O objectivo deste ensaio é dar uma perspectiva geral de um aspecto da interpretação que Cavell faz de Wittgenstein: a sua leitura da posição de Wittgenstein no que diz respeito à relação entre significado e uso. Depois de oferecer uma visão geral deste aspecto da interpretação que Cavell faz de Wittgenstein, tentarei trazer à tona o que nela é mais característico e esquivo, ilustrando, com recurso a alguns exemplos de intérpretes da obra de Cavell, como é fácil perceber mal o argumento de Cavell e — se Cavell estiver certo sobre quem é Wittgenstein — o de Wittgenstein.
Nos últimos anos, Wittgenstein tornou-se bastante famoso por ter proposto algo a que se chama uma «teoria-utilitária do significado». Escreve Wittgenstein:
Para uma grande classe de casos — embora não para todos — do emprego da palavra «sentido» pode dar-se a seguinte definição: o sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem.[1]
Se atentarmos aos comentários à obra de Wittgenstein, veremos que os comentadores têm leituras amplamente distintas do que Wittgenstein está a dizer neste excerto. Eis o que Cavell diz:
«O sentido é o uso» chama a atenção para o facto de que o que uma expressão significa é uma função daquilo que normalmente significa ou quer dizer para seres humanos em situações específicas… Conceber uma história intelectual da atenção da filosofia ao significado de palavras e frases específicas, removidas da consideração sistemática sobre a sua utilização concreta, seria uma tarefa recompensadora… Um título adequado para esta história seria: Filosofia e a Rejeição do Humano…
O objectivo de Wittgenstein… é colocar o animal humano de novo na linguagem e com isto de novo na filosofia… Como eu o interpreto, propôs-se identificar os mecanismos desta rejeição na maneira como ao nos investigarmos somos levados a falar «fora dos jogos da linguagem», a considerar expressões para além de, e em oposição a, formas de vida naturais que dão a essas expressões a força que têm… aquilo que fica fora de uma expressão se for utilizada «fora do seu jogo de linguagem habitual» não é necessariamente o que as palavras significam (podem significar o que sempre significaram, o que um bom dicionário diz que significam), mas aquilo que queremos dizer ao utilizá-las quando e onde as utilizamos. A razão de as termos dito perde-se.
Quão grande é a perda? Mostrar como é um tópico dominante das Investigações. O que perdemos não é o significado das nossas palavras — logo, definições para assegurar ou explicar o seu significado não substituem a nossa perda. O que perdemos é a compreensão total daquilo que estamos a dizer; já não sabemos aquilo que nós queremos dizer.[2]
Quero chamar a atenção para quatro pontos aflorados nesta passagem: (1) a maneira habitual de a filosofia perguntar pelo significado de uma expressão — «[a] atenção da filosofia ao significado de palavras e frases específicas, removidas da consideração sistemática sobre a sua utilização concreta»; (2) a maneira contraditória que Wittgenstein tem de perguntar pelo significado de uma expressão — aquilo que faz com que seja «uma função daquilo que normalmente significa ou quer dizer para seres humanos em situações específicas»; (3) até onde a primeira maneira nos conduz — quando nos envolvemos com a maneira habitual de o filósofo utilizar a linguagem somos levados a falar «fora dos jogos da linguagem»; e (4) o que a segunda maneira espera mostrar-nos — que, quando somos obrigados a falar assim, «já não sabemos aquilo que nós queremos dizer».
Comecemos por (1) e (2). Estabelece-se aqui um antagonismo entre duas maneiras de perguntar pelo significado de uma expressão:
(1) perguntar pelo seu significado removido da consideração sistemática sobre usos concretos (perguntar por aquilo que a palavra ou frase significam);
(2) perguntar pelo seu significado tendo em consideração os seus usos concretos (perguntar pelo significado habitual para os seres humanos da palavra ou frase em situações específicas)
Leitores de Wittgenstein presumem que o que deve estar em causa nesta invocação de «uso» é a relevância de colocar a segunda pergunta além de simplesmente colocar a primeira; ou, para pôr as coisas em termos mais em voga — e por isso mais arriscados: que o que está em causa é a relevância de acrescentar às nossas teorias semântica e sintáctica da linguagem uma terceira camada, uma teoria da pragmática da linguagem natural ou uma teoria de actos de fala. Cavell assume que Wittgenstein pretende instigar algo potencialmente muito mais sinistro para a filosofia da linguagem analítica do que um mero acrescento; especificamente, que «para uma grande classe de casos» não há nada que seja equivalente a fazer a primeira pergunta (perguntar o que significa uma frase) sem considerar em primeiro lugar a segunda pergunta (isto é, sem perguntar: quando poderá ter sido pronunciada? onde? por quem? a quem?).
Olhemos agora por momentos para (4). De acordo com Cavell, Wittgenstein acaba por afirmar algo que se provou ser ainda mais difícil de ouvir para a tradição da filosofia analítica: nomeadamente que quando, sob pressão da filosofia, o significado e o uso se separam, então ficamos sujeitos a um certo grau de ignorância ou perplexidade acerca do que queremos dizer; melhor, ficamos sujeitos a algo (que pode soar-nos como) bem mais contraditório: ficamos sujeitos a uma ilusão de significado. Cavell explica isto dizendo que quando o filósofo chega a uma encruzilhada na sua filosofia, fica sujeito a uma «alucinação de significado»:
Imagina-se a dizer alguma coisa quando não o diz, a ter descoberto alguma coisa quando não o fez. Alguém que se encontre nestas dificuldades específicas pode ser descrito como estando a alucinar aquilo que ele ou ela quer dizer, ou como tendo a ilusão de estar a dizer alguma coisa.[3]
Isto é contraditório na medida em que desafia a intuição fortemente implementada de que no reino do significado esse est percipi: se com as minhas palavras parece que eu quero dizer uma coisa, então, ora essa, quero. O próprio Wittgenstein concede o que lhe parece sensato nesta intuição quando escreve que «uma característica do nosso conceito de proposição é soar como uma proposição».[4] Mas é apenas uma característica do nosso conceito de proposição, e é central para os argumentos de Cavell e de Wittgenstein que a presença desta característica, embora condição necessária para algo contar como proposição, não seja de todo suficiente para tal.
