Publicamos com um novo título a secção § 8 do ensaio «Stirner: Da Nadificação ao Momento Ético da Intimidade Proprietária»; o ensaio foi originalmente publicado na revista Philosophica, 41, em 2013, podendo a versão completa ser lida aqui.
Em Barmen, Friedrich Engels estava certamente a emitir um juízo precipitado quando, em Novembro de 1844, transmitindo a Marx (que se encontrava ainda em Paris) as suas primeiras opiniões acerca da leitura de Der Einzige und sein Eigentum (de que Otto Wigand lhe havia enviado as folhas de impressão), imaginava — embalado, talvez, por alguns vibrantes acordes libertários de Stirner acerca da «associação de egoístas» que haveria de «aniquilar» a «Sociedade» reinante»[1] — que bastaria um certo reviramento, uma Umkehrung, para o incorporar (embora criticamente, e releborado) aos cabedais teóricos da luta que, juntamente com o amigo, havia começado a desenvolver:
Este egoísmo é levado tão ao extremo, tão doido e, simultaneamente, tão consciente de si [ou autoconsciente], que, na sua unilateralidade, não se pode aguentar um instante [sequer], mas tem logo que se converter em comunismo.[2]
Estas ilusões — designadamente, no que se refere ao entendimento do «comunismo» que Stirner, abundantemente, patenteia[3] devem ter sido prontamente dissipadas por Marx assim que leu Der Einzige und sein Eigentum, e comunicadas numa carta que, entretanto, não chegou até nós. Conhecemos apenas a reacção de Engels: «No que diz respeito ao Stirner, estou inteiramente de acordo contigo. Quando eu te escrevi estava ainda demasiado enrredado [befangen] sob a impressão imediata do livro; desde que o deixei pousado e pude meditar sobre ele, acho o mesmo que tu achas.»[4] Quanto ao alcance e ao conteúdo das críticas, é manifesto que eles começariam a encontrar o seu desenvolvimento mais determinado, pouco tempo volvido, já em Bruxelas, no labor conjunto que no manuscrito de Die deutsche Ideologie se depositou.
No entanto, importa não esquecer que — apesar dos complacentes ardores destilados de uma impressão primeira (a que agradáveis recordações da anterior convivência berlinense no grupo dos Freien não teriam sido de todo alheias) — Engels pode igualmente, de caminho, ter surpreendido uma articulação central, que, porventura, e numa leitura benigna (que alguns não deixarão de taxar de benevolente), fornece a chave de acesso ao que de mais fundo Stirner havia, porventura, pretendido comunicar: «E verdadeiro é decerto aí isto: que nós temos, primeiro, que nos apropriar de uma causa como [causa] nossa, que a tomar [uma] causa egoísta, antes de podermos fazer alguma coisa por ela.»[5]
De facto, Max Stirner — embora, à sua maneira, e enfunando-a numa teorização geral recheada de desmesurada unilateralidade delirante, mitificadora de fundamentos e mistificadora dos comportamentos — faz emergir e aponta, não obstante, para a dimensão da experiência radical de uma demanda de assunção subjectiva do viver.
Trata-se, na verdade, de uma plataforma vivencial que, certamente a partir de outros supostos materiais, e articulada como horizonte de uma concreção histórica em desenvolvimento, tem que ser compreendida — e que ser compreendida de uma maneira bem diferente. No entanto, não é, em rigor, de modo algum, legítimo, ou possível, descartar liminarmente essa dimensão, na medida em que corresponde a um «registo» e a uma «tonalidade» que, do interior, acompanha (e, sob muitos aspectos, perspectiva) o empreender determinado dos nossos compromissos vitais.
Na obra de Stirner em apreço, e no seu pensamento, em geral, apesar de todas as torções e devaneios, não estamos apenas perante o grito irrequieto ou lancinante de uma individualidade oprimida por peias societais (económicas, políticas, religiosas, culturais) — mais pressentidas do que verdadeiramente penetradas na sua natureza e dinâmica —, que a golpes de virtuosidade especulativa se procuram exorcismar.
Deparamo-nos, igualmente, aí, ainda que sob traços estetizados que lhe distorcem o viso, com um intento de trazer à luz aquilo que pode- ríamos designar por: momento ético subjectivo — aquela espessura íntima da subjectividade, em que ninguém pensa por mim, age por mim, sente (alegria e dor) por mim.
Contrariamente ao que parece acreditar a generalidade das representações hegemónicas — e, com os seus pregões amplificados, espalha, para efeitos de consabida formatação ideológica das colectividades —, o materialismo não encara a «subjectividade» como um tabu ou como um tema obsceno a evitar, como uma renitência encaroçada a diluir em caldos de gregarismo, como um inimigo a abater.
