Os filósofos têm tendencialmente duas maneiras de abordar a forma como o ateísmo e a moral se relacionam: (1) perguntando, genericamente, se a moral in toto pressupõe crenças religiosas e (2) perguntando, mais especificamente, se o declínio das crenças religiosas deformou certos aspectos da moral. Vale a pena distinguir estas duas maneiras de abordar o problema. Pois mesmo que tomemos como evidente que o ateísmo e a moral são genericamente compatíveis, ainda pode ficar em aberto se certos aspectos do nosso legado moral estão em risco. Nietzsche, Kierkegaard e Anscombe são três filósofos que abordam o problema da segunda maneira e todos avançam com uma versão da seguinte tese: na sequência do declínio de uma tradição cristã no pensamento e na prática religiosa, ficámos com certos conceitos que continuam a parecer — mas que já não são — inteligíveis.

O meu objectivo neste ensaio não é nem defender nem atacar as acusações particulares de ininteligibilidade moral que aparecem nas obras de Nietzsche, Kierkegaard e Anscombe, mas simplesmente clarificar a sua estrutura lógica de maneira a esclarecer o que, em cada caso, poderia contar como refutação a tal acusação.[1] Espero deste modo trazer alguma clarificação sobre uma linha de pensamento amplamente mal compreendida que é transversal à obra deste trio de provocadores — e de outra forma, em muitos aspectos, extraordinariamente diferentes — pensadores.

Estes três filósofos parecem susceptíveis à seguinte objecção. Pretendem isolar um conceito (moral) específico actualmente em uso e armar-lhe uma crítica — uma crítica que pretende exibir o conceito como ininteligível. Contudo, de forma a convencer-nos de que aquele conceito específico é ininteligível, parece que estes autores precisam de em primeiro lugar mostrar qual o conceito que têm em mente. Mas se forem bem sucedidos a fazer isto, então — segundo a objecção — terão sabotado a sua própria posição. Para que possam isolar o conceito (que servirá de objecto da sua crítica) como sendo este ao invés de outro qualquer, não terá de ser o conceito em causa minimamente inteligível? Se conseguirem decidir qual o conceito em causa, então podem avançar para a demonstração de que esse conceito (ou qualquer declaração em que esse ocorra) é de alguma forma incoerente, inconcebível, ou de outra maneira deficiente, mas já não estão em posição de afirmar que o conceito em causa é ininteligível. Pois isso significaria demonstrar que não há nenhum conceito em causa, e assim sendo nada que possa ser objecto da sua crítica.

Esta objecção alberga um argumento importante (ao qual regressarei): um argumento sobre a natureza auto-sabotadora da acusação — uma acusação que Nietzsche, Kierkegaard e Anscombe parecem determinados em levantar — de que alguém não está só a dizer algo ininteligível, mas a empregar um conceito específico fora das condições que permitem a sua inteligibilidade. Preocupar-me-ei em argumentar que é um equívoco pensar que este argumento representa uma objecção à acusação de ininteligibilidade que é levantada na obra destes três filósofos. Mas, antes de me dedicar às razões para isto, investigarei primeiro uma objecção relacionada proposta por R. W. Beardsmore no seu estimulante ensaio «Ateísmo e Moral».[2]

I

Beardsmore sobre Ateísmo e Moral

 

Porquê o ateísmo hoje? — Deus foi meticulosamente refutado… [Contudo] parece-me que o instinto religioso está em fase de crescimento poderoso — mas recusa o prazer teísta com profunda desconfiança.

Friedrich Nietzsche[3]

 

Beardsmore quer mostrar que podemos ser ateus e igualmente conservar a moral. Na medida em que o seu objectivo seja preservar a tese de que podemos ser ateus e ainda assim compreender grande parte do nosso discurso moral, concordo com ele. Na medida em que a sua tese seja a de que a inteligibilidade de nenhum dos conceitos morais basilares da cultura ocidental está dependente[4] de uma tradição de pensamento e prática religiosos prévios, não concordo com ele. Chamarei à primeira a «a tese pouco estimulante» e à segunda «a tese interessante». Beardsmore parece hesitar entre um e a outra. Começa o ensaio por circunscrever o tipo de posições que pretende criticar da seguinte forma:

Tenho em mente a posição de que o ateísmo não é razoável, ou de certa forma inadequado intelectualmente, por ser incapaz de fazer jus ao papel que as considerações morais têm nas nossas vidas, ou para pôr isto em termos mais óbvios, mas também mais elegantes, porque se Deus não existisse, então tudo seria permitido.[5]

No início é-nos dito que o alvo do ensaio é a posição de que o ateísmo não é capaz de «fazer jus ao papel que as considerações morais têm nas nossas vidas». Quer isto dizer que Beardsmore está interessado em criticar apenas as posições segundo as quais o ateísmo não é capaz de fazer jus ao papel que quaisquer considerações morais têm nas nossas vidas? Pelos vistos não, pois mais à frente explicita que chega para colocar uma posição dentro do seu intervalo se envolver a afirmação mais modesta de que «certos aspectos basilares da nossa moral… derivam de um passado religioso» (ênfase minha).[6] Uma crítica concreta desta afirmação tardia teria interesse filosófico apreciável, uma vez que tem um papel relevante nas obras dos três filósofos nos quais este ensaio se foca. Mas nada no pensamento destes três pensadores é satisfatoriamente parafraseado pela fórmula óbvia e elegante que Beardsmore toma de empréstimo a Ivan Karamazov: «se Deus não existisse, então tudo seria permitido». (A preocupação de Ivan é que uma vez afastada uma estrutura religiosa, nenhum aspecto da moral sobreviva.)

Os três pensadores com que este ensaio se ocupa estão todos conscientes de que a subtracção de uma crença em Deus ao nosso sistema de crenças pode parecer (como parece a Beardsmore) não ter consequências para o nosso pensamento e prática morais. O problema que põem não é: será que a ausência de uma crença em Deus parece-nos influenciar os tipos de pensamento moral que nos estão disponíveis? (Assumem que, no seu todo, não parece: é isto que cada um — cada qual de maneira muito diferente — assume ser o problema.) Ao invés, o problema que põem é: será que o desaparecimento de Deus, apesar da aparente ausência de consequências, de alguma maneira (no momento invisível para nós) determina os tipos de fisionomia que o nosso pensamento moral pode, na Sua ausência, inteligivelmente ter?

Para dissipar uma preocupação deste tipo precisamos de fazer mais do que meramente mostrar que a inferência de Ivan (da não-existência de Deus a ser tudo permitido) envolve um non sequitur. Assim, a maneira de Bearsdmore, no excerto anterior, reformular «mais óbvia, mas também mais elegantemente» a relevância das posições que pretende criticar não reformula apenas, mas antes restringe significativamente, o conjunto de posições que recai no âmbito das suas críticas. A óbvia e elegante reformulação confere ao seu argumento a insinuação de uma aparente crítica que se aplica em igual medida a Ivan Karamazov e a Elizabeth Anscombe — às antíteses quer da tese pouco estimulante quer da tese interessante. O que precisamos de observar com mais atenção é como uma Elizabeth Anscombe difere em muito de um Ivan Karamazov. Irei por isso, em primeiro lugar, indicar brevemente por que penso que a tese pouco estimulante é simultaneamente verdadeira e pouco estimulante. Irei depois traçar a maneira como a antítese da tese interessante de Beardsmore se desenha no pensamento de Nietzsche, Kierkegaard e Anscombe, e explicar por que penso que os argumentos de Beardsmore contra ela não conseguem confrontá-la.

 

II

Karamazov, Nielsen e Kolakowski

Assim que tiverem os homens renegado a Deus… tudo recomeçará de novo… Todos os que reconhecem a verdade mesmo agora podem organizar legitimamente as suas vidas como querem, assente nos novos princípios. Nesse sentido, «tudo é legítimo» para si.

Ivan Karamazov[7]

A posição de Ivan Karamazov sobre a relação entre religião e moral é bastante clara: negar Deus é erradicar a distinção entre o que é e o que não é permitido. O objectivo de Dostoievski ao descrever vividamente o carácter de Ivan em Os Irmãos Karamazov é, em parte, tornar manifesto o que este toma como o niilismo implícito dos seus contemporâneos — tornar manifesto até que ponto ter-se-á o ateu moderno privado de uma base para qualquer concepção coerente de obrigação moral.[8] Um ateu rigoroso e honesto devia, segundo Dostoievski, reconhecer que já não se encontra amarrado por princípios morais (embora possa, claro, continuar a coadunar o seu comportamento às necessidades desses «como lhe aprouver»). Beardsmore começa o ensaio a criticar dois filósofos — Kai Nielsen (um ateu) e Leszek Kolakowski (um teísta) — cujas posições pertencem ao final do espectro de Ivan Karamazov de posições possíveis no que respeita a relação entre ateísmo e moral.[9]

O objectivo de Nielsen é contestar a afirmação de que o ateísmo subverte a moral. Isto poderia parecer marcadamente distingui-lo de alguém como Dostoievski (que estava precisamente preocupado em manter tal afirmação).  Segundo Beardsmore, Nielsen chega à sua conclusão por via de um argumento que revolve em torno da suposição  de que a moral assenta em convenções que são livres para aceitar ou rejeitar de acordo com o que escolhemos. Beardsmore cita as seguintes linhas de Nielsen:

Se olharmos para a moral com o olho frio de um antropólogo, veremos que a moral não é nada mais do que os costumes divergentes das várias tribos espalhadas pelos globo. Se olharmos para a ética de uma posição puramente secular, descobriremos que é constituída pelas convenções tribais, convenções que somos livres para recusar… Podemos continuar a agir de acordo com elas ou podemos rejeitá-las e adoptar um conjunto diferente de convenções.[10]

Segundo Beardsmore, Nielsen procura argumentar contra a afirmação de que «se Deus não existisse, então tudo seria permitido» argumentando que o que é (ou não é) permitido não depende da existência de Deus mas sim de um conjunto de convenções sociais que qualquer indivíduo com capacidade para reflectir criticamente é livre para aceitar ou rejeitar. Ora o facto de que alguém que não acredite em Deus (como Nielsen abertamente não acredita) se incline a concluir que o que é permitido é em última análise uma questão de escolha individual dificilmente soaria a novidade para Dostoievski. De facto, há muito no pensamento de Nielsen (tal como resumido por Beardsmore) que é uma versão do tipo de ateísmo urbano, complacente cujo o niilismo implícito Dostoievski pretendia expor. Embora Nielsen deseje questionar a importância do antecedente (a respeito da existência de Deus) para o consequente (a respeito do que é permitido) na famosa condicional de Ivan, ainda assim acaba mais ou menos no mesmo lugar que Ivan. Pois está disposto a confirmar algo muito parecido com a conclusão da preocupação de Ivan. Está disposto a afirmar que, em princípio, quase tudo pode ser permitido (depende só das «convenções» que se escolha seguir).

É a possibilidade de existência de um legislador divino que, para Ivan, introduz a hipótese de distinguir verdadeiramente entre o que é permitido e o que só («de uma posição puramente secular») aparenta ser permitido. Para Nielsen, não resta nada para desempenhar este papel e por isso é matéria (em parte sociológica, em parte psicológica) contingente o que, para um dado indivíduo, é ou não é permitido — algo que pode, em princípio, ser revisto por um acto de escolha. Assim, de acordo com Nielsen, algo só me é moralmente proibido na medida em que eu escolha aceitar um conjunto de convenções que estipule que assuntos importantes são proibidos. A semelhança fundamental entre Nielsen e Ivan reside no facto de ambos quererem continuar a falar do que é e não é «legítimo», mesmo que nos imponham uma concepção segundo a qual, na verdade, já nada é proibido. Ambos usam uma terminologia quase-jurídica de «permissão» e «proibição» como se retivessem a sua força original, ao mesmo tempo que as  separam da estrutura conceptual de relações com a qual está confortável — uma estrutura na qual só faz sentido falar de uma pessoa como estando proibida de fazer alguma coisa se a proibição tiver origem em algo que não seja a escolha da pessoa em se restringir.

Kolakowski quer empregar uma variação do raciocínio de Ivan — muito no mesmo espírito do próprio Dostoievski — para montar uma reductio ad absurdum do ateísmo. Kolakowski revê a condicional de Ivan substituindo-a por uma versão da consequente na conclusão de Nielsen, mas assume o modus ponens de Nielsen como o seu modus tollens: é absurdo penar que o que é (e o que não é) permitido moralmente seja objecto de mera convenção, logo Deus existe. O raciocínio de Kolakowski é semelhante ao de Ivan e de Nielsen na medida em que concorda com eles que sem Deus estamos livres para decidir por nós o que está certo e o que está errado:

É este o sentido no qual dizer «se não há Deus, tudo é permitido» me parece estar certo… Um imperativo exigindo que eu seja guiado apenas por normas que eu deseje que sejam universais não tem em si mesmo nenhum fundamento lógico ou psicológico; posso rejeitá-lo sem cair em contradição, e posso admiti-lo como linha de orientação suprema só em virtude de uma decisão arbitrária a não ser que apareça no contexto de um culto religioso… Quando Pierre Bayle argumentou que a moral não depende da religião… destacou que os ateus são capazes de alcançar os mais altos padrões morais… Tanto quanto parece isto é naturalmente verdade, mas este argumento prosaico não resolve a questão da validade… Um apologista cristão pode admitir os factos e ainda assim argumentar consistentemente… que os ateus devem as suas virtudes a uma tradição religiosa que conseguiram em parte preservar apesar da sua falsa filosofia.[11]

Beardsmore está certamente certo ao pensar que as alternativas representadas por Nielsen, por um lado, e Kolakowski, por outro lado, nos colocam um dilema ilusório: ou os nossos valores morais são fincados por decreto divino ou são o resultado de uma escolha individual. Uma miríade de presunções têm de estar em jogo antes deste dilema começar sequer a parecer esgotar as nossas alternativas filosóficas — em especial, presunções que posicionam o conceito de escolha (em relação às nossas emoções, convicções e acções morais) de tal forma que se possa retirar o chão ao conceito de juízo moral. Mencionando apenas quatro presunções:

1.     Há a presunção de que tudo o que forme parte do nosso legado cultural é uma «convenção» — algo que podemos, sem grandes delongas, simplesmente escolher aceitar ou rejeitar. (Podemos meramente escolher quando e como sentimos horror, vergonha ou espanto? Podemos somente escolher o que devemos tomar por meretrício, corajoso ou cruel?)