Isto leva-nos até aos numerosos pensamentos-experiência de Wittgenstein, como por exemplo o convite célebre para que o seu leitor tente imaginar uma linguagem privada.[5] Segundo Cavell, Wittgenstein propõe estes convites cuidadosamente arquitectados para que o leitor imagine isto e aquilo, de forma a conduzi-lo na ascensão dos degraus do escada da dialéctica. Quando o leitor chega ao cimo da escada, deve deitá-la por terra: deve ser capaz de conceber que desde o início estava apenas na ilusão de idealizar algo.[6] Mais concretamente, segundo Cavell, aquilo que Wittgenstein quer que compreendamos sobre estes casos é que uma alucinação de significado surge porque idealizamos que transferimos o significado de uma expressão quando fracassámos em transferir o uso. Wittgenstein descreve o tipo de posição estranha que ocupamos em relação às nossas palavras nestes casos em que somos levados a «falar fora dos jogos de linguagem».
Isto leva-nos de volta a (3). A discussão mais fundamentada de Cavell de um exemplo de Wittgenstein sobre como o filósofo é levado a falar «fora de jogos de linguagem» é a do cepticismo epistemológico. O céptico quer avaliar a integridade das nossas pretensões ao conhecimento; mas não é qualquer tipo de pretensão que serve o seu interesse. Para os intuitos do céptico, tem de ser (aquilo a que Cavell chama) «um melhor caso de conhecimento» — o tipo de caso que, se deixar espaço para causar dúvida, poderá desse modo lançar dúvida acerca da possibilidade de conhecimento enquanto tal.[7] De acordo com a leitura de Cavell, o objectivo de Wittgenstein é mostrar ao céptico que paira sobre uma faca de dois gumes. Eis como Cavell resume o dilema:
Se o epistemólogo não estivesse a imaginar que uma afirmação havia sido feita, o seu modo de agir seria tão fora do comum como o filósofo da linguagem comum o considera. Mas, por outro lado, se estivéssemos a insuflar uma afirmação com o tipo de coerência que o seu modo de agir requer… então a sua conclusão não teria sido o tipo de generalidade que aparenta ser.[8]
Ou (este é o primeiro gume) a afirmação que o céptico produz não será uma afirmação (correcta) ou (este é o segundo gume) a afirmação é uma afirmação (correcta) de conhecimento. Se for a primeira, Wittgenstein quer demonstrar que um estudo das suas credenciais epistémicas não comporta a integridade das nossas afirmações de conhecimento comuns. Se for a segunda, Wittgenstein quer demonstrar que não será o tipo de exemplo de conhecimento cujo fracasso possa servir os objectivos do céptico: nomeadamente, que a concretização de razões para duvidar dele não lançará sombras sobre a totalidade do nosso conhecimento.
O epistemólogo pode tentar capturar o primeiro gume do dilema e afirmar que sabe estar a utilizar a palavra «conhecer» ou «asserção» de uma maneira forçada ou pouco comum, mas que isso não é motivo para preocupação; o que pretende é utilizar a palavra num sentido filosófico especial, e é um conceito relativamente técnico de «conhecer» e de «asseverar» que pretende investigar. Mas depois enfrenta o problema de a conclusão da sua investigação não poder produzir, como ele entende que devia, uma descoberta relativamente à integridade das nossas asserções comuns ao conhecimento — na melhor das hipóteses pode produzir a descoberta acerca de um suposto «conhecer» ou de um suposto «asseverar». Se o epistemólogo quiser que a sua conclusão produza uma descoberta sobre a natureza do conhecimento überhaupt, a investigação não pode dar-se ao luxo de perder de vista o nosso conceito de conhecimento. Cavell nota:
Deixem-me… sublinhar aquilo que penso que o sentido de descoberta indica sobre a conclusão do filósofo. Primeiro, uma vez que é uma descoberta cujo conteúdo é que aquilo em que nós todos, supostamente, acreditávamos terá sido demonstrado como falso, supersticioso ou de alguma maneira suspeito, a ideia de que é uma descoberta depende de num sentido divergir daquilo que nós todos, supostamente, dissemos que conhecíamos ou pensávamos. E este sentido de divergência depende das palavras que querem dizer que a conclusão significa, ou parece significar, o que aquelas palavras, como as usamos normalmente, quereriam dizer. Pois é com isso que a conclusão diverge. Quando o filósofo conclui que «não vemos ou conhecemos verdadeiramente» algo, porque havia isto de ser como negar o que a pessoa comum quer dizer quando diz «eu vejo ou conheço» algo, a menos que as palavras significassem, ou parecessem significar, a mesma coisa?[9]
A ideia de que se terá chegado a uma descoberta filosófica — isto é, uma descoberta que revela que as coisas não são de facto como as imaginávamos num estado pré-filosófico — é a marca de água do cepticismo. Assim, se habilitarmos o céptico à sua ideia de descoberta, ele não tem outra alternativa se não aceitar o segundo gume do dilema, e concordar com a condição de que, quando conclui que «não vemos nem conhecemos realmente» algo, essa conclusão só poderá divergir daquilo que a pessoa comum acredita (especificamente que ela vê ou conhece algo quando diz «vejo» ou «conheço» algo) se, quando o céptico e a pessoa comum a usam, a palavra «ver» ou «conhecer» indicarem o mesmo conceito. Assim, o fardo do tratamento que Wittgenstein faz do cepticismo, segundo a leitura de Cavell, é dirigido para a discussão do segundo gume do dilema: mostrar ao céptico que se as suas palavras são ditas num sentido comum — se o seu exemplo de uma asserção for tomado como incluindo uma asserção comum a conhecimento (por exemplo, uma asserção ao conhecimento de que há um pintassilgo no jardim) — então a inversão da asserção em causa não poderá ser generalizada da maneira necessária para que possa revelar uma descoberta sobre a natureza do conhecimento enquanto tal. Quando se abre espaço para a dúvida em relação a uma asserção de conhecimento comum, pode parecer que quem fez a asserção não sabe aquilo que afirma saber (por exemplo, que não sabe que o pássaro é um pintassilgo), mas não que quem fala não sabe nada.
