O poeta afirma-se ao acolher, amorosamente, todas as influências, como se apenas pudesse reconhecer-se no reflexo daqueles que ama, isto é, daqueles que escreveram antes dele, com quem mantém afinidades e através dos quais procura exprimir-se. Tanto na tradução como na poesia, o poeta afirma-se através do outro, encontra a voz própria por intermédio da voz alheia. É também neste sentido que, em «Casas», Manuel Resende sugere que o poema, como a casa, é simplesmente um lugar onde acolher os amigos, ou seja, os poetas que ama e frequenta: «Quando digo / Estas casas / Digo um abrigo sem muitos apetrechos, / Apenas o sítio onde se recebem os amigos» (Resende, 2018a: 210).

Reconhecemos as marcas deste convívio nos poemas de Poesia Reunida que mais declaradamente aludem a alguns nomes centrais da poesia portuguesa do século XX. Entre eles, Alexandre O’Neill é, porventura, o poeta que merece maior destaque, sendo aquele cuja influência mais frequentemente se faz sentir. No poema «Voltar Para Casa», por exemplo, Resende pergunta-se por que motivo tem uma pessoa de voltar diminuída para casa, «com o coração mirrado nas mãos», seguindo «[p]elo caminho conhecido» de um quotidiano insuportável, e «[c]abisbaixa», numa evidente alusão à «feira cabisbaixa» de O’Neill (O’Neill, 2017: 218):

Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa,
Cabisbaixa?
(Resende, 2018a: 91)

Na primeira estrofe de «Discurso por causa de coisas que podem acontecer», a morte é vista como um assunto íntimo, particular, num passo em que não podemos deixar de notar a presença de O’Neill: «a morte / É uma questão que eu tenho cá comigo» (Ibid.: 115). A semelhança é, evidentemente, com o muito conhecido verso de O’Neill — «Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo» (O’Neill, 2017: 218). A questão de Manuel Resende não é, porém, com Portugal, mas com a «morte lenta, violenta» (Resende, 2018a: 115), à qual o poeta pretende ser poupado e que pode assaltá-lo, a qualquer momento, nos imponderáveis caminhos da História. Assim, a questão que o poeta tem consigo mesmo corresponde, na verdade, a uma questão que mantém com o mundo e com a História:

Deixai-me morrer uma morte minha, europeia, civilizada,
Poupai-me aos SS, que eu sei lá se sou judeu, e se calhar até sou,

[…]

Mas poupai-me à morte lenta, violenta,
Se cair a Bomba, nunca se sabe, afinal, ao menos que caia em cima de mim.
Posso dar a morada,
Mas não quero irradiações.

[…]

Mas, de preferência,
Mas, se possível, deixai-me resolver sozinho
Esta questão comigo.
(Ibid.: 115-116)

Evidente é também a presença de O’Neill em «Dentes Portugueses», soneto de tom humorístico que parece glosar, em certos momentos, desde logo no título, o poema «Um Adeus Português». Em Resende, não é o «adeus» que é «português», mas os «dentes» (portugueses). Trata-se de um adeus aos dentes, de uma despedida, de um «[d]ivórcio que a dentista estrangeira oficia / Num desconsentimento total e feroz» (Ibid.: 185). O poeta despede-se dos dentes arrancados, pese embora a sua [dos dentes] «fidelidade tão à portuguesa, / Feita de tanto golpe baixo, tantas fintas, / Com que me temperastes o prazer da mesa» (Ibid.). Essa «fidelidade tão à portuguesa» parece ecoar a «pequena dor à portuguesa / tão mansa quase vegetal» (O’Neill, 2017: 43). Manuel Resende converte, assim, o poema de O’Neill — um poema angustiado de despedida à amada — num poema faceto de despedida aos seus dentes, em breve extraídos pela dentista.