2.     Há a presunção de que — na ausência de um abrangente legislador soberano ou divino — desde que as nossas escolhas morais estejam limitadas, a origem desse limite deve ser explicado em termos causa ao invés de normativos (em termos de forças sociológicas ou psicológicas, em vez de exigências racionais, às quais estamos sujeitos).

3.    Há a presunção de que se olharmos para a ética «de uma posição puramente secular», descobriremos que o que está correcto é em última análise «constituído» pelo que as pessoas na «nossa tribo» pensam que é correcto. (É assim simplesmente assumido que qualquer posição que seja «puramente secular» já não tem disponíveis os recursos para distinguir entre o que a nossa tribo pensa estar certo e o que é certo.)

4.    Há a presunção de que se um indivíduo for confrontado com um dilema moral — ocasiões em que está dividido sobre o que deve fazer ou em que ele e outra pessoa que toma por inteiramente racional (e talvez até admirável) discordam respeitosamente sobre o que se deve fazer — então chegará à conclusão sobre o que fazer simplesmente «escolhendo» entre duas «avaliações» contraditórias. (Um soldado que desobedece a um oficial — que respeita e admira — por objecção de consciência pode ser descrito como tendo «escolhido desobedecer» mas, assim sendo, será que escolheu estar em desacordo moral com o seu oficial?)

Chamo a atenção para estas quatro presunções (que são partilhadas por Nielsen e Kolakowski) apenas para destacar alguns passos que precisam ser dados antes de podermos avançar facilmente da rejeição da afirmação de que «o que está certo e o que está errado é determinado pelas lei de Deus» para o acolhimento da afirmação de que «o que está certo e o que está errado é constituído por convenções que somos livres de aceitar ou rejeitar».[12]

Uma vez postos de parte estes modos de pensar sobre quais podem ser os custos éticos imediatos do ateísmo, onde é isto deixa as posições dos filósofos — tal como Nietzsche, Kierkegaard ou Anscombe — que pensam que se dá, ainda assim, o caso de que (para citar Beardsmore) «certos aspectos centrais da moral derivam de facto de um passado comum que a certo ponto todos partilhámos»? Beardsmore parece pensar que se está a um passo curto do tipo de considerações que impugnam as posições de Nielsen ou de Kolakowski para aquelas que nos permitiriam dispensar as posições de uma Anscombe. É neste momento que o ensaio de Beardsmore me parece avançar demasiado depressa.

 

III

Niestzsche

Não ouvimos ainda nada do barulho que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos nada da descomposição divina?... os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matámos! (...) Nunca houve acção mais grandiosa e, quaisquer que sejam, aqueles que poderão nascer depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que até aqui, nunca o foi qualquer história.” O insensato calou-se depois de pronunciadas estas palavras e voltou a olhar para os auditores: também eles se calavam, como ele, e o fitavam com espanto. Finalmente atirou a lanterna para o chão, de tal modo que se partiu e apagou. “Chego cedo demais,” disse ele então, “o meu tempo ainda não chegou. Esse acontecimento enorme ainda está no caminho, caminha, e ainda não chegou ao ouvido dos homens (...) O relâmpago e o trovão requerem tempo; a luz das estrelas requer tempo; feitos, apesar de concluídos, ainda requerem tempo para serem vistos e ouvidos. Este feito está ainda mais distante deles do que as estrelas mais distantes — a ainda fizeram-no eles próprios. [13]

Uma característica do ensaio de Beardsmore sobre a qual vale a pena ponderar é a sugestão tácita de que a tese em causa — que certos aspectos basilares da moral derivam de uma tradição religiosa que antes todos partilhámos — é necessariamente mais apelativa para alguém que procura firmar-se pelo lado teísta da discussão entre teísmo e ateísmo. Precisamos de considerar apenas brevemente o exemplo de Nietzsche de maneira a compreender que a tese em causa pode funcionar como uma faca de dois gumes nessa discussão. Esta tese interessa a Nietzsche na qualidade de ferramenta de reforma moral. A maneira que Nietzsche tem para desenfeitiçar o seu leitor com certas características da moral tradicional — e de apelar a uma «transvalidação» desses valores — é sublinhando a forma como esses valores dependem de uma tradição de pensamento religioso agora (como ele gostava de dizer) «falida». Nietzsche olha para o cristianismo como fornecedor de uma base para as características da moral tradicional de três maneiras distintas: (1) intelectual, (2) prática e (3) fisiológica. Direi algo sobre cada uma.

Para Nietzsche, primeiro o judaísmo e depois o cristianismo forneceram uma base intelectual para a moral por articularem uma estrutura teológica na qual se podia fazer sentido da ideia de que certos princípios morais são terminantemente vinculativos. O seu paradigma para tais princípios são os Dez Mandamentos. Nietzsche argumenta que é apenas com uma concepção de princípios morais enquanto expressões da vontade de Deus como pano de fundo que estamos em posição de fazer sentido que tais princípios são vinculativos universalmente. No entanto, Nietzsche, ao contrário de Ivan Karamazov, não defende que a actual falência intelectual da concepção cristã de uma ordem moral absoluta signifique que já não estamos vinculados por princípios morais. Nietzche dá um nome a esta posição: niilismo. Representa uma posição que crê ir tornar-se dominante na cultura ocidental e que toma como perniciosa tanto filosófica como eticamente. Descreve o niilismo como «a doença dos nossos tempos», o cristianismo como «o veneno que carrega a doença» e a «função do filósofo do futuro» a de facultar o «antídoto». Ivan Karamazov pode servir de protótipo do niilista esclarecido.[14] Apesar de Ivan já não ser capaz de acreditar em Deus, sabe-se consumido pela nostalgia por Ele — e é esta aspecto de consciência que o distingue dos que Nietzsche gostava de chamar «o filósofo moral inglês típico» (isto é, o típico ateu urbano). O niilismo é o nome que Nietzsche dá ao estado de melancolia em que entramos quando somos incapazes de adequadamente fazer o luto pela morte de Deus. O objectivo de Nietzsche é tentar que o seu leitor caía, por uma desilusão pela perda do Deus do cristianismo, numa recusa de aceitar qualquer coisa que não seja uma divindade substituta enquanto possível origem de valor. Vê os seus leitores como susceptíveis de recuar, pela desilusão provocada pelo transfiguração de uma concepção metafísica da natureza do valor altamente específica, culturalmente enraizada no seu reflexo invertido: uma concepção niilista da natureza de valor — uma concepção que extirpa de todos os valores a sua força prescritiva.

No entanto, o cristianismo, segundo Nietzsche, não é necessariamente — e não foi sempre — veneno. Foi, sob condições históricas e culturais anteriores, um instrumento relevante no desenvolvimento da civilização e na melhoria do potencial humano:

Nunca será de mais examinar este facto: o cristianismo é a religião da antiguidade amadurecida; o pressuposto da sua existência é o de uma cultura antiga que degenerou… O cristianismo dessa cultura… é agora um bálsamo apenas para quem vagueia por esses séculos passados como historiador… Fora isso… o cristianismo é veneno.[15]

Aqui, Nietzsche diz que uma cultura específica — uma forma de vida específica — pressupõe a existência do cristianismo. O seu argumento aqui e noutros sítios não se apoia na afirmação ambivalente (que lhe é habitualmente atribuída) (1) de que só é possível manter certas crenças em determinados períodos (embora isto seja certamente verdade) e (2) de que, visto a cultura da antiguidade ter-se desmoronado, já não é possível acreditar verdadeiramente em Deus ( o que é certamente falso). Em vez disso, o argumento de Nietzsche aqui assenta no seguinte raciocínio: o cristianismo constitui uma parte integral de uma concepção específica de como viver, que cresceu em circunstâncias históricas e culturais específicas, e não é entendido devidamente quando equacionado fora dessas circunstâncias. O argumento articula-se em oposição a uma maneira alternativa de conceber o cristianismo: nomeadamente, como mero sistema de crenças — e assim sendo completamente abstraído de uma prática de vida específica:

É falso até à estupidez o ver numa «fé», neste caso a fé na salvação por Cristo, o sinal distintivo do cristão: a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele que morreu na cruz, apenas isso é cristão… Não uma fé, mas uma acção, um não fazer certas coisas e, sobretudo, um modo diferente de ser… Os estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo julgar verdadeira uma coisa… completamente indiferente… Reduzir o facto de se ser cristão, a vida cristã, a um facto de crença, a uma simples fenomenalidade de consciência, é o que se pode chamar negar o cristianismo.[16]

O argumento de Nietzsche aqui é, em primeiro lugar, sobre o que é o cristianismo, e, em segundo lugar, sobre as condições de significação de grande parte dos nossos conceitos morais (e não só morais[17]): (1) ser um cristão é viver um certo tipo de vida (modelado na vida daquele que morreu na cruz) e (2) o significado dos conceitos morais que o cristianismo nos legou é interno à sua aplicação no contexto de tal vida.[18]

«É falso até à estupidez», diz Nietzsche, conceber o que é um cristão da maneira como os filósofos o costumam fazer: reconhecer a característica distintiva de um cristão como uma questão da adesão do indivíduo a uma crença específica. Desta forma Nietzsche, como veremos, concorda com Kierkegaard no seguinte ponto gramatical: apenas um indivíduo comprometido com um vida de prática cristã é um cristão. Mas Nietzsche identifica tal prática com «um não fazer certas coisas». Para Nietzsche, o cristianismo significa acima de tudo uma prática estética — um vida na qual o indivíduo vai para a guerra combater todos os seus instintos naturais: uma vida na qual o indivíduo primeiro se disciplina, depois domina e finalmente se transforma pela disciplina, pelo domínio e pela transformação dos seus desejos.[19] O legado glorioso do cristianismo ao homem moderno, aos olhos de Nietzsche, assenta no refinamento da disciplina da askesis: «o labor executado pelo homemem si próprio» pelo qualaprende a obter forma de «domínio sobre si próprio».[20] O legado inglório do cristianismo é o niilismo — um niilismo promovido pelo facto de o poder transformador dos seus valores ter-se esgotado: o que começou como um esforço heróico de restrições voluntárias é hoje transmitido culturalmente como uma forma de segunda natureza. É isto que Nietzsche quer dizer extraordinária afirmação de que o ideal ascético trouxe não só uma metamorfose filosófica e psicológica, mas também uma metamorfose fisiológica do animal humano. Para Nietzsche, um indivíduo é cristão na medida em que exiba o que hiperbolicamente refere como uma «certa organização do instinto».[21] Nietzsche vê-nos à maioria como meios-cristãos moralmente mutilados. O cristianismo deixou-nos a sua marca por ter forjado uma certa relação entre intelecto e instinto, por ter estabelecido o que hoje nos parece uma configuração natural de pensamento e desejo. Uma crítica responsável do cristianismo, segundo o ponto de vista de Nietzsche, deve-nos não apenas uma crítica dessa configuração, mas também a visão de uma alternativa — uma de como devemos procurar moldar-nos, de que tipo de seres em que devemos almejar tornar-nos.

Tal como Nietszche considera ser «falso até à estupidez o ver numa “fé”… a característica distintiva do cristianismo», também considera que é falso ao ponto da estupidez ver qualquer tentativa séria de tentar repudiar o cristianismo como não tendo implicações para os nossos modos de viver e de ser. Nietzsche considera que pode fazer sentido a maneira como hoje conseguimos decidir não acreditar em Deus, mas não considera que podemos simplesmente decidir não ser moldados por valores cristãos. Não considera que deixar de ser cristão seja simplesmente uma questão de mudar as nossas crenças, mas sim uma questão de mudarmos quem somos. (É precisamente esta tarefa de mudarmos quem somos, de nos libertarmos das maneiras como o cristianismo nos moldou, que Nietzsche nos prescreve.[22]) Assim sendo, o superar do cristianismo reside, para Nietzsche, não no desaparecimento de uma certa crença, mas na transformação radical da existência humana numa existência que já não seja enformada pela prática cristã — já não enformada por uma concepção cristã do que é substancial. É uma transformação que Nietzsche considera estar em plena evolução mas ainda apenas semi-completa; aqui reside a origem, segundo ele, na nossa actual relação estranha com os nosso valores. Cada um dos nosso conceitos avaliativos está internamente relacionados com, e muitas vezes pressupõe, grande parte dos outros; contudo, alguns estão claramente obsoletos, outros indispensáveis — e, por fim, alguns são do tipo que também interessa a Kierkegaard e a Anscombe: parecem indispensáveis mas estão de facto obsoletos.

Na parábola do louco— que compõe a epígrafe desta secção do ensaio —, de Nietzsche, é-nos dito que a audiência a que o louco se dirige é composta «por muitos dos que não acreditavam em Deus».[23] O que os que não acreditam em Deus não sabem — e ainda não são, segundo o louco, capazes de saber — é que Deus não deixa, num dado momento, de existir assim de repente. Em vez disso, Deus morre, e a sua morte é um processo lento. O louco vê o desenrolar da morte de Deus enquanto a sua audiência vê apenas a marcha incessante do progresso e do iluminismo.[24] O louco parece louco, provocando o riso nos que não acreditam em Deus, com a sua insistência frenética em que nos preparemos para as consequências desse evento — a morte de Deus — que se está agora a desenrolar. Contudo, chegará o momento em que até os ateus mais urbanos conseguirão farejar a decomposição divina. O fedor ainda não é avassalador e por isso, no momento, os que não acreditam em Deus conseguem supor que a morte não significa mais do que uma alteração no que as pessoas devem agora «crer». Devemos agora subtrair a crença em Deus ao nosso núcleo de crenças; e esta subtracção é algo que pessoas sofisticadas (que há muito deixaram de ir à igreja) podem conseguir sem alterar indevidamente como vivem e o que valorizam. O louco, por outro lado, pensa que este acontecimento colossal — a norte de Deus — ainda está por chegar. Chegará, não quando as pessoas já não acreditarem em Deus, mas quando compreenderem que já não conseguem fazer sentido de muitos dos valores de acordo com os quais pensam actualmente viver. No decurso do processo de decomposição divina, muitas das palavras que nomeiam os antigos valores são gradualmente drenadas do seu significado original.