A sensação dúplice que o céptico mantém sobre a peculiaridade e a coerência da sua investigação é influenciada por ele pairar sobre os dois gumes do problema, sem se decidir categoricamente por nenhum. Quer usar as palavras num sentido evidentemente algo excepcional e ainda assim usá-las com o seu significado comum. Quer manter ao mesmo tempo a posição de que está simultaneamente dentro e fora do jogo de linguagem comum no qual as suas palavras têm lugar. Assim sendo, fala «do lado de fora dos jogos de linguagem». Isto não quer dizer que fala do lado de fora do jogo de linguagem comum (e por isso do lado de dentro de algum jogo algo esotérico ou científico); quer dizer que fala completamente «do lado de fora dos jogos de linguagem», comuns ou excepcionais. Wittgenstein descreve aquilo que acontece quando falamos «do lado de fora dos jogos de linguagem» como casos em que a linguagem está «em ponto morto»[10] ou em que tem «um momento de festa».[11] Cavell leva a sério estas descrições. Nestes casos, diz-se que as palavras que invocamos estão «em ponto morto» ou que têm «um momento de festa» porque não estão a trabalhar: não se envolvem em nenhuma circunstância específica de uso.
O que o céptico precisa para executar o seu truque é envolver-se numa actividade que se qualifique como acto de fala de asseverar ao mesmo tempo que prescinde de toda a confusão dos pormenores dependentes do contexto que vêm associados a qualquer situação concreta em que uma asserção é pronunciada. No excerto que se segue, Cavell discute um putativo exemplo de um caso de asserção tão genérico quanto aquele que a investigação do céptico exige como ponto de partida se a sua conclusão quiser ter algum tipo de esperança de alcançar o grau de generalidade requerido:
Ninguém poderia ter dito de mim, vendo-me à secretária com o frasco verde fora do alcance da vista, «Ele sabe que há um frasco verde com lápis na secretária», nem ninguém diria de mim agora, «Ele (tu) sabia(s) que havia um frasco verde…», a não ser por alguma razão especial que torne essa descrição do meu «conhecimento» relevante para alguma coisa que eu tenha feito ou dito, ou esteja a fazer ou a dizer…
Pode ser que alguém sinta: «Que diferença faz que ninguém tivesse dito, sem razão especial para o dizer, que sabias que o frasco verde estava na secretária? Já o sabias; é verdadeiro dizer que o sabias. Estás a sugerir que às vezes não podemos dizer o que é verdadeiro?» Aquilo que estou a propor é que «Porque é verdade» não é uma razão ou fundamento para dizer algo; e estou a propor que deve haver, na gramática, razões para dizer o que dizemos, ou haver um argumento no que dizemos sobre algo, se o que dizemos é para ser entendido. Podemos compreender o que as palavras significam para lá das razões pelas quais as pronunciamos; mas para além de compreender o motivo para as dizeres, não podemos compreender o que tu queres dizer.[12]
Aqui, Cavell argumenta que não há o só dizer (e com isto significar) as palavras «Ele sabia que havia ali um frasco verde». Para que estas palavras tenham significado é preciso que pretendamos dizer algo com elas e isto requer que tenhamos uma razão ou fundamento para as dizer. Sem essa razão ou fundamento não existe nada que seja o pensamento que exprimo ao pronunciar essas palavras. Isto contradiz a crença popularizada pela filosofia da linguagem contemporânea. Os filósofos estão dispostos a considerar que estão preenchidas as condições para expressar um determinado pensamento se eu pronunciar uma frase que satisfaça estas duas condições: (i) que as palavras individuais que compõem a frase sejam palavras «com significado» na língua, e (ii) que as palavras se combinem de acordo com as ditas «regras» da língua. É precisamente desta posição que Cavell discorda neste excerto de On Certainty:
«Sei que aquilo é uma árvore» — isto pode querer dizer qualquer coisa: olho para uma planta que tomo por uma faia jovem e que outra pessoa pensa ser uma groselheira. Essa pessoa diz: «Aquilo é um arbusto»; eu afirmo que é uma árvore. — Vemos algo por entre a neblina que um de nós pensa ser um homem e o outro diz: «Eu sei que aquilo é uma árvore». Alguém quer testar os meus olhos, etc., etc. Em todos os casos, «aquilo» que afirmo ser uma árvore é outra coisa.[13]
À medida que exploramos estes exemplos em que dizemos a frase «Eu sei que aquilo é uma árvore», sempre que falamos, a frase — isto é, a cadeia de palavras — pronunciada continua a ser a mesma. Neste sentido de «dizer» (pronunciar certas palavras), dizemos sempre a mesma coisa: «Eu sei que aquilo é uma árvore.» Mas, em cada um destes casos muito diferentes, Wittgenstein diz «que “aquilo” que afirmo ser uma árvore é sempre diferente» — neste sentido de «dizer» (e é este sentido que interessa a Wittgenstein), de cada vez que digo «aquilo é uma árvore», aquilo que digo é diferente. Em cada caso, o contexto contribui para o pensamento que exprimo com estas palavras. De acordo com Cavell, Wittgenstein acredita que é um erro sobre como a linguagem funciona pensar, como os filósofos estão inclinados a considerar, que o papel de uma frase na nossa linguagem é fornecer algo que, por sua energia própria (à excepção de um contexto que lhe forneça um sentido completamente determinado), permita a expressão de um determinado pensamento. Em vez disso, o papel de uma frase é fornecer um instrumento linguístico utilizável em muitas circunstâncias para expressar um entre muitos pensamentos distintos.