Até então mais reconhecido como tradutor do que como poeta, em Abril de 2018, Manuel Resende viu publicada a sua obra poética num volume que reunia Natureza Morta com Desodorizante (1983), Em Qualquer Lugar (1997) e O Mundo Clamoroso, Ainda (2004), os três livros de poesia por si publicados ao longo de quase vinte anos, aos quais se acrescentaram ainda alguns poemas inéditos. Esta obra, relativamente à qual houvera até esse momento uma «grande distracção crítica» (Guerreiro, 2018), foi apresentada por António Guerreiro como «uma poesia da hospitalidade, da homenagem, da consciência de que faz parte de uma cadeia de transmissão» (Ibid.). Manuel Resende sabe vir depois das vanguardas (o modernismo, o surrealismo) e de alguns dos maiores nomes da poesia portuguesa contemporânea, e é a partir da consciência do lugar que ocupa nessa «cadeia de transmissão» (Guerreiro, 2018) que vai construir a sua singularidade poética, determinada, em larga medida, pelo modo como assume a sua responsabilidade perante a tradição.

T. S. Eliot sinaliza a tendência geral para louvar num poeta os «aspectos da sua obra em que ele menos se parece com qualquer outro» e para neles ver «o que é individual, o que é a essência peculiar do homem» (Eliot, 1997: 22). No entanto, se nos abstivermos de o fazer, «acharemos frequentemente que não só os melhores, mas os passos mais significativos da sua obra, poderão ser aqueles onde os poetas mortos, seus antepassados, mais vigorosamente afirmam a sua imortalidade» (Ibid.). Neste sentido, importa perceber que a força da poesia de Manuel Resende reside menos nos aspectos diferenciadores do que em semelhanças com uma tradição que «[n]ão pode ser herdada», mas que, pelo contrário, «tem de ser obtida com árduo labor» (Ibid.). Manuel Resende procurou manter com essa tradição uma relação de continuidade, estabelecendo um diálogo profícuo com o passado literário que ganhou forma através de um conjunto de práticas intertextuais (citações, alusões, colagens, homenagens) que acolhem e reelaboram referências de autores fundamentais da literatura portuguesa e estrangeira, sobretudo do século XX, entre os quais Alexandre O’Neill ocupa um lugar preponderante.

Da mesma forma que, para Ruy Belo, «Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais» (Belo, 2009: 339), podemos também dizer que Alexandre O’Neill continua vivo na poesia de Manuel Resende, que soube torná-lo, mais que seu interlocutor, seu contemporâneo. No centenário do seu nascimento, pelas marcas que continua a imprimir nos poetas que lhe sucederam, o mecanismo da influência pode, assim, considerar-se um bom indicador da persistente vitalidade da poesia de Alexandre O’Neill.[1]

 

[1] Este artigo resulta da reelaboração de um subcapítulo da minha dissertação de Mestrado “Ou será o silêncio só que após se segue? História e Resistência na poesia de Manuel Resende” (2023). 

 

Referências Bibliográficas

BELO, Ruy (2009). Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim.

BLOOM, Harold (2017). A Angústia da Influência - Uma Teoria da Poesia, trad. Miguel Tamen, Lisboa, Cotovia.

ELIOT, T. S. (1997). «A Tradição e o Talento Individual», Ensaios de Doutrina Crítica, trad. J. Monteiro-Grillo, com a colaboração de Fernando de Mello Moser, Lisboa, Guimarães Editores.

GUERREIRO, António (2018). «A acção solitária do poema», Público, 25 de Maio de 2018, disponível em https://www.publico.pt/2018/05/25/culturaipsilon/critica/a-accao-solitaria-do-poema-1831171.

O’NEILL, Alexandre (2017). Poesias Completas & Dispersos, ed. Maria Antónia Oliveira, Lisboa, Assírio & Alvim.

________ (1985). «Já não corro atrás de miragens», entrevista de Clara Ferreira Alves, Expresso (Revista), Lisboa, 21 de Setembro de 1985, p. 32.

RESENDE, Manuel (2018a). Poesia Reunida, posfácio de Osvaldo M. Silvestre, Lisboa, Cotovia.

_______ (2018b). «Manuel Resende: Surrealista e mais ainda», Jornal de Letras, entrevista de Luís Ricardo Duarte, 26 de Abril de 2018, disponível em https://visao.sapo.pt/jornaldeletras/2018-04-26-manuel-resende-surrealista-e-mais-ainda/.

_______ (1997). Em Qualquer Lugar, seguido de O Pranto de Bartolomeu de Las Casas, Lisboa, &etc.

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