O aspecto mais paradoxal da mensagem do louco — que este acontecimento já ocorreu e contudo ainda está por acontecer — constitui um elo entre o pensamento de Nietzsche e quer o de Kierkegaard quer o de Anscombe. Os três vêem-nos como susceptíveis a ilusões de inteligibilidade quando recorremos a vocabulário religioso e moral. A razão para não nos parecer  que ao nosso discurso moral não falta inteligibilidade (e, assim sendo, a razão para que o problema da sua inteligibilidade não pareça de todo ligado a questões relacionadas com a vitalidade dos modos de pensamento e prática cristãos) não é para ser tomada como indicador fiável de quando, e de que maneiras, somos actualmente capazes de fazer sentido moral.

 

IV

Kierkegaard

Se então, de acordo com a nossa hipótese, a maioria das pessoas na cristandade apenas se imagina cristã, em que categorias vivem? Vivem nas categorias estética ou, no máximo, estética-ética.

Supondo então que um escritor religioso se tornou muito cuidados em relação a esta ilusão, a cristandade, e resolveu atacá-la com toda a determinação ao seu dispor — o que deve então fazer ele? Antes de mais, nada de impaciência. Se ficar impaciente, precipitar-se-á atabalhoadamente e não alcançará nada. Um ataque directo apenas fortalecerá a pessoa iludida, ao mesmo tempo que a tornará ressentida. Não há nada que requeira um tratamento tão delicado quanto uma ilusão, se é nosso desejo repeli-la. Se algo incitar o potencial  cativo a colocar a sua vontade em oposição, tudo está perdido.

Søren Kierkegaard[25]

Kierkegaard, ao contrário a Nietzsche, não considera que o ateísmo — ou pelo menos o que aceitamos pensar como ateísmo — seja sequer necessário, quanto mais um primeiro passo no advento de uma condição na qual grande parte da sociedade começa a alucinar sentido quando (aparentemente) usa vocabulário moral ou religioso. O nome que dá ao primeiro e decisivo passo para o deflagrar de tal condição alucinatória é cristandade.

Kierkegaard está, no entanto, de acordo com Nietzsche no seguinte ponto: o cristianismo não é uma questão de acreditar simplesmente que certas questões são verdadeiras; é uma questão de se viver de uma certa maneira. (A discordância mais profunda entre Nietzsche e Kierkegaard diz respeito a se devemos abandonar ou regressar a essa maneira de viver.) Para Kierkegaard, como para Nietzsche, saber se alguém é cristão não é apenas uma questão de perceber com que tipo de premissas concorda ou que tipo de crenças tem (ou que justificações está disposto a avançar para essas premissas e crenças), mas também uma questão de olhar para a maneira como a sua concepção de si próprio como cristão enformar a sua vida.[26] Na Dinamarca de Kierkegaard, quase toda a gente se considerava cristão, contudo Kierkegaard achava que quase ninguém o era. Pensava que a maioria dos seus conterrâneos sofria da ilusão de se achar cristão cristão. A principal causa desta ilusão, diz, é uma confusão entre categorias objectivas e subjectivas.[27] Se somos cristão ou não é estabelecido agora por referência a certas características «objectivas» da nossa vida (se vamos à igreja ao domingo, se somos baptizados, se vivemos num país cristão e temos pais cristãos, etc.) independentemente de como nos comportamos a respeito a essas características da nossa vida.[28] A este respeito, o entendimento de Kierkegaard sobre o problema é o diametralmente oposto ao de Nietzsche: Nietzsche quer mostrar aos seus leitores pretensamente estetas que no fundo ainda são cristãos, Kierkegaard quer mostrar aos seus leitores pretensamente cristãos que não são cristãos.

Kierkegaard não assume que esteja a divergir dos seus conterrâneos simplesmente acerca do que a palavra «cristão» significa. O seu argumento é de que seguindo os seus próprios princípios — se reflectirem sobre o que significa ser um cristão, se reflectirem sobre as suas vidas e tornarem claro o quanto lhes exige o cristianismo — serão capazes de ver que não são cristãos.[29] São tentados a várias confusões (a que Kierkegaard chama «categoriais») de maneira a esconder deles próprios este facto. Mas, se munidos de uma descrição compreensível da categoria do religioso, acredita ele, eles próprios estarão em posição de reconhecer as suas confusões como confusões. Se forem compelidos a reflectir sobre as suas vidas, Kierkegaard considera que os seus leitores podem ser levados a ver que não saberiam dizer o que tolera a afirmação de que são cristãos.

Kierkegaard é um autor particularmente provocador para considerar no contexto de nos preocuparmos (como Beardsmore nos convida a fazer) se «um passado religioso» é condição necessária para a inteligibilidade de certos conceitos. O que o exemplo de Kierkegaard demonstra é que mesmo se nos confinarmos à tese relativamente incontestada de que «um passado religioso» é uma condição necessária para o uso de certos conceitos religiosos, ainda assim não será sempre evidente quando está (ou não está) em jogo o passado certo. Não é algo que possa ser determinado olhando simplesmente para o tipo de vocabulário que as pessoas usam.

O objectivo de Kierkegaard é levar os seus leitores a ver que (se reflectirem cuidadosamente rigorosamente sobre o que querem dizer quando dizem de si que são cristãos) as palavras que usam não significam o que eles querem. O que querem dizer está em contradição com o que dizem. Têm um desejo incoerente em relação às suas palavras — e, especificamente, em relação à palavra «cristão». Querem usar a palavra no seu sentido religioso e, ao mesmo tempo, usar a palavra de tal forma que tenha aplicação às suas vidas quotidianas. Não quer dizer que com a palavra queriam dizer uma coisa específica mas de alguma forma deficiente. Em vez disso, dá-se o caso, segundo Kierkegaard, de quererem que diga algo incoerente: o uso que fazem da palavra paira indeterminado sobre as categorias estética e religiosa sem respeitar as condições de aplicabilidade de nenhuma. (como veremos, há aqui uma afinidade entre as respectivas concepções de Kierkegaard e de Anscombe sobre o que está — e o que não está — implicado no tipo de ilusões de inteligibilidade que pretendem expor.)

Kierkegaard considera que há um grande número de palavras que têm um sentido especificamente religioso — palavras como crença, autoridade, obediência, revelação, oração, silêncio, temor, admiração, milagre, apóstolo, e por aí em diante. As mesmas palavras, no entanto, podem ser usadas em contextos em que assumem significados diferentes. As mesmas palavras podem ser usadas para expressar conceitos diferentes — conceitos que não têm um sentido religioso. O interesse de Kierkegaard não é, por isso, apenas nas palavras que os seus leitores usam, mas nos conceitos que essas palavras expressam. O problema é que não é sempre fácil estabelecer uma posição clara de quando uma palavra está a ser usada para expressar um conceito religioso. A maneira de Kierkegaard se referir ao tipo de confusão em que entramos nestes casos (quando achamos estar a usar um conceito ético ou religioso, mas não se consegue discernir nenhum sentido ético ou religioso do nosso uso de uma palavra) é afirmar que caímos numa «confusão das categorias». O nome que dá ao processo que emprega para clarificar tais confusões é «dialéctica qualitativa».[30] Uma análise «dialéctica» de um conceito mostra como o significado do conceito passa por uma mudança — e assim sendo, em bom rigor, qual é o conceito que muda — conforme o contexto em que é usado se altera. A dialéctica qualitativa é o estudo das mudanças decisivas (ou qualitativas) às quais o significado de uma palavra está sujeito conforme o seu uso muda de um contexto estético para um contexto ético para um contexto religioso. Um conceito religioso, acredita Kierkegaard, só consegue ter o seu sentido dentro do contexto de um certo tipo de vida. Por isso às vezes Kierkegaard (ou um dos seus pseudónimos) vai querer pintar um retrato particularmente expressivo de como seria uma vida cristã: uma vida que só pode ser compreendida nos termos de — isto é, uma que é vivida em — categorias cristãs. O argumento é contrastar essa vida com a vida de um leitor que se imagina cristão.[31] É apenas nessa outra vida, quer mostrar-nos Kierkegaard, que «as categorias cristãs têm o seu significado completo, mutualmente implicador, e fora desse podem ter qualquer um ou nenhum».[32]

Os contemporâneos de Kierkegaard são capazes de se levar a si próprios a pensar que são cristãos por no decurso das suas vidas usarem frequentemente vocabulário religioso. A questão em que Kierkegaard deseja que se concentrem não é se acham que têm uma utilidade para esse vocabulário, mas sim em como o usam. Apenas se as suas vidas tiverem uma certa forma no seu todo — apenas se, como gosta de dizer, for uma que seja «vivida em categorias religiosas» — tem esse vocabulário, como o usam, um significado religioso propriamente dito.[33] Do que suspeita em relação à vida da maioria dos seus contemporâneos é de que as palavras religiosas que desejam invocar ou assumiram um significado (não-religioso) completamente diferente — ou, em muitos casos, não têm já qualquer significado. A atracção pelo uso de tais palavras está muitas vezes ligado, considera Kierkegaard, ao desejo de quem as usa de manter para si a ilusão de ser um cristão. A sensibilidade de Kierkegaard para a dificuldade do seu projecto está assim associada à suspeita de que o seu leitor possa ter razões profundamente enraizadas — razões que esconde a si próprio — para não querer clarificar para si próprio o que é que quer dizer quando usa vocabulário religioso. Os que vivem na cristandade estão profundamente ligados à ideia de que os conceitos cristãos têm de facto aplicação na suas vidas. Pois é com a ilusão de que esses conceitos se aplicam às suas vidas que são capazes de imaginar que as suas vidas retêm uma dimensão religiosa. Kierkegaard suspeita de que no fim de contas toda esta «dimensão religiosa» não passa de uma mera aparência exterior — uma aura — de solenidade, piedade e profundidade. Kierkegaard vê assim os seus contemporâneos como querendo reter certas características dos conceitos de cristianismo ao mesmo tempo dispensando todas as outras. Por um lado, querem que o seu vocabulário religioso tenha aplicabilidade a um certo tipo de vida (um que é exemplificado por aquele que morreu na cruz), enquanto que, por outro lado, querem que se aplique a um tipo de vida muito diferente (designadamente, o de alguém que pensa em religião apenas quando vai à missa ao domingo). Desejam invocar palavras religiosas de maneira a investir as suas vidas com um aspecto de intensidade e gravidade, sem de outra forma reflectir sobre (muito menos aspirar ao) tipo de vida no qual um conceito religioso teria sentido. Deste modo, no final, conseguem reduzir o seu vocabulário religioso a um vocabulário que consegue transmitir uma certa aura — e nada mais.

 

V

Conceitos e Palavras

Esta palavra «deve»… tornou-se numa palavra de mera força mesmérica… uma palavra que não contém nenhum pensamento inteligível: uma palavra que retém a insinuação de força, e apta a ter um efeito psicológico forte, mas que já não significa um conceito real de todo.

Elizabeth Anscombe[34]

 

Na breve perspectiva anterior sobre a crítica de Kierkegaard à cristandade, descobrimos mais quatro momentos comuns ao pensamento de Nietzsche, Kierkegaard e (como veremos) Anscombe: (1) obtém-se uma ilusão de sentido quando tentamos manter certos aspectos de um conceito enquanto (inadvertidamente) menosprezamos outros; (2) a atracção por certas formas de confusão moral (e religiosa) está ligada a um desejo de escapar a certas obrigações morais (ou religiosas); (3) tentamos manter aqueles aspectos de um conceito moral (e religioso) que conferem à nossas vidas a aparência de estarmos em consonância com essas obrigações morais (ou religiosas), ao mesmo tempo que desejamos não ser de forma nenhuma (em teoria ou na prática) incomodados pela nossa associação a esses aspectos do conceito; e assim dá-se o caso de que (4) alguns trechos do nosso discurso moral (ou religioso) continuam a reter uma aura de força avaliativa embora tenham sido drenadas de sentido.

Nem o argumento de Nietzsche nem o de Kierkegaard é sobre se certas partes do vocabulário têm de ser descartadas. O ponto de ambos é sobre o tipo de conceitos que somos (actualmente) capazes de articular com esse vocabulário. O argumento deles não é por isso sobre o tipo de palavras que temos ao nosso dispor, mas sobre o tipo de uso que somos capazes de dar a essas palavras — que conceitos expressam essas palavras. De facto, o argumento de Nietzsche é muitas vezes o de que as velhas palavras só podem fazer sentido para nós agora na medida em que façam um tipo novo e diferente (o que chama «transválido») de sentido. O argumento de Kierkegaard é muitas vezes o de que, se desejarmos evitar certos tipos de confusão, devemos distinguir claramente entre os conceitos (religiosos, éticos e estéticos) diferentes expressos pela mesma palavra. Em cada um destes casos, Nietzsche e Kierkegaard não pretendem proibir-nos de usar uma certa palavra, mas apenas tornar claras (1) as condições sob as quais aquela palavra expressa um conceito particular e (2) a maneira como o nosso uso contemporâneo dessa palavra falha em expressar esse conceito.