De forma a ver melhor como é esquiva esta concepção de significado, olhemos para algumas tentativas recentes de a explicar. Aqui, Michael Williams sobre Cavell:
A ideia central de Cavell é a de uma asserção «concreta». Uma asserção concreta é aquela que tem um objectivo definido: é uma asserção feita para informar, avisar, divertir, ou o que seja. É, para Cavell, uma questão de «gramática» que um enunciado deva entrar numa asserção concreta se é para ser considerado um acto inteligível de asseverar. Isto quer dizer que a verdade por si só não garante a asserção inteligível, pois uma declaração pode ser verdadeira sem que a sua asserção faça sentido… Aos olhos de Cavell, apesar de o céptico usar frases com significado, e de as usar de maneiras evidentemente análogas aos usos comuns, uma característica central da sua empresa força-o a entrar nas suas asserções de uma maneira que viola as condições para um discurso completamente significante. Apesar de as suas palavras quererem dizer o que sempre disseram, ele não quer dizer nada com elas. Desta forma, o procedimento do céptico gera uma ilusão de significado.[14]
Aqui, Williams põe Cavell a afirmar que a proposição avançada pelo céptico pode bem ser verdadeira, mas que há um problema sobre asseverar esta proposição (verdadeira) no contexto em que o céptico a quer emitir. Ora, é condição necessária para que uma proposição seja verdadeira que tenha significado; ou seja, é condição necessária para que possamos atestar se uma proposição é verdadeira que a possamos entender. Por isso, na realidade, o que Williams afirma que Cavell diz é que não há qualquer problema sobre qual a asserção que o céptico quer fazer — não há nenhum problema sobre aquilo que a sua proposição significa ou, em alternativa: não há problema sobre o que quereria dizer a asserção do céptico se fosse sustentável; o problema é somente que o céptico entra em contradição com várias, por assim dizer, restrições (pragmáticas) adicionais à sua sustentabilidade. Assim, parece que o problema reside não no conteúdo semântico da asserção, mas no providenciar de uma circunstância na qual possamos estar certos do seu conteúdo semântico — uma circunstância em que possamos desempenhar com propriedade o acto de fala sem que este nos saia pela culatra. Por isso começa a parecer que podemos pensar correctamente o pensamento (do céptico), subsistindo apenas a questão de encontrar uma circunstância na qual o possamos exprimir em voz alta. Parece que o problema não está no que o céptico tenta dizer, mas na incompatibilidade entre o conteúdo do que quer dizer e o contexto da asserção. Isto sugere uma certa maneira de entender o que Wittgenstein quer dizer quando afirma que somos levados a falar fora dos jogos de linguagem: parece que a ininteligibilidade de algumas asserções pode ser localizada numa dificuldade de ajustar certos tipos de frases a certos tipos de circunstâncias.
Esta leitura (errónea) de Cavell sobre Wittgenstein também pode ser observada no trabalho de Marie McGinn:
A tentativa de Cavell de demonstrar que asserções sobre conhecimento que o filósofo investiga são ilegítimas ou ininteligíveis é assim uma forma de mostrar não que as palavras que o filósofo pronuncia ao introduzir estas asserções são elas próprias insignificantes mas que, dado o contexto em que as pronuncia, não podemos descortinar o objectivo de ele as dizer, não podemos descortinar o que ele quer dizer com elas, não podemos conceber o pronunciá-las enquanto acto de uma asserção inteligível.
Assim sendo, a noção central é a de que há duas ideias distintas de significado — o significado-das-palavras e o significado-do-falante — que estão ligadas de maneiras muito mais complexas do que aquelas que o filósofo tradicional supôs… A posição de Cavell sobre a relação entre o significado-das-palavras e o significado-do-falante pode… ser expressa como a declaração de que é um erro supor que a tarefa de interpretar os outros pode ser inteiramente levada a cabo por uma teoria do significado [da linguagem] sistemática… Particularmente, um falante pronunciar uma dada frase, s, para a qual uma teoria do significado atribui uma interpretação, p, nunca é uma garantia de que o falante é descrito correctamente como tendo efectuado o acto de asseverar p…
Pois o intérprete nunca pode deixar de considerar a necessidade de ficar satisfeito por a descrição da especificação-do-conteúdo do acto de asseverar que a teoria sistemática produz tornar esta declaração, nestas circunstâncias particulares, inteligível para ele enquanto acto de um agente humano a participar numa forma de vida reconhecível como humana.[15]
Aqui, McGinn atribui a Wittgenstein — e a Cavell — uma dependência implícita numa distinção tornada famosa por Paul Grice: a distinção entre significado-da-frase e significado-do-falante.[16] De acordo com McGinn, a contribuição adicional para a compreensão da natureza da linguagem, em princípio caracteristicamente wittgensteinana, reside em ajudar-nos a ver que o significado-das-palavras e o significado-do-falante «estão ligados de uma maneira muito mais complexa» do que a suposta pelo filósofo tradicional. Assim, ao passo que McGinn poderia ter suposto que o que as palavras de uma frase significam quase por completo especifica o que seria dito em qualquer caso que se pronunciem, Wittgenstein ensina-nos que — apesar de as palavras especificarem o que é «significado» num sentido de «significar» — há duas «noções distintas de significar» e que assim o que é «significado» (neste segundo sentido de «significar») ainda precisa de ser decidido. Na medida em que só especificamos qual é o significado da frase, fica de fora um ingrediente relevante do que quer que seja dito em qualquer manifestação da frase — pois assenta ainda noutra coisa: no objectivo de a dizer, nas razões para falarmos assim. Desta forma, McGinn afirma que, no caso de tentativas de actos de fala que saem pela culatra, o problema reside — não em sermos incapazes de especificar o conteúdo de uma asserção, mas em vez disso — em vermos qual terá sido o objectivo de termos pronunciado esta proposição (independentemente com significado) neste contexto (desadequado).