Para o «materialismo prático» (a expressão encontra eco também em Die deutsche Ideologie) — que, na unidade de um mesmo movimento de demanda, procura reunir compreensão e revolucionamento dos «estados de coisas» encontrados e imperantes[6] —, o problema é outro, e tem outro contorno de estabelecimento.
No que diz respeito a esta dimensão ideológica particular dos processos histórico-sociais, aquilo que está em causa é, sim, uma atitude firme de frontalidade na confrontação crítica com concepções que — directamente, ou com mais rebuscamento de sofisticação, por razões que, no entanto, nunca relevam de uma «pura teoria» abstracta — erigem o «indivíduo» e a instância do «sujeito» (recortados e desligados da concreção deveniente do seu embasamento, envolvências, e dinâmica) em portátil e expeditiva arma de arremesso contra um programa consistente, e consequente, de intervenção prática material na transformação das realidades em processo de que os humanos constituem ingrediência e agência de mediação.
Daí, entre outras coisas, o persistente desafio que se estende (e que, em rigor, jamais deixou de ser colocado) a uma efectiva compreensão materialista da subjectividade — não apenas por razões circunstanciais avulsas (de ornamental curiosidade teórica, ou de preenchimento harmónico de supostas lacunas no sistema), mas porque a sua realidade pulsa do fundo prático do viver.
Como Marx, em confronto aberto com as cogitações do «Único», certeiramente lembrava, «o indivíduo real», que Stirner magnificava na figura estilizada do «Nada», acaba afinal por se constituir como «um algo muito vário»,[7] que — que na, pela„ e com a sua complexidade não impenetrável — tem a sua génese material, e um contexto determinado de implantação histórica e de funcionamento, que lhe proporcionam e balizam o campo deveniente de uma afirmação e de uma intervenção livre.
Liberdade — não é ausência de determinações. É autodeterminação no enfrentamento e na modelação de condições — herdadas, circundantes, e em processo de transformação sempre vibráteis.
Não há individualidade caída do Céu, para amarar, pronta e equipada, nas águas acolhedoras de uma «consciência» que lhe passa a servir de paramento. Como Marx e Engels lembravam, numa formulação com um forte endereço ontológico (e não apenas gnosiológico, ou cultural): «A consciência nunca pode ser algo de outro senão o ser consciente, e o ser [Sein] dos seres humanos é o seu processo real de vida.»[8]
Não há individualidade fora, ao lado ou acima, de um elemento — materialmente fundado, e dinâmico — de relacionalidade. É desse, e nesse, horizonte de relacionamentos que a «ipseidade» (sem dúvida, «singular» e «própria») se dá, firma, e manifesta — trabalha e se trabalha, adquirindo densidade e expressando-se em obra.[9]
É num «mundo» (que não é «nosso»), e juntamente (por vezes, em contradição) com outros (de que não somos «proprietários»), que, de um modo não forçosamente «alienado» (por potentes que se insinuem as induções de alienação), vamos construindo — nos «grandes actos» que a memória regista em crónica, como nos quotidianos gestos que passam despercebidos — aquela mediação histórica concreta do ser que (singular e colectivamente, segundo diferentes arrumações da grupalidade) nos mergulha na aventurosa viagem que é viver.
Sem uma demanda de fundada compreensão ontológica do acontecer, na sua intrínseca contraditoriedade deveniente, podem certamente alguns espíritos argutos comprazer-se «em inventar novas frases para a interpretação do mundo subsistente»[10]; mas não é fatal que à lógica «cega», ou «selvagem», do modo instalado e hegemónico de produção e de reprodução do estabelecido nos tenhamos, por demissão (não apenas «política» ou «ética», mas ontológica), de encomendar.
Estas tarefas de reconfiguração e de transformação são decerto — nos seus traços determinantes — comunitárias, e decorrem em condições que não por inteiro se controlam; em caso algum, porém, evacuam ou dispensam — numa individualidade desperta, e empenhada no seu «fazer» (e no seu «fazer-se») — o envolvimento de um momento ético subjectivo, ate porque «na actividade revolucionária, o transformar-se coincide com o transformar das circunstâncias.[11]
No entanto, é sempre conveniente irmos estando precavidos — sobremaneira, os que ao pensar filosófico nos dedicamos — contra um escorregadio perigo que, a cada passo, espreita: «a transformação de colisões práticas (isto é, de colisões dos indivíduos com as suas condições práticas de vida em colisões ideais (isto é, em colisões desses indivíduos com representações que eles se fazem ou que eles se metem na cabeça).»[12]
É que este resvalamento, em regra, a mais não conduz, por abstinência ou debilidade da prática, do que à «canonização do mundo» tal como ele está — ou seja, talvez, como ele se encontra numa outra figura remoçada de aquilo que, em 1842, Stirner designava por «barbárie diplomática».[13]