O mesmo é válido para o argumento que Anscombe avança em «Modern Moral Philosophy».[35] O argumento desse famoso, mas amplamente incompreendido, ensaio não é que devemos menosprezar uma certa parte do nosso vocabulário moral (por ser agora impossível fazer sentido dessas formas de falar); mas antes que há certas maneiras com as quais já não podemos fazer sentido com essas palavras.[36] Não é que não haja nada que essas palavras possam significar, mas que há certas maneiras em que não somos agora capazes de as exprimir. Beardsmore não percebe o argumento. Considera que o argumento de Anscombe a compromete com a afirmação de que é agora impossível fazer qualquer sentido de todo da conversa sobre «estar obrigado, autorizado ou dispensado».

Ao prepara o seu argumento, Anscombe diz de facto:

Por causa dos muitos séculos de domínio do cristianismo, os conceitos de estar obrigado, autorizado ou dispensado ficaram profundamente enraizados na nossa linguagem e pensamento.[37]

O seu argumento não é, contudo, que — dado o declínio de uma lei divina de concepção da ética — já não é possível fazer sentido destas formas de falar; não é sobre as palavras «obrigado», «autorizado» ou «dispensado». O seu argumento é sobre certos conceitos e o que acontece quando tentamos hoje servirmo-nos deles. Os dois factos que se seguem servem de ponto de partida para a sua discussão: (a) que certos filósofos morais modernos encontraram dificuldade em desvendar qualquer conteúdo que seja em conversa sobre o que «devemos moralmente» fazer, e (b) que avançaram para tentar salvar estes modos de falar tentando encontrar «um conteúdo alternativo (muito suspeito)» para o conceito de maneira a reter a força psicológica da palavra.[38] Parte do que autoriza Beardsmore (e não só) a tomar o argumento de Anscombe por um sobre palavras (em vez de um sobre conceitos) é não valorizar até que ponto são as especulações históricas de Anscombe suscitadas precisamente por esta característica da filosofia moral moderna — nomeadamente, que «os éticos contemporâneos» tenham sido incapazes de identificar qualquer conteúdo na própria noção de obrigação moral que eles próprios desejam usar. Um dos objectivos de Anscombe, no seu famoso ensaio, é oferecer um diagnóstico de como a filosofia moderna deu consigo especificamente nesta encruzilhada.[39]

 

VI

Beardsmore sobre Anscombe

Anscombe parece em grande medida dar por garantido que se um conceito sobreviveu às práticas ou maneiras de pensar nas quais tinha originalmente o seu sentido, então na medida em que ainda é usado não terá sentido.

R. W. Beardsmore

 

Apesar de falar, na esteira de Anscombe, de um conceito que «sobreviveu às práticas ou maneiras de pensar nas quais tinha originalmente o seu sentido», Beardsmore assume que Anscombe está a dizer que devemos abandonar certas maneiras de falar porque essas maneiras de falar nos impedem de fazer sentido. Encontra esta afirmação num excerto de Anscombe que cita desta maneira:

Naturalmente que não é possível ter tal concepção a menos que acreditemos em Deus como legislador; como judeus, estóicos e cristãos. Mas se tal conceito é dominante durante muitos séculos e depois é abandonado, é um resultado natural que os conceitos de «obrigação», de estar vinculado e ser exigido por uma lei, devam subsistir apesar de terem perdido a sua raiz; e se a palavra «deve» se investiu em certos contextos com o sentido de «obrigação», também deverá subsistir para ser dita com uma ênfase e um sentimento especial nestes contextos… A situação, se eu estiver certa, era a interessante de sobrevivência de um conceito fora da estrutura de pensamento que o tornava realmente inteligível.[40]

A partir daqui vou referir-me a isto como o excerto fulcral. O excerto é desconcertante. Se o tentarmos compreender excluindo o papel que tem no ensaio como um todo, estamos condenados a não o entender. Anscombe fala aqui da «sobrevivência de um conceito» quando (por razões que ela própria ajuda a esclarecer) é, na melhor das hipóteses, peculiar falar do que sobreviveu como um «conceito». Beardsmore assume que este excerto implica que há qualquer coisa que para Anscombe conta como usar um conceito fora da estrutura de pensamento que o torna realmente inteligível. Assim que lhe atribuímos esta tese, somos forçados a interpretá-la — quando fala da «sobrevivência de um conceito fora da estrutura de pensamento que o tornava realmente inteligível» — como estando a fazer um argumento incoerente sobre a sobrevivência de um conceito ou um argumento absolutamente coerente mas manifestamente falso sobre a sobrevivência de uma palavra.

O comentário completo de Beardsmore ao excerto fulcral é o seguinte:

Apesar de poder parecer que Anscombe está a sustentar o seu argumento numa asserção de factos históricos, há ainda assim uma premissa oculta no seu raciocínio, que lhe confere qualquer aparência de plausibilidade que possa ter. Pois como foi notado por outros, Anscombe parece em grande medida tomar por garantido que se um conceito sobreviveu às práticas ou formas de pensar entre as quais tinha o seu sentido original, então não fará sentido se ainda for usado. Visto que as noções de estar obrigado ou de ser autorizado tiveram a sua origem num contexto religioso, no qual eram associadas com o que era obrigado ou autorizado por uma lei divina, então terão de perder o seu sentido numa sociedade onde essa associação não é feita.

Não estou certo de quem são os «outros» que Beardsmore refere, mas é isto que diz Peter Winch:

É óbvio que não se segue do suposto desaparecimento das circunstâncias que outrora deram inteligibilidade a um uso linguístico que tal uso não tenha agora inteligibilidade. O mais que podemos concluir é que agora tem de ser compreendido de forma bem diferente. Se quer dizer alguma coisa, e se sim o quê, só pode ser determinado por uma análise ao seu uso contemporâneo.[41]

Este argumento soa-me bem, mas parece-me ser um que Anscombe pode perfeitamente assimilar. (Apresso-me a acrescentar que Winch não assume que constitua por si só um argumento contra Anscombe. Avança-o somente como «ponto preliminar».[42] Beardsmore, no entanto parece pensar que basta algo como o «ponto preliminar» de Winch para descartar os argumentos de Anscombe. Por isso dá uma série de exemplos de usos seculares de vários termos morais religiosos como resposta à seguinte pergunta retórica: «numa sociedade na qual a crença religiosa está a perder o seu poder, porque não podemos pensar que são outras instituições sem ser a igreja que impõem os limites ao que é ou não é permitido?» Beardsmore escreve:

Suponha-se por exemplo que como membro de um sindicato, sinto obrigação de respeitar um piquete, ou se como médico me sinto obrigado a responder a uma chamada de emergência a meio da noite. Porque que se diria nestes casos a minha referência ao que devo fazer tem «mera força mesmérica»? É verdade, não se pode dizer que o que me obriga nestes casos é a vontade de Deus, mas isso não significa que não possa haver uma resposta à pergunta: «O que me obriga?» O que obriga o sindicalista a respeitar o piquete é simplesmente a sua filiação num sindicato. O que obriga o médico a responder à chamada de emergência são as regras da sua profissão. De que modo se pode dizer que falta sentido a estas maneiras de falar?[43]

Beardsmore quer destacar que há contextos nos quais faz todo o sentido dizer que alguém é «obrigado» a fazer algo. Assume que isto descarta a afirmação que Anscombe enuncia no excerto fulcral. Este argumento só tem força, contudo, se Anscombe estiver de facto a fazer o tipo de afirmação geral, que Beardsmore lhe atribui, sobre a possibilidade do contínuo uso com propriedade de certas palavras (tal como «obrigado»). O que precisamos de ver é se tal interpretação de Anscombe se ajusta ao que ela diz quer nas proximidades imediatas do excerto fulcral ou noutro sítio qualquer.

Consideremos as proximidades imediatas do excerto fulcral. Na primeira frase da parte omitida do excerto fulcral por Beardsmore, Anscombe escreve: «É como se a noção de “criminoso” se mantivesse quando o direito criminal e os tribunais penais já tivessem sido abolidos e estivessem esquecidos.» Para analisar o argumento de Anscombe aqui, imaginemos uma utopia futurista que é utópica em dois aspectos: (1) todos partilham um mesmo ideal de comunidade e (2) todos agem em conformidade com as virtudes de um cidadão assim congeminado. Dessa forma, nesta sociedade já não há necessidade de tribunais penais ou de um corpo de direito positivo. Para os cidadãos desta utopia futurista, o conceito de crime (no sentido de uma violação de um código penal positivo) — como o de um ritual de sacrifício humano — assemelha-se a uma característica remota e bárbara de civilizações primitivas. Palavras como «prisão», «polícia» e «delito» (juntamente com os conceitos que outrora expressavam) há muito caíram em desuso. No entanto, a palavra — mas não o conceito — criminoso sobrevive. Nesta utopia futurista, as pessoas continuam a usar a palavra «criminoso» de maneiras semelhantes a alguns usos em sentido figurado que lhe damos hoje (usos que são para nós parasíticos de um, e compreendidos através de, um entendimentos anterior do conceito criminoso como sendo logicamente relacionado com noções que articulam o que envolve quebrar e fazer cumprir as leis). Nesta utopia futurista, as pessoas podem falar das omissões e das incumbências dos árbitros, jornalistas, editores e comentadores filosóficos como «criminosas». O argumento de Anscombe não é o de que as pessoas nesta utopia futurista não sejam capazes de fazer sentido de tais usos da palavra.[44] O argumento dela é meramente o de que há um conceito — que temos presentemente — a que eles não podem aludir quando usam a palavra para descrever os seus contemporâneos. Pois não há como fazer sentido de significar esse conceito fora da sua relação com o conjunto de práticas e instituições nas quais tem a sua vida – fora, isto é, da sua relação com um nexos de outros conceitos especificamente legais (como sejam infracção, mens rea, culpa, castigo, e por aí em diante).

Anscombe imagina ainda que os cidadãos desta utopia se induzem em confusão por um desejo incoerente de usar a palavra «criminoso» de forma a que mantenha a mesma força (de violação de uma proibição legal) que tinha nos tempos quando ainda era possível pensar em alguém que violasse a lei. Querem que a palavra tanto exprima um conceito que se aplica às suas vidas (como as vivem na utopia futurista) como retenha a mesma força prescritiva que tinha quando era aplicada (noutros tempos) a indivíduos que haviam cometido um crime. Os cidadãos desta sociedade utópica manifestam assim uma espécie de desejo incoerente em relação à palavra «criminoso» semelhante àquela que Kierkegaard descobriu entre os cidadãos da cristandade em relação à palavra «cristão»: querem tanto que a palavra exprima um conceito que se aplica às suas vidas como as vivem agora como querem que retenha uma característica de um conceito cuja inteligibilidade requer que já não se aplique dessa forma.[45]

Consideremos agora o que falta da parte omitida do excerto fulcral:

Um Hume que descobrisse esta situação poderia concluir que havia um sentimento especial, expresso por «criminoso», que sozinho dava sentido à palavra. Assim, Hume descobriu a situação na qual a noção de «obrigação» sobreviveu, e em que a palavra «deve» estava investida com aquela força peculiar que se diz ter para ser usada num sentido moral, mas na qual a crença na lei divina já há muito fora abandonada: pois estava descartada pelos protestantes no tempo da Reforma. A situação, se eu estiver certa, era a interessante de sobrevivência de um conceito fora da estrutura de pensamento que o tornava realmente inteligível.[46]

Somos parecidos com os cidadãos da utopia futurista (traçada anteriormente) no sentido em que vivemos —ou assim afirma Anscombe — num tempo em que certos conceitos legais já não têm aplicabilidade.[47] Também nós somos muitas vezes levados a continuar a usar certas partes do vocabulário que expressavam outrora conceitos legais (e que, quando eram usados dentro de uma estrutura de pensamento legal, carregavam força prescritiva). E também nós nos incutimos confusão por um desejo igualmente incoerente de usar estas partes do vocabulário (tal como «obrigado», «deve» ou «moralmente errado») de forma a que mantenham a mesma força (de violação de uma proibição absoluta) que tinham noutros tempos (quando ainda era possível pensar em alguém como estando a desobedecer a um dos mandamentos de Deus).[48] O argumento do excerto fulcral é por isso sobre as condições de inteligibilidade na aplicação de certos termos — isto é, que não conseguimos fazer sentido quando tentamos usar certas palavras («obrigado», «deve») num contexto muito específico: de tal forma que elas retêm algumas características, mas não outras, de um conceito que tem a sua existência apenas dentro de uma «concepção legal de ética».[49]

Podemos agora delinear uma estrutura geral do argumento de Anscombe e ver porque razão a objecção de Beardsmore não consegue aflorá-lo. A afirmação de Anscombe sobre uma certa pseudo-noção contemporânea de «obrigação moral» pode dividir-se em duas partes: (1) a pseudo-noção partilha algumas características com a noção de obrigação que figura num concepção de ética legal, contudo (2) falta-lhe a relação necessária com a estrutura de pensamento essencial para a inteligibilidade de um conceito com essas características. Há por isso duas maneiras plausíveis de criticar Anscombe.[50] Podemos questionar a primeira ou a segunda metade da sua afirmação. (1) Podemos conceder que uma noção de «obrigação moral» presentemente em uso que tem as características que ela lhe atribui; e depois podemos tentar demonstrar que não é uma pseudo-noção (mas sim um conceito completamente coerente de obrigação moral). Em alternativa, (2) podemos tentar demonstrar que não se encontra nenhuma noção assim (isto é, nenhuma noção com tais características) na filosofia moderna. Mas não podemos contestar a afirmação de Anscombe como o faz Beardsmore (e não só), ignorando tanto quais pseudo-noções ela pensa terem apenas «uma mera força mesmérica» quer por que pensa ela dessa forma.[51] Não estamos a fazer uma objecção à posição Anscombe se a única coisa que fazemos é identificar uma qualquer noção moral contemporânea que é quer perfeitamente inteligível quer expressa pela mesma palavra que a pseudo-noção em causa.