Na realidade, o que acontece com a leitura que McGinn faz de Cavell sobre Wittgenstein é a introdução de uma distinção entre dois níveis de falta de sentido:
[A] tentativa de demonstrar que as asserções de conhecimento que o filósofo investiga são ilegítimas ou ininteligíveis é assim uma tentativa de demonstrar não que as palavras que o filósofo pronuncia ao introduzir estas asserções são em si mesmas insignificantes, mas que, dado o contexto em que as pronuncia, não conseguimos alcançar a razão para ele as dizer, não conseguimos alcançar o que ele quer dizer com elas, não conseguimos conceber o acto de ele as pronunciar como um caso de uma asserção inteligível.[17]
Este excerto estabelece implicitamente uma distinção entre uma asserção ser insignificante e ser ininteligível. A insignificância está relacionada com as frases e a inteligibilidade com actos de fala firmados por contexto. O significado de uma frase pode ser perfeitamente claro; no entanto, uma asserção firmada por contexto dessa frase pode tornar-se ininteligível por não chegar a «ser inteligível enquanto acto de um agente humano a participar numa forma de vida reconhecível como humana». Isto permite a McGinn concluir que o Wittgenstein de Cavell mantém (i) que as frases que o filósofo pronuncia são por si só inteiramente compreensíveis e ainda assim (ii) que, mediante o contexto em que as pronuncia, a sua asserção pode ainda ser acusada de ininteligibilidade. Aqui, «ininteligibilidade» significa: compreendemos o que as suas palavras querem dizer mas não entendemos a razão para ele as ter dito, não entendemos o que ele quer dizer com elas.
Chegamos assim a um quase completo mal-entendido acerca dos excertos de Cavell visados pelas interpretações de Williams e de McGinn. A verdadeira razão desta zona do pensamento de Wittgenstein, na maneira como Cavell o compreende, é ajudar-nos a entender que o significado e o uso não podem ser separados um do outro precisamente da forma que Williams e McGinn supõem que Cavell o faz. Veja-se o seguinte excerto de On Certainty:
Tal como as palavras «Eu estou aqui» só têm significado nalguns contextos e não quando as digo a alguém que está sentado à minha frente e me vê claramente — e não por serem supérfluas, mas por o seu significado não ser determinado pela situação embora requeira essa determinação.[18]
O que Wittgenstein diz aqui não é (como propõem Williams e McGinn): é claro o que a frase «Eu estou aqui» significa, no entanto, o que queremos dizer com ela permanece não inteiramente inteligível devido à desadequação do contexto do uso. O que Wittgenstein está aqui a dizer sobre as palavras «Eu estou aqui» é exactamente o contrário: que «o seu significado não é determinado pela situação» — que o seu significado ainda «requer uma determinação». Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein utiliza o mesmo exemplo («Eu estou aqui») para realçar que o «significado de uma expressão» não é algo que uma expressão já possua por si só e que é subsequentemente importado para um contexto de uso:
Uma pessoa diz-me: «Compreendes esta expressão, certo? O sentido em que tu a conheces é aquele em que a estou a usar.» — Como se o sentido fosse um anel de vapor que acompanha a palavra, e que é transposto para cada uma das suas aplicações.
Quando, por exemplo, uma pessoa diz que a proposição «Isto está aqui» (ao apontar para um objecto diante de si) faz para ela sentido, então deve perguntar-se sob que condições especiais é que se usa de facto esta proposição. É nestas que ela faz sentido.[19]
Aquilo que nos sentimos tentados a chamar «o significado da frase» não é uma propriedade que a frase possua em abstracto separada da possibilidade de uso e que leve consigo — como uma atmosfera que a acompanha — para cada ocasião específica de uso. É, como reiteradamente afirma Wittgenstein, nas circunstâncias em que é «de facto utilizada» que a frase tem sentido. É por isto que Wittgenstein diz no excerto anterior de On Certainty: as palavras «Eu estou aqui» têm um significado apenas em certos contextos — ou seja, é um erro pensar que as palavras possuem elas próprias intrinsecamente algum tipo de significado para além da sua capacidade de exprimir um determinado pensamento significativo quando activadas num contexto de uso. O problema com o pseudo-emprego de «Eu estou aqui» em análise no excerto anterior é que o significado das palavras «não é determinado pela situação»: isto equivale a dizer que não é claro, quando estas palavras são activadas neste contexto, o que está a ser dito — se é que se está a dizer alguma coisa.
O filósofo, diz Wittgenstein, tende a pensar que compreende «o significado de uma frase» antes e sem qualquer ocasião concreta de uso:
Um filósofo diz que compreende a frase «Eu estou aqui», que intenciona qualquer coisa com ela, que pensa em qualquer coisa, mesmo que não se recorde da ocasião e do modo pelo qual esta frase é usada.[20]
O filósofo assume que ali há algo que é o pensamento que a frase em si expressa. Assume já saber o que significa: o que significa é uma função do que aquelas palavras combinadas significam. Considerar o uso da frase para este filósofo é considerar uma dimensão adicional de significado. Uma investigação ao «uso», para este filósofo, é uma investigação à relação entre o «significado da frase» — que podemos entender independentemente dos contextos de uso — e o tipo de coisas que esta frase pode exprimir ou sugerir (para além do que significa por si só) quando em conjunto com os vários contextos de uso para os quais pode ser importada de forma inteligível. Podem fazer-se perguntas sobre porque se diz o que é dito e sobre qual a razão de o dizer numa ocasião de uso específica. Mas a mera possibilidade de se fazerem estas perguntas pressupõe que já é bastante claro qual o pensamento expresso e dessa forma como seria se a verdade fosse pronunciada nesta ocasião de discurso. O Wittgenstein de Cavell está ocupado a refutar tal concepção da relação entre significado e uso. O que as nossas palavras significam depende daquilo que estão a fazer — como funcionam — num contexto de uso. Escreve Wittgenstein:
Se alguém diz: «Eu sei que aquilo é uma árvore», posso retorquir: «Sim, aquilo é uma frase. Uma frase em português. E o que é suposto estar a fazer?»[21]
Aqui a acusação é dirigida não à frase «Eu sei que aquilo é uma árvore», mas à incapacidade por parte do falante de dar à frase alguma coisa para fazer numa ocasião de fala. Isto não quer dizer que não se possa atribuir à frase «Eu sei que aquilo é uma árvore», quando pronunciada quando se vê claramente uma árvore, um sentido. Podemos encontrar, como Wittgenstein sublinha repetidamente, um contexto de uso no qual estas palavras pudessem fazer coisas nessas circunstâncias. Assim, no excerto seguinte, Wittgenstein esboça um cenário que confere um sentido à frase «Eu sei que aquilo é uma árvore», mesmo que a frase seja pronunciada quando uma árvore é claramente visível:
Alguém que tenha defendido a ideia de que já não tinha utilidade pode repetir para si mesmo «Ainda consigo fazer isto, e aquilo, e aqueloutro». Se estes pensamentos lhe ocorrem com frequência, não nos surpreenderíamos se ele, aparentemente sem qualquer contexto, pronunciasse tal frase [como «Eu sei que aquilo é uma árvore»] em voz alta. (Mas aqui já esbocei um cenário, uma cena, para este comentário, o que é o mesmo que dizer que lhe dei um contexto.)[22]
Esboçar desta forma um cenário, uma cena, para um comentário, é atribuir-lhe um determinado significado — é tornar possível que compreendamos o que está a ser afirmado por quem fala, que afirma por meio deste comentário saber algo.
