Ouvir o álbum Laughing Stock é, antes de mais nada, embarcar numa estranha experiência. Vivemos toda a primeira vez desconfiados e de nariz torcido, desesperados à procura de um sentido, de uma ordem no meio do que parece ser uma noite cerrada para a razão. A música invade-nos, sufoca-nos e atropela-nos, mas deixa-nos também, de quando em quando, respirar e ter esperança. Encantados e atraídos pelo mistério, ouvimos o álbum uma segunda e terceira vez, vamos aprendendo o nome de cada faixa, vamos reconhecendo excertos melódicos, mas nada, ainda assim, nos prepara para a sucessão de sons que o compõem. Não existe qualquer réstia de progressão conhecida, não há um II – V – I para nos descansar o ouvido, não há nada que nos resolva a inquietude. Simultaneamente admirados e frustrados, somos tentados a afirmar que, ao menos, o nome do álbum foi bem escolhido.
Quando tomados pela saudade recomeçamos a conviver com este objeto único, percebemos com espanto que começa a haver uma familiaridade estabelecida pela memória. Corajosamente olhando para a letra com atenção, somos incapazes de fechar a boca com o espanto pelo mistério. Reconhecemos o caráter religioso, identificamos as palavras bíblicas e sentimos a concordância da melodia com as poucas metáforas que conseguimos compreender, todavia percebemos também a existência de uma infinitude de coisas das quais não ousamos fazer sentido. A letra está construída de tal maneira que as palavras servem para fazer invocações, alusões que nos remetem para parábolas e histórias bíblicas. A cabeça enche-se de imagens que ficam a pairar, tal como as palavras que Hollis vai soltando num grito ora de angústia, ora de súplica por salvação, ora de tranquilidade.
Talvez tenha sido este o propósito de Mark Hollis e dos inventivos Talk Talk, quando, reunindo-se uma última vez, lançaram Laughing Stock em 1991: inovar trazendo uma música não totalmente passível de ser compreendida, mas que aludisse e despertasse para qualquer coisa de importante. Formada em 1981, a banda inglesa era composta por Mark Hollis (vocalista, guitarrista e pianista), Lee Haris (baterista) e Paul Webb (baixista). O seu primeiro álbum The Party´s Over (1982) mereceu-lhes a atenção do público, sucesso que os dois registos seguintes exponenciaram: It’s My Life (1984), obra que estabeleceu solidamente a banda dentro do synth-pop, e The Colour of Spring (1986), o álbum que talvez mais ouvintes alcançou, colocando-os no auge do sucesso comercial. No entanto, desde o princípio que os Talk Talk exibiam uma tendência mais experimental, rara no tipo de bandas a que eram normalmente associados, nunca se limitando às simples fórmulas pop, nem sequer naquelas canções tão bem-sucedidas entre o público comum. Nas inúmeras e subtis subversões dos lugares-comuns pop de que estão cheios os temas mais explosivos e comerciais como «Talk Talk», «It’s My Life», «Such a Shame», «Life’s What You Make It» ou «Living in Another World» ou na exploração de diferentes aspectos da sua sonoridade em composições mais idiossincráticas como «Hate», «Candy», «Renee», «April 5th» ou «Give It Up» pode-se entrever, embora apenas retrospetivamente, a radical viragem de estilo que se lhes seguiu. Assim que, escudados pela fama e sucesso comercial, obtiveram finalmente a almejada liberdade artística, os Talk Talk dirigiram-se para uma música fortemente experimental, com inspirações jazzísticas, sendo pioneiros no que posteriormente se intitulou de pós-rock, rótulo que serve apenas para agrupar tudo aquilo que, no rock, escapa a qualquer rótulo. Foi nesta altura que os Talk Talk lançaram os seus dois grandes álbuns: Spirit of Eden (1988) e Laughing Stock (1991).
Para Laughing Stock, e compensando com isso a perda do membro significativo que era o baixista Paul Webb, Hollis convidou vários instrumentistas a colaborar com a banda. Estes eram incentivados a realizar improvisações, sem que lhes fosse oferecido o conhecimento da faixa na sua totalidade, a deixarem-se levar e criar o que sentissem adequado no momento. Curiosamente, o ambiente exigido pelo vocalista era tudo menos a tranquilidade e a ausência de regras que esta atitude faz transparecer. Trancando-se durante todo o tempo de gravação, que chegou a perfazer um ano, os músicos trabalhavam frequentemente às escuras. Eram tapadas todas as janelas e removidos os relógios das paredes, a fim de se criar o que Hollis considerava o ambiente propício para a criatividade. Mas mais impressionante ainda foi o trabalho que veio depois. Hollis, completamente sozinho, dedicou-se a ouvir os milhares de horas de gravações e a editar o produto final. Apagando cerca de oitenta por cento do que fora gerado, o vocalista editou com precisão cada minuto, chegando várias vezes a alterar a posição de excertos de solos que originalmente haviam sido pensados para outro lugar.
Se o álbum derradeiro dos Talk Talk permanece, até hoje, impossível de classificar ou assimilar a qualquer coisa de já conhecido é, em grande parte, por este processo de edição, aspeto crucial que deve ser mencionado. Laughing Stock é um objeto único e inimitável, mas não na medida em que isto se diz de um álbum de jazz. Neste género musical o que vale é o acontecimento, a ocasião irrepetível em que um conjunto de músicos dança na espontaneidade do momento, brincando com acordes, introduzindo notas e floreados, criando no segundo e para o segundo. Um álbum aqui serve apenas para conservar o acontecimento único e irrepetível, não consistindo em nada mais do que a gravação da situação.
No caso do Laughing Stock, no entanto, o mesmo já não ocorre. O álbum é, ele próprio, o que se tem de louvar, é uma construção artificial que faz jus ao sentido puro do termo. É uma criação física, palpável, um objeto com o qual se tem de conviver e que foi minuciosamente pensado, com cada som a ser introduzido onde Hollis quis que fosse introduzido. Desta maneira, ouvir o álbum implica conhecê-lo, implica percorrer várias vezes o caminho pensado pela banda. Assim, é no próprio processo de repetição que vamos fazendo a nossa estrada: as horas de convívio com o objeto, tão importantes para que o possamos tentar compreender. Só então é que, enfim, temos a possibilidade de uma luz ao fundo do túnel. Passamos a conhecer o que vem antes e o que vem depois, mesmo que, ainda assim, achemos que não há nada que una as partes. Sabemos que, independentemente do caos e do que nos aparece como aleatório, o caminho foi pensado, e é necessário percorrê-lo para que se dê a verdadeira transformação: a passagem do desconhecido para o conhecido. Este é o grande triunfo do álbum. Afastando-se completamente do comercial, os Talk Talk dedicaram-se com afinco a trazer à vida um objeto palpável, único e que exigisse trabalho para que fosse conhecido e percebido, um álbum no verdadeiro sentido do termo.