Recuperemos agora a frase (também omitida por Beardsmore) que antecede imediatamente, e com a qual Anscombe introduz, o excerto fulcral:

Ter uma concepção legal de ética é defender que o que é requerido para a conformidade com a carência nas virtudes que é a marca de se ser mau qua homem ( e não simplesmente, digamos qua artesão ou lógico) —que o que é requerido para isto, é exigido por lei divina.[52]

Esta é a concepção que Anscombe diz não ser possível manter «a menos que se acredite em Deus como legislador». É uma concepção do «que é requerido para a conformidade com as virtudes» («a carência [das quais] é a marca de se ser mau» qua ser humano). Não é, no entanto, para Anscombe, de maneira nenhuma a única concepção disponível para conformidade com as virtudes. O principal objectivo do seu ensaio era sugerir que a filosofia moral moderna poderia libertar-se de certas confusões se regressasse à concepção aristotélica do que é requerido para a conformidade com as virtudes. Estava tão longe de sugerir o que Beardsmore assume que está a dizer — isto é, que não-crentes nunca poderão fazer sentido do que querem dizer quando dizem que alguém «deve» fazer algo — que propõe uma maneira alternativa de entender o que pode querer ser dito com «deve»: devemos entender o que se quer dizer em cada um dos casos por referência ao género de uma virtude específica («honestidade», «castidade», «justiça»).[53] A justificação de uma asserção moral sobre o comportamento de alguém, nesta concepção (aristotélica), assenta numa conformidade ou não com uma qualquer virtude específica. Tal justificação não requer que invoquemos alguma noção geral prévia do que «devemos fazer moralmente».[54] É somente esta última noção geral (e não toda a estrutura do nosso discurso moral) que Anscombe vê como um caso interessante da «sobrevivência de um conceito fora da estrutura de pensamento que o tornava realmente inteligível». Localiza esta última noção a uma concepção específica de ética: uma na qual a força prescritiva de uma asserção moral depende exclusivamente da sua relação com um conjunto de leis morais gerais — é a estrutura de pensamento que considera não ter sobrevivido.[55]

Beardsmore não está completamente inconsciente do facto de que a tese de Anscombe tem mais nuances do que o seu primeiro conjunto de argumentos contra ela deixam pressupor. Compreende que o argumento dela está de alguma maneira relacionado com o que é único numa concepção de ética de lei divina. Tenta por isso apresentar-lhe um dilema: ou (a) ela pensa que os usos seculares de locuções como «obrigado», «autorizado» ou «dispensado» são maneiras de falar que não têm sentido (caso em que entra em jogo o seu primeiro conjunto de argumentos), ou (b) ela pensa que, mesmo que estas locuções não tenham em rigor falta de sentido, são ainda assim — na ausência de crença num legislador divino — incapazes de adequadamente obrigar, autorizar ou dispensar (caso em que entra em jogo o seu segundo conjunto de argumentos).

O segundo gume do dilema (com o qual Beardsmore confronta Anscombe) assenta na presunção de que Anscombe considerará qualquer noção de obrigação que não seja fornecida por uma concepção de lei divina defeituosa, com base em que o que seja prescrito por tal concepção falhará em ser totalmente obrigatório.[56] O que escapa a Beardsmore é que Anscombe oferece os seus argumentos sobre a natureza das obrigações prescritas por lei divina não para promover o teísmo,[57] mas sim ara tornar claras as diferenças lógicas entre a concepção legal de ética e concepções alternativas.[58] Beardsmore assume que o objectivo de Anscombe ao chamar a atenção para o que é peculiar aos conceitos modais que figuram numa concepção de ética de lei divina é afastar-nos da ética secular. Combina essa presunção errada com outros dois mal-entendidos. O primeiro deles está relacionado com a forma como o argumento de Anscombe pesa sobre uma disputa mais geral entre um teísta e um ateu. Anscombe, ao esboçar uma concepção legal de ética, está preocupada com alguém que tem uma concepção muito específica do lugar ocupado por Deus numa descrição da origem de obrigação moral. O contraste com que está preocupada não é um que oponha um crente cristão a um não-crente.[59] Em segundo lugar, Beardsmore introduz a sua própria proposta relativa ao que chega realmente a noção da «natureza absoluta dos mandamentos de deus» para um crente religioso: um crente religioso reconhece os mandamentos de Deus como «absolutos» porque reconhece que certo tipo de vida — e nenhum outro tipo de vida — é a vida para ele.[60] Mas esta noção de «obrigação absoluta» não apanha o que Anscombe pretendia com a discussão da ética de lei divina: a saber, uma característica lógica distintiva de uma concepção particular de ética que a distinga de outras concepções de ética aceites quer por crentes quer por não-crentes.[61] O segundo gume do dilema (com o qual Beardsmore confronta Anscombe) não consegue assim enfrentar o pensamento dela pela mesma razão que o primeiro gume também não consegue: porque não consegue apanhar a sua principal alegação (que não há um conceito de obrigação moral  específico cuja inteligibilidade depende de uma concepção de ética específica).

 

VII

Como pode um conceito sobreviver às condições da sua inteligibilidade?

Como se pode, por assim dizer, ver um significado que não é significado?

Elizabeth Anscombe[62]

As posições de Nietzsche, Kierkegaard e Anscombe têm em comum as seguintes três características. Primeiro de tudo, estes pensadores estão, como vimos, interessados em casos em que continuamos a usar certas palavras mas já não somos capazes de as usar para expressar os conceitos que essas palavras costumavam expressar. Em segundo lugar, atribuem esta perda de conceitos à perda de uma estrutura religiosa na qual estes conceitos tinham outrora a sua existência. Em terceiro lugar, vêem-nos, quando recorremos a estas palavras, como susceptíveis a alucinar um significado onde não existe nenhum. É, penso, a natureza complexa e paradoxal desta terceira característica das suas posições que conduz a um mal-entendido de cada uma das duas primeiras características. Isto, por sua vez, proporciona o tipo de mal-entendido por atacado dos seus argumentos que encontramos em Beardsmore (e noutros).

O mal-entendido é compreensível. Estes autores pretendem dirigir a nossa atenção para casos em que um conceito específico aparentemente subsiste na ausência de uma estrutura de pensamento crucial para a sua inteligibilidade. Mas bem que podemos perguntar: como podemos fazer sentido da ideia de sobrevivência de um conceito fora da estrutura na qual tem a sua existência? (Se só pode ter a sua existência dentro dessa casa e está agora fora dela, então porque é que não está morto?) Anscombe exibe este paradoxo na frase com que conclui o excerto fulcral, quando escreve: «A situação, se eu estiver certa, é a da interessante sobrevivência de um conceito fora da estrutura de pensamento que o tornava realmente inteligível.» Se levarmos a sério na última metade da frase (que a inteligibilidade do conceito em questão depende dessa estrutura de pensamento), então seremos incapazes de levar a sério o que se diz na primeira metade (seremos incapazes de identificar um conceito que seja uma instância da «situação interessante»). A frase de Anscombe, quando a tentamos compreender, desmancha-se-nos. Se tentamos imaginar tal conceito, acabamos a identificar ou algo que (1) é um conceito ou (2) não é um conceito. Se (1), então tem de ser possível inteligivelmente perceber qual o conceito que está em causa; mas nesse caso o que temos não é uma instância da «situação interessante». Se (2), então o que está em causa é no máximo algo que pode ser confundido por um conceito; mas nesse caso, o que temos não é uma instância de «sobrevivência de um conceito». Assim sendo, há problemas que a discussão de Anscombe naturalmente levanta — problemas como: «A que conceito de «obrigação moral» está ela a opor-se precisamente?», ou: «Como é que ela sabe que o conceito moderno é o mesmo que figura numa concepção de lei divina?» — aos quais não pode responder sem comprometer a sua própria tese. Pode-se pensar que isto indica uma incoerência no pensamento de Anscombe à qual ela própria está alheia. Mas isso seria confundir uma característica transitória do seu método com uma conclusão.

É normal interpretar o argumento de Anscombe como se o que está a dizer é que há um conceito específico de obrigação oral que é logicamente imperfeito por estas e por aquelas razões. Se isso fosse o que está a dizer, então poderia identificar qual o conceito imperfeito mas teria de recuar em relação ao seu ataque forte à ininteligibilidade. Num ensaio chamado «The Reality of the Past», Anscombe enceta uma discussão detalhada do método subjacente a tal ataque. Dá o seguinte exemplo:

Suponha-se que uma criança queria um bolo que tinha comido. Que não o possa comer outra vez é um mero facto físico. Mas suponha-se que queria um estrondo que ouvira, isto é, aquele estrondo específico… Se se produzisse um estrondo em resposta a este pedido e que o satisfizesse, então isto demonstraria que ‘A’ não estaria a ser usado como o nome apropriado de um estrondo… Que ‘A’ é o nome seja o nome apropriado de um estrondo significa que não falamos de ter A de volta. «Ter A de volta» é uma expressão semelhante àquelas que têm utilidade noutros contextos, como quando ‘A’ é o nome de um bolo. Quando a transferimos para este contexto não transferimos o seu uso; pois para descrever o seu uso teremos de descrever em que circunstâncias obtivemos A de volta, como faríamos se ‘A’ fosse o nome de um bolo. Mas apesar de não transferirmos o seu uso, pensamos ter transferido algum significado e portanto pensamos que o que se quer dizer é algo impossível.[63]

O caso assemelha-se ao discutido em «Modern Moral Philosophy». São dois casos nos quais transferimos uma expressão de um contexto para outro sem transferir o seu uso, e nos quais «apesar de não transferirmos o seu uso, pensamos ter transferido algum significado». Isto leva-nos a que nos dois exemplos queiramos identificar o caso como o que se pretende é algo logicamente imperfeito, algo impossível — num caso, algo que possui algumas características lógicas de um nome próprio de um acontecimento mas não tem outras; no outro caso, algo com algumas características lógicas, mas não outras, de um conceito prescritivo específico. Mas cada uma destas qualificações do uso da expressão transferida é instável da mesma maneira como vimos ser instável a última frase do excerto fulcral.[64] O significado (logicamente imperfeito) que cremos perceber em cada um destes casos acaba, no fim de contas, por ser reconhecido como uma mera ilusão de significado. Anscombe torna este argumento claro em «The Reality of the Past»; a discussão continua:

Pensamos que não podemos pensar em obter A de volta por causa do carácter essencial do que é denotado pelo nome. Mas a verdadeira razão é que «obter A de volta» é uma expressão para a qual temos ainda de inventar um uso neste contexto; na medida em que não existe nenhum uso para ela. No entanto, isto não parece suficiente: pensamos que não podemos dar-lhe um uso — querendo dizer que não lhe podemos dar o uso que tem noutros contextos, o uso que a forma de expressão nos sugere ou lembra… A insensatez parece consistir no facto de não termos uso para esta combinação de palavras. Mas o que se segue daqui é que o único sentido que pode ser dado da asserção filosófica de que o passado não pode mudar é que falar de uma mudança no passado é produzir uma expressão para a qual não existe uso e que por isso não tem sentido.[65]

O que Anscombe diz aqui aplica-se à sua discussão em «Modern Moral Philosophy». A objecção de Anscombe à locução «obrigação moral» como figura na filosofia moral moderna não é que expresse um conceito logicamente incoerente, mas antes que simplesmente falha em exprimir qualquer conceito de todo. Quando transferimos esta expressão fora do contexto de uma concepção legal de ética «produzi[mos] uma expressão para a qual não existe uso e que por isso não tem sentido».[66]

No entanto, o reconhecimento inicial de que as nossas palavras não querem bem dizer o que queremos que digam não dissipa a sua aparência de sentido. Retêm (o que Anscombe chama em «Modern Moral Philosophy») uma certa «atmosfera de significado». O que acontece nestes casos, segundo Anscombe, quando tentamos transferir o significado de uma expressão mas o uso não se transfere, é que é promovida uma aparência de significado — um significado aparente que, depois de reflectirmos, percebemos não ser significado legítimo mas que apesar disso tomamos como sendo uma espécie de significado. Assim, em «The Reality of the Past», diz:

Continua a ser verdade, ainda assim, que uma ideia de uma mudança no passado retém um significado aparente que é uma das origens de perplexidade. Pois esta aparência é tal que desejamos dizer que podemos ver que de alguma forma não é um significado legítimo e por causa disso parece que estamos a dizer algo de positivo ao dizer que o passado não pode ser mudado. Isto poder ser expresso dizendo que «uma mudança no passado» é uma expressão a que não pode ser dado um sentido, o que significa que o sentido vago que compreendemos nela não poder ser incorporado num uso — como se pudéssemos compreender o sentido que não lhe pode ser dado.[67]

O que sobressai claramente aqui é que a definição que Beardsmore faz da tese de Anscombe é de algo que figura na sua discussão (de casos de reaparição de inteligibilidade), mas não como a sua tese. Em vez disso, forma uma das linhas com que se cose a confusão que ela pretende desemaranhar. Beardsmore acha que a posição de Anscombe é a de que existem certas expressões (tal como «obrigação moral) «a que não pode ser dado um sentido». Se tais expressões fossem per impossibile exemplos do uso de conceitos fora da estrutura de pensamento que as torna realmente inteligíveis, então teriam, por assim dizer, sentido impossível — combinariam características logicamente incompatíveis. Mas pensar isto não é exclusivamente falhar em apreciar a instabilidade da última frase do excerto fulcral, é falhar em apreciar todo o método de elucidação que promove. Tomar estas expressões desta forma é deixar-se arrastar para a aparência de significado que promovem — uma aparência que em última análise Anscombe pretende implodir.