Considere-se a seguinte frase: «Há muito café em cima da mesa.»[23] Esta frase pode, numa ou noutra ocasião, querer significar um número indefinido de coisas diferentes — pode exprimir um número indefinido de pensamentos diferentes. Cada um destes pensamentos será verdadeiro sob condições díspares. Wittgenstein salienta que «o que se quer dizer com uma frase pode ser expresso por uma ampliação da mesma».[24] Se se pretendesse ampliar o que se queria dizer ao pronunciar «Há muito café em cima da mesa», dependendo do que se queria dizer, seria necessária uma ampliação diferente. Para dissipar algum mal-entendido sobre o que se queria dizer com aquelas palavras, poder-se-ia dizer: «Queria dizer que o café foi entornado na mesa»; ou, em alternativa: «queria dizer que há um frasco de café enorme na dita mesa»; ou: «queria dizer que há sacos de café empilhados na mesa». Mas não podemos dar conta destas diferenças naquilo que é dito (no expressar cada um destes pensamentos por, em cada caso, pronunciar as palavras «Há muito café em cima da mesa») supondo que estamos a dar uso a diferentes significados das palavras «há», «café», «muito», «da», «em», «cima», ou «mesa». A indefinição sobre qual o pensamento que a frase «Há muito café em cima da mesa» exprime em cada um destes casos não assenta em qualquer ambiguidade no significado das palavras que a compõem. No sentido que faz falar dos «significados das palavras» (isto é, aquilo que o dicionário diz que significam), o mesmo «significado da palavra» está a ser activado para cada uma destas palavras («há», «café», «muito», «da», «em», «cima», «mesa») em cada uso distinto da frase. Apesar disso, o que se quer dizer com a frase, em cada caso, não é o mesmo. Ver o que as palavras significam, em cada ocasião em que as falamos, é uma questão de apreciar aquilo que podem significar nas circunstâncias em que as dizemos. É uma questão de compreender — de entre as várias contribuições que as circunstâncias de uso podem dar — o tipo de contribuição que as circunstâncias reais mais sensatamente podem dar. Para o Wittgenstein de Cavell, compreender uma proposição é uma questão de distinguir uma certa fisionomia do significado num uso de palavras. Não se pode fazer isto sem uma consideração do contexto de uso relevante.
O que se segue é um exemplo do tipo de excerto de Cavell a que Williams e McGinn se agarram e a partir do qual constroem a sua interpretação de Cavell:
«Não dizer nada» é uma maneira de os filósofos não saberem o que querem dizer. Neste caso não é que queiram dizer outra coisa para além do que dizem, mas que não compreendem que querem dizer nada (que eles não querem dizer nada, não que as suas afirmações não significam nada, que não fazem sentido).[25]
O argumento de Cavell aqui é que, em casos nos quais há uma falha de significado, a falha deve ser localizada na incapacidade por parte de quem fala em projectar aquele conjunto num contexto novo de uma forma que permita uma leitura estável — de uma forma que permita sermos capazes de perceber na frase, quando a vemos à luz do cenário das suas circunstâncias de uso, uma fisionomia de significado coerente. A razão para não atribuir culpa ao conjunto linguístico tomado por si só não é, com o devido respeito a Williams e McGinn, por ser perfeitamente claro o que o conjunto por si só deve significar; mas antes por não haver sentido abertamente evidente para ser percebido do que quem fala quer dizer com esse conjunto no contexto em questão. Mais uma vez, isto não é por — como Williams e McGinn concebem — este conjunto linguístico e aquele contexto serem incompatíveis; pois, como Cavell sublinha e Wittgenstein salienta repetidamente, poderíamos estipular um sentido para estas palavras neste contexto (mas depois damos com o primeiro gume do problema), ou poderíamos encontrar ou inventar um contexto de uso para esta combinação de palavras que fosse uma extensão natural para o seu jogo de linguagem comum (mas aí damos com o segundo gume do problema).
Para o Wittgenstein de Cavell, não há dois níveis distintos e autónomos de fazer sentido — o semântico e o pragmático —, de tal forma que um possa preencher as exigências de proposicionalidade e ainda assim ficar aquém das condições necessárias para ser uma proposição sustentável. É precisamente esta posição que é refutada por Cavell neste excerto:
«Faz sentido»… significa apenas que podemos facilmente conceber circunstâncias nas quais faria sentido dizer isso. … Não significa que fora dessas circunstâncias faz (perfeito) sentido. O argumento não é que às vezes não possamos dizer (ou pensar) qual é o caso, mas que dizer (ou pensar) algo é o caso em que devemos dizer ou pensá-lo, e «dizer isso» (ou «pensar isso») tem as suas condições.[26]
À parte de tornar específicas as circunstâncias nas quais faz sentido dizer uma certa sequência de palavras, falhámos terminantemente em especificar aquilo que a sequência de palavras diz. A falta de sentido, de acordo com a posição que Cavell atribui a Wittgenstein, surge quando há uma ausência de sentido. A posição que Williams e McGinn atribuem a Cavell atribui a falta de sentido filosófica a um tipo inapropriado de presença de sentido; faz da falta de sentido filosófica um de dois tipos de casos descritos por Cavell neste comentário parentético:
Pedem-nos, podemos dizê-lo, para nos afastarmos da nossa convicção de que isto deve ser uma asserção… e que nos inclinemos a supor que alguém aqui foi instado a um vazio permanente, a querer dizer coisas incoerentemente.
(Isto não é o mesmo que tentar fazer sentido de algo incoerente. Wittgenstein sugere esta possibilidade ao dizer «Quando se diz que uma frase é destituída de sentido, não se está a dizer que é o seu sentido que é destituído de sentido».[27] Nem é o mesmo que tentar dizer uma coisa diferente do que se está a pensar. Isto descreveria casos em que as nossas palavras fazem sentido, e estão alinhadas correctamente, mas é como se as estivéssemos a utilizar no sítio errado.)[28]
Cavell menciona estes dois tipos de casos parenteticamente de forma a distingui-los do tipo de caso que considera estar em causa no uso que Wittgenstein faz de «falta de sentido» como expressão de crítica filosófica. Consideremos primeiro o segundo dos casos aqui mencionados. Não é um caso de pura ininteligibilidade. No entanto, a inteligibilidade de um caso destes fica dependente de vermos quem pronuncia como imaginando estar em circunstâncias diferentes daquelas em que de facto se encontra. O primeiro tipo de caso — aquele mencionado na parte anterior do excerto — é do tipo que o próprio Wittgenstein tenta descrever quando diz:
Quando se diz que uma frase é destituída de sentido não se diz que é o seu sentido que é destituído de sentido. Diz-se, antes, que uma combinação de palavras é excluída da linguagem, retirada de circulação.[29]
Wittgenstein dizer que uma certa combinação de palavras deve ser «excluída da linguagem» ou «retirada de circulação» pode sugerir que a combinação de palavras em causa tem um sentido corrupto intrínseco — que lhe falta sentido não por causa de uma ausência de sentido mas por causa da presença de um sentido deficiente. A secção anterior das Investigações Filosóficas começa assim:
Dizer «Esta combinação de palavras não tem qualquer sentido» é excluí-la do domínio da linguagem e com isso delimitar a fronteira do domínio da linguagem. Mas o traçado de uma linha de fronteira pode fundamentar-se de diversas maneiras.[30]
Isto levanta a questão: quais são as razões de Wittgenstein para propor que excluamos combinações particulares de palavras da linguagem? Em Philosophical Grammar encontramos isto:
Que peculiar que alguém possa dizer que este ou aqueloutro estado de coisas é inconcebível! Se tomarmos um pensamento como um acompanhamento para uma expressão, as palavras na declaração que especificam o estado de coisas inconcebível não devem vir acompanhadas. Então que tipo de sentido poderá ter? A menos que se diga que estas palavras não têm sentido. Mas não é como se o seu sentido tivesse falta de sentido; devem ser excluídas da nossa linguagem como se fossem um som aleatório, e a razão para a sua exclusão explícita só pode ser que estamos tentados a confundi-las com uma proposição da nossa linguagem.[31]
As razões para Wittgenstein propor que excluamos explicitamente uma expressão da linguagem são — não por causa de ser o sentido da expressão a não ter sentido, mas — porque «estamos tentados a confundir» frases nas quais esta aparece sem sentido com proposições com significado da nossa linguagem. Dizer que «é como se o seu sentido tivesse falta de sentido» não é suposto descrever outro tipo de caso possível de falta de sentido. Em vez disso, é suposto ser uma descrição de um tipo de caso que imaginamos encontrar ao filosofar. Wittgenstein pensa que há uma concepção de falta de sentido, ao filosofar, à qual achamos de todo impossível escapar. Uma maneira de tropeçarmos nesta concepção é pensar que uma proposição não tem sentido porque as suas partes estão ligadas de forma ilegítima — outra maneira de tropeçarmos nela é pensar que um conteúdo e um contexto não podem ser conciliados («não podemos» pronunciar estas palavras neste contexto). Já no Tratado Lógico-Filosófico Wittgenstein se coloca contra tal concepção de, na verdade, falta de sentido substancial. É à propos de tal concepção de falta de sentido que escreve no Tratado: «não podemos dar a um sinal o sentido errado».[32]
A maioria dos comentadores do trabalho (inicial e tardio) de Wittgenstein toma esta utilização de «falta de sentido» enquanto expressão de crítica filosófica como representando a conclusão de um argumento no sentido em que certas combinações de expressões — ou os usos de várias combinações de expressões em determinados contextos —inerentemente não fazem sentido. Se formos um estudioso do período inicial de Wittgenstein, provavelmente somos levados a pensar que o problema estará localizado nas ditas «violações da lógica sintáctica» (isto é, na incompatibilidade lógica das partes da proposição). Se formos um estudioso do seu período tardio, provavelmente seremos levados a pensar que se localiza nas ditas «violações da gramática» (que às vezes quer dizer o mesmo que «violações da lógica sintáctica» e às vezes quer dizer «a incompatibilidade de certos significados com certos contextos de uso»). Mas, de acordo com Cavell, aquilo a que o Wittgenstein do início chama a lógica da nossa linguagem e aquilo a que o Wittgenstein tardio chama gramática não é o nome para uma tabela de regras que sobrepomos à linguagem de forma a apontar onde é transgredida uma ou outra fórmula. Uma investigação gramatical é uma convocação dos nossos critérios para o uso de um conceito específico. Mas a forma como um apelo aos critérios se manifesta num problema filosófico, tal como o do cepticismo, não é mostrando ao filósofo que ele «violou as regras de uso de uma expressão»,[33] e por isso que há algo específico que quer dizer que não consegue significar por meio das suas palavras.