Podemos ver agora mais claramente a razão de a tese de Anscombe ter de ser entendida como sendo sobre a impossibilidade de inteligibilidade ao usar certos conceitos em vez de ser sobre a impossibilidade de inteligibilidade ao usar certas palavras. Quando acusa certos usos da expressão «obrigação moral» de ininteligibilidade, não está a afirmar que estas expressões tenham um, por assim dizer, sentido incoerente. A sua acusação — como a de Nietzsche e a de Kierkegaard — não é dirigida às palavras, mas a quem as usa: nestes casos, somos nós que falhámos em querer dizer algo com elas. A sua tese, pace Beardsmore, não é que não possa ser dado significado a estas palavras, mas que nós falhámos em lhes dar um. Mas como podemos agora ajustar isto com a sua avidez em encorajar-nos a excluir ou descartar certas expressões da linguagem? A dada altura diz: «Pode ser possível, se estivermos determinados, descartar o termo “obrigação moral”».[68] Noutro local diz:

Pode resistir o procurar de «normas» nas virtudes humanas… Mas neste sentido, «norma» deixou der o equivalente grosseiro de «lei». Neste sentido, a noção de «norma» aproxima-nos mais de uma concepção aristotélica do que de uma concepção legal de ética. Não há, penso, mal nenhum nisso; mas se alguém olhasse nesta direcção para dar a «norma» um sentido, então teria de reconhecer o que aconteceu ao termo «norma», que queria que significasse «lei» — sem colocar Deus na questão: deixou de significar «lei» de todo; e assim as expressões «obrigação moral», «o dever moral» e «dever» ficariam melhor no Index, se ele as aguentar.[69]

Como devemos interpretar este apelo a colocar certas expressões no Index? Tais comentários parecem confirmar a impressão de que Anscombe pensa que estas expressões têm um sentido inadmissível — que o problema jaz nos conceitos imperfeitos que estas palavras pretendem exprimir. Mas isto seria um mal-entendido do método filosófico que pretende usar e que toma como tendo aprendido do Dr. Wittgenstein.[70] Noutro sítio escreve:

Wittgenstein disse que quando dizemos que algo não tem sentido não quer dizer que é o seu sentido que não tem sentido, mas uma forma de palavras que está a ser excluída da linguagem… Mas o argumento para «excluir esta forma de palavras da linguagem» é aparentemente um argumento de «o sentido que não tem sentido»… A conclusão do argumento, se for bem sucedido, é de que já não queremos dizer [o que pensávamos querer dizer]… Daí, a conversa de Wittgenstein sobre «terapias». A «exclusão da linguagem» não é feita por legislação mas por persuasão. O «o sentido que não tem sentido» é o tipo de sentido que a nossa expressão sugere.[71]

 Um argumento para excluir uma expressão particular da linguagem (por exemplo, «obrigação moral») terá, em primeiro lugar, a aparência de ser um argumento de que o sentido da expressão não tem sentido. Mas esta aparência será por si ultrapassada. O que começa por parecer um argumento sobre o sentido incoerente de certas palavras acaba por se tornar num sobre a nossa relação incoerente com as palavras. A conclusão do argumento, se for bem sucedido, não será que nós tomamos a expressão como tendo um tipo de sentido diferente (isto é, um imperfeito) do que tínhamos imaginado inicialmente, mas que já não queremos sequer utilizar essa expressão; já não há nada que queiramos dizer com ela. Mas não por estarmos de alguma maneira impedidos (logicamente) de usar esta forma de palavras. «A “exclusão da linguagem” não é feita por legislação mas por persuasão». Anscombe procura persuadir-nos a evitar a expressão em causa porque somos evidentemente tentados a confundir certas combinações de palavras (nas quais a expressão em causa figura sem sentido) como proposições com significado — porque somos susceptíveis a ver significado onde não existe significado.

 

VIII

Nietzsche, Kierkegaard e Anscombe

Um progresso na filosofia traz a mente de volta à religião.

Francis Bacon[72]

 

Nas páginas anteriores tentei, no todo, abster-me de sublinhas as muitas diferenças significativas entre as posições de Nietzsche, Kierkegaard e Anscombe. O meu objectivo tem sido destacar uma tese que têm em comum. Os três estão interessados em como a possibilidade de certo tipo de pensamentos depende da existência de um fundo religioso. Os três dirigem a nossa atenção para casos em que — na ausência de um fundo relevante — continuamos a usar certas palavras mas não os conceitos que essas outrora exprimiam. Cada um destes filósofos oferece uma análise diferente do que constitui o fundo relevante: Nietzsche compreende-o, em primeiro lugar, como uma configuração histórica e cultural, Kierkegaard como a forma de vida de um indivíduo, Anscombe como uma estrutura de pensamento.[73] As suas respectivas análises do problema da ininteligibilidade moral coincidem e divergem de várias maneiras.

Em resposta à pergunta: «Quais são os conceitos morais que as nossas palavras podem exprimir?», Anscombe conduz a nossa atenção para a concepção de ética que subscrevemos; ao passo que Nietzsche e Kierkegaard dirigem a nossa atenção para como é que vivemos. Em resposta à pergunta: «Que fundo religioso é que negligenciámos?», Kierkegaard quer mostrar-nos que o passado religioso que pensamos lá estar não está (imaginamo-lo a crescer quando está morto); ao passo que Nietzsche e Anscombe querem mostrar-nos que o passado religioso que pensamos não estar lá está (sabemos que está morto mas não sabemos que continua a assombrar-nos). Em resposta à pergunta: «Como é s que estamos sujeitos a ilusões de inteligibilidade moral?», Nietzsche dirige a nossa atenção para a maneira geral como o significado de um conceito moral pressupõe um conjunto inteiro de circunstâncias históricas e culturais; ao passo que Kierkegaard e Anscombe dirigem a nossa atenção para as maneiras localizadas nas quais o significado de uma palavra muda quando muda o seu uso, e como imaginamos que transferimos o significado quando não conseguimos transferir o uso.

Cada uma destas diferenças entre um destes filósofos e os outros dois é uma função de diferenças mais cruciais nas respectivas ambições filosóficas. O objectivo de Anscombe, em primeiro lugar, é clarificar uma confusão lógica; o de Nietzsche e de Kierkegaard clarificar uma existencial.[74] Kierkegaard procura mostrar aos seus contemporâneos que estão muito mais afastados do cristianismo do que pensam; Nietzsche e Anscombe procuram mostrar aos seus que não estão tão longe quanto pensam. Por fim, Nietzsche só está interessado colateralmente nas nossas confusões no que diz respeito ao que queremos dizer com as nossas palavras (pensa que temos outras confusões na alma que são mais profundas); enquanto que Kierkegaard e Anscombe pensam que algumas das nossas confusões da alma mais profundas se revelam — e podem ser reveladas pela atenção a — confusões nossas no que diz respeito ao que queremos dizer (e não conseguimos) com as nossas palavras.

 

* Este artigo começou a tomar forma, sob o título «Ateísmo e Moral: Resposta a Beardsmore», como uma contribuição para um simpósio sobre «Ateísmo e moral». O simpósio era parte da 15ª Conferência anual de Filosofia da Religião de Claremont, sobre «Religião e Moral», realizada na Escola de Pós-Graduação de Claremont e organizada por D. Z. Philips. Estou agradecido pelas perguntas colocadas pelos participantes na conferência — especialmente a R. W. Beardsmore e Raimond Gaita — e a comentários feitos a uma versão preliminar por Cora Diamond, Martin Stone e Lisa Van Alstyne. Este artigo também está em dívida de uma maneira mais difusa mas não menos substancial à obra de Stanley Cavell e de Cora Diamond.

[1] Parte do objectivo deste ensaio será que tal defesa ou ataque é por inerência uma tarefa difícil. Assumindo a premissa (que é dever deste ensaio estabelecer) de que não há incoerência a priori no tipo de acusação à ininteligibilidade que estes filósofos pretendem levantar, então a tarefa é difícil por duas razões: (1) uma refutação ou defesa de tal acusação necessita de cuidado considerável à forma como aqueles que são o alvo da acusação realmente falam e pensam, e (2) cada acusação deve ser analisada individualmente e de acordo com os seus próprios méritos.

[2] Deve notar-se que a objecção em causa ocupa apenas uma porção pequena do assunto com o qual Beardsmore contribui para este simpósio. Também deve notar-se que a objecção em causa — apesar de utilmente articulada de maneira explícita e sucinta por Beardsmore — mantém-se quer em segundo quer em primeiro plano de muita da literatura secundária que assume a dificuldade de abordar as posições destes três filósofos sobre o desaparecimento dos conceitos morais e religiosos.

[3] F. Nietzsche, Beyond Good and Evil, §53, trad. W. Kaufman (New York: Vintage, 1966), p. 66.

[4] A dependência aqui em causa é conceptual — se o significado de certos conceitos depende de uma estrutura religiosa. Não faz parte do tema de Beardsmore negar uma afirmação histórica segundo a qual muitos dos nossos conceitos morais evoluíram inicialmente num contexto religioso.

[5] O ensaio de Beardsmore está contido neste volume. Todas as referências que lhe serão feitas são relativas a este ensaio.

[6] Esta formulação é feita durante o resumo que Beardsmore faz da posição de Anscombe.

[7] Fiódor Dostoievski, Os Irmãos Karamazov, (trad. Constance Garnett), Nova Iorque: Macmillan, 1912.

[8] Nos seus Notebooks, Dostoievski escreve:

Ivan é profundo, não é um desses ateus contemporâneos que mostram meramente a estreiteza do sua visão do mundo e a indolência das suas parcas propensões indolentes na sua descrença… O niilismo apareceu entre nós porque no fundo somos todos niilistas. É apenas a forma nova, original da sua aparência que nos assusta. (The Norton Critical Edition of The Brothers Karamazov, ed. Ralph Matlaw. Norton, 1976, p. 769.)

[9] Beardsmore tenta depois demonstrar que Anscombe é vulnerável aos mesmos argumentos que Nielsen e Kolakowski.

[10] Kai Nielsen, Ethics Without God [Ética sem Deus], Londres: Pemberton, 1973, p. 48. Berdsmore cita estas linhas fora de contecto. Só depois de escrever este ensaio é que obtive uma cópia do livro de Nielsen. O contexto (das linhas que Beardsmore cita) é o momento no qual Nielsen está a adoptar um ponto de vista contrário. Começa por dirigir uma objecção a si próprio; depois «concede» ao seu interlocutor teísta que enquanto nos restringirmos nós próprios  a um concepção de moral diminuta (uma segundo a qual apenas «olhamos para a oral com o olhar frio do antropólogo») nos estamos a colocar numa posição dialecticamente vulnerável («teólogos estão então na posição perfeita para vincar um argumento dialéctico poderoso» relacionado com «a verdadeira natureza de tal convencionalismo» (p. 48)). Beardsmore parece pensar que o próprio Nielsen para enfrentar a farpa convencionalista. Mas o objectivo específico de Nielsen nessas páginas é «tornar claro a dialéctica do problema» (p. 50). Não me é completamente evidente que Nielsen pretenda que o seu leitor se reconheça na posição dialecticamente vulnerável (embora não seja fácil perceber onde quer Nielsen chegar). Suspeito que, ao atribuir a Nielsen uma descrição convencionalista de obrigação moral, Beardsmore tenha confundido uma descrição de Nielsen de um estádio do (que Nielsen chama) «a dialéctica entre o teísta e o ateu» por uma das próprias posições de Nielsen. Todas as referências a Nielsen que se seguem devem por isso ser lidas como referências a Nielsen segundo interpretação de Beardsmore. 

[11] Leszek Kolakowski, Religion [Religião], Nova Iorque: Oxford University Press, 1982, pp. 189, 191-2.

[12] Vale a pena mencionar que se requerem ainda mais presunções filosóficas antes que pareça evidente a circunstância (como parece para Kolakowski) de que a força prescritiva dos requisitos da moral esteja ligada de uma forma especial à disponibilidade de um legislador divino de uma forma que que a dos outros tipos de requisitos normativos não estão. Descartes pensou que a necessidade de leis da lógica e da aritmética se devia ao facto de que Deus quis que essas leis estivessem entre os princípios básicos da razão que governa o nosso pensamento. No entanto, uma recusa contemporânea de apelar a Deus na descrição que fazemos de necessidades lógicas e matemáticas dificilmente, em e por si só, nos compromete com a afirmação de que «o que é e o que não é uma inferência lógica correcta (ou prova matemática válida) é puramente constituído por convenções que somos livres de aceitar ou rejeitar». Na ausência de consideráveis argumentos filosóficos adicionais, a afirmação de que «se Deus não existisse, tudo seria permitido» não é menos evidentemente verdadeira na ética do que em matemática. (Isto não significa negar que há, obviamente, quem deseje fornecer uma descrição convencionalista da natureza das necessidades lógica e matemática.)

[13] F. Nietzsche, The Gay Science, §125, trad. W. Kaufmann, Nova Iorque: Vintage, 1974, pp. 181-2.

[14] De facto, como indicam os comentários (citados na nota 8) dos seus Notebooks, é precisamente desta forma que o próprio Dostoievsky concebe Ivan.

[15] F. Nietzsche, Mensschliches, Allzumenschliches II. Leipzig: A. Kroner, 1925. (Human, All Too Human, Part II, §224 (tradução minha). [segue-se aqui a tradução inglesa do autor (N. de T.)]

[16] F. Nietzsche, The Anti-Christ, §39, trad. R. J. Hollingdale. Harmondsworth: Penguin, 1968, p. 151. [Tradução portuguesa segue a versão de O Anticristo, trad. Pedro Delfim Pinto dos Santos. Lisboa: Guimarães Editores, 1988, p. 75]

[17] Assim sendo, Nietzsche inclui do âmbito da sua análise muita da terminologia filosófica dos antigos e dos medievos. O argumento de Nietzsche destina-se a intersectar ambas as direcções históricas: não só certas palavras falham em exprimir certos conceitos por estes dependerem de «uma cultura antiga que degenerou», mas também outros conceitos depende de uma cultura diferente e muito mais recente — uma em que as premissas fundamentais não se coadunam com as da antiguidade. Daí a suspeita de Nietzsche de que qualquer filósofo que combine uma afinidade por modos cristãos de pensamento com um carinho pelos conceitos filosóficos contemporâneos mais sofisticados —  tal como o (predilecto de Hegel) Geist: «Toda a nossa concepção cultural de “espírito” não tem sentido nenhum no mundo em que Jesus vive» (The Anti-Christ, p. 141 [O Anticristo, p. 59]).

[18] Ao fazer este tipo de argumento, um dos exemplos preferidos de Nietzsche de um conceito moral que depende de um tipo de vida cristão é o da castidade.

[19] Nietzsche vê o cristianismo — no seu manter de uma guerra para combater os desejos e instintos naturais do animal humano — como estendendo e radicalizando um ascetismo já presente no pensamento e prática quer judaicos quer helenistas. Devemos ser, contudo, precisos sobre o quão complexa e subtil é a atitude de Nietzsche em relação a este desenvolvimento histórico. Pois pensa que é com estas formas de violência contra a nossa própria natureza — em especial, as formas de violência infligidas voluntariamente por um indivíduo a si mesmo — que foi alcançado um aprofundamento do ser humano, uma dilatação da consciência humana. Assim, não obstante Nietzsche achas pernicioso o ideal ascético, considera que é só através da sua tirania que o animal humano primeiro se torna interessante:

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro — isto é o que chamo interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua «alma». Todo o mundo interior, originalmente delgado como se esticado entre duas membranas, expandindo-se e estendendo-se, adquirindo profundidade, envergadura e altura, na medida foi inibida a sua descarga para fora…

[F]oi com base nessa forma essencialmente perigosa de existência humana, a sacerdotal, que o homem primeiro se tornou um animal interessante… apenas aqui a alma humana ganhou num sentido superior profundidade e se tornou — e estas são as duas formas fundamentais da superioridade em que o homem até agora se diferencia das outras bestas!... (On the Genealogy of Morals; in On the Genealogy of Morals and Ecce Homo, trad. W. Kaufmann. Nova Iorque: Vintage, 1989, pp. 33, 84)

[20] Nietzsche, On the Genealogy of Morals, pp. 59-60.

[21] Um argumento correlato conserva-se na concepção de Nietzsche do que é um ateu — isto é, alguém que superou verdadeiramente o cristianismo. Ser ateu não é ser alguém que chegou a um certo «resultado» ou «conclusão» intelectual mas uma maneira de ser que uma pessoa interioriza «na realidade» e «instintivamente» (ver Ecce Homo, p. 236 [p. 46 da tradução portuguesa de José Marinho]). Assim, como vimos (em Para Além do Bem e do Mal, §53), Nietzsche refere-se frequentemente aos que se tomam por ateus como estando ainda dominados pelo «instinto religioso».

[22] Desenvolvo esta zona do pensamento de Nietzsche no meu «O Perfeccionismo de Nietzsche», in R. Schacht (ed,), Nietzsche as Educator [Nietzsche como Educador]. Londres: Routledge. [na altura da publicação, o ensaio estava no prelo; pode ser encontrado no volume do mesmo editor, Nietzsche’s Postmoralism. Cambridge: Cambridge University Press, 2010 (2000). (N. de T.)]

[23] A parábola começa:

Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: «Procuro Deus! Procuro Deus!» Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditam em Deus o seu grito provocou um grande riso. (Nietzsche, The Gay Science, §125, pp. 181-2).

[24] «A morte de Deus» é o nome de Nietzsche para a crise na qual a nossa civilização está em processo de ser mergulhada. Assim, sendo que nomeia um evento, é um evento que levará séculos a manifestar-se.

[25] S. Kierkegaard, The Point of View for My Work as an Author, trans. W. Lowrie. Nova Iorque: Harper, 1972, p. 25. [tradução portuguesa a partir da tradução inglesa (N. de T.)]

[26] É no contexto deste tipo de assunto (relacionado com o tipo de vida que uma pessoa que se diz cristão leva) que devemos entender os constantes comentários de Kierkegaard sobre o cristianismo não ser uma doutrina. A ligação entre estes dois tópicos é explícita na seguinte trecho:

O cristianismo não é uma doutrina… o cristianismo é uma mensagem sobre a existência… Se o cristianismo (precisamente por não ser uma doutrina) não for replicado na vida da pessoa que o advoga, então não advoga o cristianismo, pois o cristianismo é uma mensagem sobre viver e só pode ser advogado ao ser concretizado na vida dos homens. (The Diary of Søren Kierkegaard, ed. P. Rohde. Nova Iorque: Citadel, 1960, p. 117)

[27] Serão oportunos aqui alguns comentários sobre a terminologia confusa de Kierkegaard. Para Kierkegaard, as categorias estão relacionadas com a ligação entre sujeito e objecto. Uma categoria é objectiva se o que interessar for o objecto, subjectiva se o que interessar for a relação com o objecto. O estético é a categoria da objectividade, o modo de reflexão distanciado; por outro lado, o ético e o religioso são categorias de subjectividade, modos de relação que se inclinam para o natureza do nosso interesse. Na categoria do estético relacionamo-nos com um objecto de maneira a que a tónica do nosso interesse recaia sobre o objecto e não sobre a nossa relação com ele. Isto contrasta com a categoria do ético, onde a nossa relação com o objecto é «interessada», e com a categoria do religioso, na qual a relação é de «interesse infinito». Para Kierkegaard, uma relação é «interessada» se estiver ligada à tarefa de formar o nosso eu (no tipo de pessoa em que nos desejamos tornar) ou de comandar a nossa vida (em consonância com a concepção que fazemos do que é valioso). Assim, diz Kierkegaard, uma relação é objectiva se a tónica recair sobre o quê, subjectiva se a tónica recair sobre o como. Estes não são, por si só, termos de louvor ou de censura. As críticas de Kierkegaard nunca são dirigidas a um modo de pensamento que pertença devidamente a uma das categorias, mas a um modo de pensamento que envolve o que chama «confusão das categorias».

As obras de Kierkegaard têm sido alvo de erros de interpretação catastróficos por comentadores não conseguirem compreender que os termos «o objectivo» e «o subjectivo» representam partes da terminologia para distinguir a prioridade relativa de sujeito e objecto dentro de cada categoria. Quase toda a literatura secundária sobre Kierkegaard assume que os termos «subjectivo» e «objectivo» têm na obra de Kierkegaard mais ou menos o mesmo significado que têm nas discussões epistemológicas canónicas que distinguem entre formas de conhecimento objectivo e (puramente) subjectivo. O objectivo, neste sentido, é o que pode ser conhecido intersubjectivamente, o subjectivo o que só pode ser conhecido por mim. Isto leva à infeliz pressuposição de que quando Kierkegaard caracteriza as categorias do ético e do religioso como «subjectivas» quer dizer que dizem respeito um tipo de verdade que é (epistemicamente) privada e, logo, incomunicável. Este equívoco é reforçado por uma incapacidade de lidar com a estratégia autoral nas obras pseudonímicas de Kierkegaard. (Ver o meu «Kierkegaard, Wittgenstein e Nonsense», in Ted Cohen, Paul Guyer e Hilary Putnam (eds.), Pursuits of Reason. Lubbock Tx: Texas Tech University, 1992.)

[28] Se somos baptizados ou não (ou se vivemos num país cristão, etc.) conta como um assunto «objectivo» para Kierkegaard por não estar relacionado de forma significativa com o tipo de pessoa que almejamos tornar-nos ou com o tipo de valores que enformam a nossa vida — a natureza do nosso interesse com tal facto (neste caso, um facto sobre nós próprios) e a maneira como esse interesse se reflecte na nossa vida não são pertinentes para determinar se o mero facto prevalece ou não. Se temos fé em Deus (isto é, se somos cristãos) não é um facto que prevaleça independentemente de quem somos e de como vivemos. É algo, segundo Kierkegaard, que envolve uma referência crucial à natureza do interesse do sujeito e, assim, não é (segundo esta terminologia) uma questão objectiva mas antes subjectiva. Uma comunidade de pseudo-cristãos — que mantêm a crença no seu próprio cristianismo por um entendimento meramente «objectivo» do que é ser-se um cristão — é o que Kierkegaard quer dizer com «cristandade». A cristandade é a ilusão de uma comunidade cristã próspera.

[29] Afirma que tudo de que precisa o seu leitor para ser capaz de chegar a esta descoberta é de «alguma capacidade de observação» (The Point of View for My Work as an Author, p.22).

[30] Tento aqui uma descrição breve da concepção de Kierkegaard de dialéctica qualitativa. Trato destes assuntos com mais detalhe no meu «Putting Two and Two Together: Kierkegaard, Wittgenstein and the Point of View for their Work as Authors» [«Juntar dois e dois: Kierkegaard, Wittgenstein e o Ponto de Vista da sua Obra como Autores»], in Timothy Tessin e Mario von der Ruhr (eds.), Philosophy and the Grammar of Religious Belief. Londres e Nova Iorque: Macmillan St Martin’s Press, 1995.

[31] Podemos agora dar uma definição ligeiramente mais precisa de «cristandade». Refere-se à ilusão que se dá quando acontece que uma maioria de pessoas que usam ostensivamente um vocabulário cristão o usam para descrever vidas vividas em categorias estéticas (ou quando muito estéticas-éticas). Com a epígrafe desta secção do ensaio indica, o objectivo de Kierkegaard é desfazer esta ilusão.

[32] Estou aqui a citar Stanley Cavell, «Kierkegaard On Authority and Revelation», in Must We Mean What We Say?, Cambridge University Press, 1976, p. 170. A discussão anterior está em dívida para com esse ensaio.

[33] Isto levanta a questão sobre se alguém que não vive uma vida religiosa pode entender um conceito religioso. O problema não difere em princípio do do antropologista que tenta entender um conceito ético ou religioso que pertence a uma cultura diferente. Podemos afirmar que entendemos tal conceito na medida em que nos conseguimos projectar imaginativamente no tipo de vida no qual o conceito é válido, empaticamente penetrar nos interesses dos que usam o conceito, e dessa forma compreender o seu uso.

[34] G. E. M. Anscombe, «Modern Moral Philosophy», in Ethics, Religion and Politics: Collected Philosophical Papers, Vol. III. Minneapolis, MN.: University of Minnesota Press, 1981, p. 32.

[35] Assim sendo, na epígrafe desta secção do ensaio, Anscombe está interessada em saber se uma palavra específica ainda significa um conceito real.

[36] Estou aqui de acordo com o ensaio de Cora Diamond «the Dog that Gave himself the Moral Law» (in Midwest Studies in Philosophy, Vol. XIII, eds. French, Uehling e Wettstein. Notre Dame IN.: Notre Dame University Press, 1988), onde afirma que o argumento de Anscombe «deve ser entendido como sendo sobre a sobrevivência de conceitos ou noções, não sobre a sobrevivência de palavras ou expressões» (p. 161).

[37] Anscombe, «Modern Moral Philosophy», p. 30.

[38] Anscombe aplaude «Hume e o éticos contemporâneos» por mostrarem que a noção relevante não tem conteúdo, mas censura os éticos contemporâneos por tentarem reter a força psicológica do termo:

Penso que Hume e os éticos contemporâneos tenham prestado um serviço de monta por mostrarem que não pode ser encontrado um conteúdo na noção de «obrigado moralmente»; se não fosse o caso de os últimos filósofos tentem encontrar um conteúdo alternativo (muito suspeito) e reter a força psicológica do termo. Seria o mais razoável deixá-la cair. Não tem sentido razoável fora de uma concepção legal de ética; não vão manter tal concepção; e podemos fazer ética sem ela, como demonstra o exemplo de Aristóteles («Modern Moral Philosophy», p. 32)

Aqui Anscombe distingue — como o faz ao longo do ensaio — entre a noção (o que tenho vindo a chamar conceito) «obrigado moralmente» e o termo (o que tenho vindo a chamar palavra). Mas pode parecer que não honra essa distinção na medida em que fala em algo ser a noção ao mesmo tempo que mantém que não tem conteúdo. Assumo que corteje esta confusão propositadamente (por razões que serão abordadas na penúltima secção deste ensaio).

[39] Não tentarei explorar neste ensaio os pormenores desse diagnóstico.

[40] Anscombe, «Modern Moral Philosophy», pp. 30-1.

[41] Peter Winch, «Who is my Neighbour?», in Trying to Make Sense. Oxford: Blackwell, 1987, p. 160.

[42] O próprio argumento de Winch contra Anscombe apoia-se na afirmação de que já podemos encontrar uma concepção de obrigação moral que não pressupõe uma lei divina no Novo Testamento. Também parece considerar que este argumento está ligado a uma tensão interna nas próprias posições de Anscombe. Winch elabora a sua discordância com Anscombe a partir de uma discussão da parábola do Samaritano:

Jesus conta uma parábola… de uma forma que pressupõe que a modalidade moral à qual respondeu o Samaritano teria uma força para quem ouvia a parábola que era independente dos compromissos dos ouvintes com qualquer crença teológica… De acordo com Anscombe, a inteligibilidade da obrigação de ajudar o viajante ferido, à qual o Samaritano respondeu, depende da aceitação de que há uma lei divina que nos faz agir assim. Penso, pelo contrário, que o conceito de uma lei divina só pode desenvolver-se com base na nossa resposta a tais modalidades. («Who is my Neighbor?», p. 161)

Anscombe, no entanto, não se importaria de concordar que o «devemos» em «devemos ajudar um viajante ferido» poderia ter (e deveria ter de facto) uma força para os ouvintes da parábola que era independente dos compromissos com qualquer crença religiosa». O que ela rejeitaria era que um entendimento cristão da razão para ajudar um viajante ferido (isto é, o entendimento de que Jesus aceitava e estava preocupado em ensinar) seja realmente inteligível fora de uma concepção de lei divina. (Embora presumivelmente concordasse com Winch que o entendimento de Jesus de lei divina fosse em certos aspectos muito diferente do dos fariseus.) Assim, Winch discorda de Anscombe apenas se desejar afirmar que o entendimento Jesus (ou, de forma mais geral, um cristão) da razão pela qual devemos auxiliar um viajante ferido é tal que pode ser completamente compreendida de forma «independente de um compromisso com qualquer crença teológica».