Em relação ao céptico, o argumento da «investigação gramatical» (como Wittgenstein lhe chama) é mostrar-lhe que enfrenta um dilema: ou fica dentro do nosso jogo de linguagem e as suas palavras expressam uma dúvida, mas não a super-dúvida que busca (a sua dúvida não se generalizará da forma que ele precisa para que ponha a possibilidade de conhecimento como tal em dúvida), ou então será levado a falar «do lado de fora dos jogos da linguagem», retirando ao seu putativo contexto de uso a especificidade concreta (e logo a base dos nossos critérios) que nos permite ter significado e aquilo que fazemos nas situações em que normalmente utilizamos a palavra «dúvida» para exprimir o conceito de dúvida. Não se produz nenhuma regra de gramática para apresentar falhas indeléveis (lógicas ou gramaticais) nos enunciados do céptico. Ao invés, a gramática dos nossos diversos jogos de linguagem é apresentada ao céptico de maneira a exibir-lhe um Übersicht das várias possibilidades que estão à sua disposição para dar significado às suas palavras. Deve descobrir, depois de lhe ser exibido um übersichtliche Darstellung da gramática, que está ou a fazer perfeito sentido mas não a fazer a pergunta que quer, ou que permanece pouco claro qual das muitas coisas que ele pode querer dizer com as suas palavras ele está a dizer. O objectivo de Wittgenstein ao juntar estas advertências não é contestar o céptico (isto é, estabelecer a verdade da negação daquilo que esse afirma), mas sondar o sentido da sua declaração: impor-lhe a questão, dado o que as suas palavras podem significar, sobre aquilo que ele quer dizer com elas. O problema das suas palavras não reside assim nem nas palavras por si só nem em nenhuma incompatibilidade inerente entre as suas palavras e um determinado contexto de uso, mas sim na relação confusa que tem com as suas palavras. O objectivo de uma investigação gramatical wittgensteiniana, de acordo com Cavell, é facultar ao filósofo uma representação compreensível das várias coisas que ele pode querer dizer com as suas palavras de modo a mostrar-lhe que, por querer ocupar mais do que uma das alternativas viáveis ao mesmo tempo e ainda assim nenhuma em dado momento, fica dominado por um desejo incoerente no que diz respeito às suas palavras.
Notas:
[1] Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 43. (As citações da Investigações Filosóficas e do Tratado Lógico-Filosófico seguem a tradução de M. S. Lourenço (Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987). Neste caso, o autor retirou os itálicos da tradução; segue-se a opção do autor do ensaio.) [N. de T.]
[2] Stanley Cavell, The Claim of Reason. Oxford: Oxford University Press, 1979. [Todas as traduções de Cavell são minhas]
[3] The Claim of Reason, p. 221.
[4] Investigações Filosóficas, § 134.
[5] Investigações Filosóficas, § 243.
[6] «Wittgenstein não afirma que não possa haver uma linguagem privada. Introduz a argumentação sequencial do tema, em § 243, perguntando: “Pode também conceber-se…” O desfecho desta pergunta acaba por ser que não podemos de facto conceber isto, ou melhor, que não há nada parecido para conceber, ou melhor, que quando de facto tentamos conceber isto estamos a conceber outra coisa em que não estamos a pensar.» Cavell, pp. 133-45.
[7] Ver Cavell, pp. 133-45.
[8] Cavell, p. 218.
[9] Cavell, p. 164-5.
[10] Wittgenstein § 132: «As confusões que nos ocupam quando a linguagem está como que em ponto morto, não quando funciona.»
[11] Wittgenstein § 38: «[P]roblemas filosóficos surgem quando a linguagem tem um momento de festa.»
[12] Cavell, pp. 205-6.
[13] Ludwig Wittgenstein, On Certainty, trad. G. E. M. Anscombe (Oxford: Blackwell, 1969), §349.
[14] Michael Williams, Unnatural Doubts: Epistemological Realism and the Basis of Scepticism (Cambridge, MA: Blackwell, 1991), pp. 152, 151.
[15] Marie McGinn, Sense and Certainty: A Dissolution of Scepticism (Nova Iorque: Blackwell, 1989), pp. 85-6. Todas as referências seguintes a McGinn são deste livro.
[16] Paul Grice, Studies in the Ways of Words (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1989). Para uma discussão excelente das diferenças entre Wittgenstein e Grice, à qual se deve a discussão que se segue, ver Charles Travis: “Annals of Analysis,” Mind, vol. C, nº 2 (Abril de 1991): pp. 237-264.
[17] McGinn, p. 85.
[18] On Certainty, §348.
[19] Investigações Filosóficas, §117.
[20] Investigações Filosóficas, §514.
[21] On Certainty, §352.
[22] On Certainty, §350.
[23] Este exemplo deve-se a Charles Travis.
[24] On Certainty, §349.
[25] Cavell, p. 210.
[26] Cavell, p. 215.
[27] Cavell está a citar Investigações Filosóficas, §500.
[28] Cavell, p. 336.
[29] Investigações Filosóficas, §500.
[30] Investigações Filosóficas, §499.
[31] Ludwig Wittgenstein, Philosophical Grammar, ed. Rush Rhees, trad. Anthony Kenny (Oxford: Blackwell, 1974), p. 130.
[32] Tratado Lógico-Filosófico, §5.4732
[33] Cito aqui da seguinte passagem de Baker e Hacker, que identifica como uma continuidade central na doutrina do Wittgenstein do início e do Wittgenstein tardio aquilo que Cavell toma como uma continuidade central no objectivo:
Wittgenstein tinha visto, no Tratado, que uma investigação conceptual ou filosófica se move no domínio das regras. Um ponto importante de continuidade foi a observação de que a filosofia não está preocupada com o que é falso ou verdadeiro, mas antes com o que faz sentido e o que está para lá da fronteira do sentido… Aquilo a que chamou «regras da gramática»… são as descendentes directas das «regras da lógica sintáctica» do Tratado. Como regras de lógica sintáctica, as regras da gramática determinam os limites do sentido. Distinguem o sentido da falta de sentido… A gramática, tal como Wittgenstein entendia o termo, é o livro da contabilidade da linguagem. As suas regras determinam os limites do sentido e ao escrutiná-las cuidadosamente o filósofo pode determinar em que altura deixou a descoberto a Razão, violou as regras para o uso de uma expressão, e assim, de formas subtis e não imediatamente visíveis, atravessou as fronteiras do sentido. (G. P. Baker e M. S. Hacker, Wittgenstein; Rules, Grammar and Necessity [Nova Iorque: Blackwell, 1985], pp. 39-40, 55 [ênfase deles])
* Tradução de Telmo Rodrigues a partir do texto original publicado na The Harvard Philosophy Review, no número de Primavera de 2005: «Stanley Cavell’s Wittgenstein».