Também é evidente que o argumento de Winch na última frase do excerto citado expressa mesmo uma discordância com Anscombe. Como Winch está ciente, noutros locais Anscombe está ela própria interessada em insistir que os conceitos modais e deônticos só se pode desenvolver sobre um panorama de certas reacções:

Nem o próprio Deus pode fazer promessas ao homem sem ser na linguagem humana… Aquilo com que temos de nos preocupar é com o uso dos modais. Com isto, descobriremos que não só as promessas, mas também as regras e os direitos, são essencialmente criadas e não simplesmente apreendidas ou expressas pela gramática das nossas línguas… É-nos dito: «não podem» fazer algo que claramente conseguimos , como se denota pelo facto de às vezes o fazermos. No início, os adultos impedem fisicamente a criança de fazer o que dizem que ela «não pode» fazer. Com um conjunto de circunstâncias, esta história é parte do consolidar do conceito de uma regra; com outro, o de uma promessa; noutro, o de um acto de sacrilégio ou de impiedade; noutro, o de um direito. Faz parte da inteligência humana o ser capaz de aprender as reacções a… modais sem os quais não existiriam enquanto instrumentos linguísticos e sem os quais estas coisas: regras, etiqueta, direitos, transgressões, promessas, devoções, impiedades também não existiriam («Rules, Rights and Promises», in Ethics, Religion, and Politics, pp. 99-101).

Winch toma esta «obra tardia» de Anscombe como «enfraquecendo as suas posições prévias sobre o “deve” moral mas sem reconhecimento explícito da sua parte de que assim é» («Who is my Neighbor?», p. 162). A obra tardia de Anscombe só enfraquece o seu ensaio prévio se as duas afirmações que se seguem estiverem em conflito uma com a outra: (1) para identificar qual é o conceito (modal) de um conceito específico, precisamos de analisar o seu papel dentro da estrutura de pensamento que o torna realmente inteligível, e (2) a aquisição de certos conceitos modais pressupõe a aquisição prévia de outros tipos de conceitos modais mais primitivos( e o desenvolvimento correlato das capacidades de reacção sobre as quais esses conceitos assentam). «Modern Moral Philosophy» preocupa-se somente com (1), as nada nesse ensaio é incompatível com (2). Assumo que Anscombe aceita tanto que (a)de forma a adquirir o conceito de obrigação moral que figura numa concepção legal de ética devemos ter aprendido primeiro a reagir a vários modais não-legais, e (b) o conteúdo de um conceito que figure numa concepção legal de ética não pode ser analisado em função desses modais.

[43] Os exemplos de Beardsmore aqui são muito traiçoeiros uma vez que se balançam entre concepções éticas e não-éticas do que se «deve» fazer. Se o que «obriga» o médio a responder à chamada são, como coloca Beardsmore, «as regras da sua profissão» (e o que obriga o sindicalista são as regras do seu sindicato), então claramente não estamos em terreno ético; nem tão pouco estaríamos se disséssemos a alguém: «o teu rei está em cheque, és obrigado a mexê-lo». Neste caso justifica-se invocar a (filosoficamente perigosa) linguagem de ser «obrigado» uma vez que há regras que ditam o estamos obrigados a fazer e o que estamos proibidos de fazer. Se, por outro lado, pensarmos no médico que não aceita a chamada como sendo deficitário de algumas virtudes (ocorrem-me tanto a caridade como a prudência!) e o sindicalista que fura o piquete como deficitário de outras (acima de todas, da lealdade, tanto à causa como aos amigos), então estamos em terreno moral quando dizemos de qualquer um deles que não fez o que «devia» ser feito. Mas neste último tipo de casos, o que se ganha por insistir na linguagem de (o médico ou o sindicalista) serem «obrigados» a agir de determinada forma? O que Beardsmore nos apresentou foi um par de casos sobre os quais parece justo dizer-se que o indivíduo em causa está tanto «obrigado» e que, para além disso, «devia» fazer o que está obrigado a fazer. (Há casos — veja-se os médicos na Alemanha nazi — em que as duas não coincidem. Nesses casos, queremos que o que uma pessoa deve fazer se sobreponha ao que é obrigada a fazer. O argumento de Anscombe é o de que apenas no contexto de uma concepção legal de ética temos uma noção coerente da origem da obrigação que se sobrepõe sempre.) Penso que Beardsmore está baralhado quanto a qual dos dois exemplos — o  moral ou o não moral — quer dar. Nenhum dos exemplos, bem descritos, consiste num problema para Anscombe. Sente-se confortável com conversas sobre o que é «obrigatório» onde há regras ou leis que prescrevem o que é permitido e proibido; e está igualmente confortável com conversas sobre o que uma pessoa virtuosa «deve» fazer. O que lhe levanta suspeitas é o querermos caracterizar estes últimos casos como casos de «obrigatoriedade» (na ausência de qulaquer noção de lei ou regra que nos obrigue): não por ser impossível atribuir um sentido à palavra «obrigação» nesse contexto, mas porque pensa que ficamos susceptíveis a ficar baralhados — como, acredito, Beardsmore se baralhos neste excerto — sobre o que queremos dizer.

[44] De facto, ela não precisava de negar que poderiam continuar a usar a palavra em muitos contextos que se assemelham àqueles em que nós usamos hoje a palavra em sentido figurado. Se não conhecerem, como se presume, as estranhas instituições legais dos seus antepassados bárbaros, então podemos pensar que para eles esta palavra já não terá inflexão figurada. O que foi outrora um sentido figurado tornar-se-á simplesmente num sentido literal e dessa forma quererão dizer com a palavra algo como «injurioso», «negligente» ou «irresponsável». Mas mesmo imaginando isto, ainda assim estamos a imaginar um cenário de acordo com o qual o sentido literal da palavra — e assim o conceito que exprime — mudou.

[45] Um cidadão desta utopia futurista está presumivelmente interessado em chamar «criminoso» a outra pessoa que não ele próprio. A analogia entre os cidadãos desta utopia futurista e os da cristandade está dessa forma limitada. Uma característica do diagnóstico kierkegaardeano do investimento neste tipo de confusões não é extensível a esta caso: os cidadãos da utopia futurista não são atraídos para esta confusão por estarem profundamente agarrados à ideia de que eles próprios levam vidas que estão imersas no crime!

[46] Ancombe, «Modern Moral Philosophy», pp. 30-1.

[47] Esta formulação é enganadora de duas maneiras. Pode ser menos confuso caracterizar o conceito de obrigação moral cuja a inteligibilidade está aqui em causa para Anscombe como um conceito ético (em vez de um «legal») — ainda que um conceito ético quase-legal — de forma a distingui-lo claramente de um conceito legal secular. Em segundo lugar, assumo que a opinião de Anscombe (embora não o diga no ensaio) é a de que que é apenas a maioria de nós, modernos tardios, que vive vidas nas quais os conceitos quase-legais relevantes são incapazes de assentar; assim, o seu argumento não pretende negar a possibilidade de que certos crentes judeus ou católicos individuais possam continuar a usar esses conceitos.

[48] A comparação entre o argumento de Anscombe sobre filosofia moral moderna e o de Kierkegaard sobre a cristandade é bastante ambiciosa. Dos seus contemporâneos, Kierkegaard diz que (1) decalcam a palavra «cristão» da sua relação com uma família de outros conceitos (cujo conteúdo está ligado às suas aplicações no contexto de certas práticas), e que (2) apesar de tudo querem reter a aura da palavra depois de a terem esvaziado do seu significado. Podemos ver como Anscombe está a fazer estes dois argumentos no excerto seguinte:

Toda a atmosfera do termo [«moralmente errado»] é retida enquanto a sua substância é garantidamente quase nula. Lembremo-nos de que «moralmente errado» é o termo que é herdeiro da noção «ilícito», ou «do que é uma obrigação não fazer»; que pertence a uma teoria legal divina de ética… E é por «moralmente errado» ser o herdeiro deste conceito, mas um herdeiro que foi separado da família de conceitos onde cresceu, que «moralmente errado» tanto vai além da mera descrição factual «injusto» como parece não ter nenhum conteúdo discernível a não ser uma certa força cativante… Mas na verdade esta noção de obrigação é uma noção que só é operativa no contexto legal. E inclinar-me-ia a dar os parabéns aos filósofos morais contemporâneos por privarem o «deve moralmente» da sua agora ilusória aparência de conteúdo, não fosse o caso de manifestarem um desejo odioso de reter a atmosfera do termo. («Modern  Moral Phliosohy», pp. 40-1)

[49] Assim, o objectivo de Anscombe é muito menos geral do que é costume pensar: é apenas mostrar que locuções particulares (tais como «obrigação moral», «dever moral») — na medida em que são hoje usadas fora de uma certa estrutura de pensamento — continuam a reter uma certa atmosfera sem que tenham sentido. Anscombe não considera que todos os nossos conceitos morais estejam em perigo. É por isso um erro equiparar a tese de Anscombe com as de outros autores — que foram influenciados por ela e com os quais ela é hoje associada (como Alasdair MacIntyre) — que defendem que a possibilidade de pensamento moral no seu todo depende de um passado que está perdido. Se Anscombe defendesse (como por vezes se presume) que todo o nosso pensamento moral secular é ininteligível então a sua posição seria a de que todos os conceitos morais estão em perigo. Isto não daria qualquer sustentabilidade para o tipo de argumento que Anscombe faz realmente — um tipo que requer que sejamos capazes de identificar como um conceito específico não tem coerência em relação ao nosso restante pensamento moral.

[50] Este ponto é muito bem abordado num ensaio de Cora Diamond («The Dog that Gave Himself the Moral Law» [O Cão que Deu a Si Próprio a Lei Moral]) e este ensaio beneficiou dele.

[51] Recordo o leitor de que o objectivo deste ensaio não é nem defender nem atacar a afirmação de Anscombe, mas simplesmente clarificar como pode e como não pode ser contestado. Se me propusesse enveredar nessa contenda, atacaria a primeira metade da afirmação. Aproveitaria a tradição de pensamento sobre a normatividade dos conceitos jurídico e moral que tem origem em Kant e Hegel. Isto implicaria lidar com a dispensa leviana que Anscombe faz da concepção de lei moral de Kant (como uma lei que damos a nós próprios) como «absurda» («Modern Moral Philosophy», 27).

[52] Anscombe, «Modern Moral Philosophy», p. 30.

[53] Por isso propõe que descartemos o termo «deve moralmente», e regressemos simplesmente ao comum «deve» (ibid., p. 41). Chega mesmo a afirmar que o «comum “deve”… é uma palavra de tal forma frequente na linguagem humana que é difícil imaginar prosseguir sem ela (ibid.).

[54] Assim, Anscombe escreve:

Seria um grande avanço se, em vez de «moralmente errado», nomeássemos sempre um género como «desonesto», «impuro», «injusto». Não perguntaríamos mais se fazer algo era «errado», passando directamente de alguma descrição de uma acção para esta noção; perguntaríamos se, e.g., era injusta; e a resposta seria às vezes imediatamente óbvia («Modern Moral Philosophy», p. 32-3).

O seu argumento aqui não é que já não devamos perguntar «fazer tal coisa é errado?» por a palavra «errado» não ter necessariamente significado e dever por isso ser evitada a todo o custo, mas sim que não devemos mais — quando pronunciamos estas palavras — acreditar que estamos a fazer um certo tipo de pergunta: um que nos permitiria explicar o conteúdo do que estamos a perguntar de tal forma a que conseguíssemos isolar uma noção do que é algo ser «moralmente errado» que tenha força prescritiva independentemente da virtude específica com a qual a acção em causa não se conforma.

[55] Numa concepção legal de ética, é suficiente para tornar uma acção específica certa ou errada que — independentemente de quaisquer razões suplementares para tomá-la como boa ou má — seja o tipo de acção que tenha sido (divinamente) ordenado ou proibido. É por isso que Anscombe diz que numa concepção legal de ética se acrescenta algo a uma descrição de um acto particularmente injusto (de uma maneira que não acontece na ausência de tal concepção) quando se diz que é «moralmente errado»:

Numa teoria de ética de lei divina… realmente acrescenta-se algo à descrição «injusto» quando se diz que há uma obrigação de não o fazer; pois o que obriga é a lei divina — como as regras obrigam num jogo. Então, se a lei divina obriga a que não se cometam injustiças proibindo a injustiça, acrescenta realmente qualquer coisa à descrição «injusto» dizer-se que há uma obrigação de não o fazer. E é por «moralmente errado» ser o herdeiro deste conceito, mas um herdeiro que foi separado da família de conceitos onde cresceu, que «moralmente errado» tanto vai além da mera descrição factual «injusto» como parece não ter nenhum conteúdo discernível a não ser uma certa força cativante, a que deveria chamar puramente psicológica. («Modern Moral Philosophy», p. 41).

Isto está ligado a uma outra característica do que faz Anscombe ficar (na ausência de um legislador divino) tão nervosa com uma noção geral de obrigação moral quase-legal:

Se alguém pensa realmente, de antemão, que está em causa se uma acção como obter uma condenação judicial dos inocentes devia ser excluída de consideração – não quero discutir com ele; demonstra uma mente corrupta (Ibid., p. 40).

Anscombe olha para tentativas recentes de reintroduzir conteúdo a um «deve moral» empático — de fornecer uma fonte alternativa de justificação moral geral — como uma tentação de racionalização moral (e em última análise de loucura moral) na medida em que nos encoraja repetidamente a ponderar se algo que de outra maneira temos todas as razões para considerar moralmente abominável não será apesar de tudo (dada a nossa concepção alternativa da fonte geral de justificação moral) algo que «moralmente devíamos» fazer.

[56] Em relação a isto, Beardsmore escreve:

Anscombe não afirma que qualquer sentido de «obrigação» tenha, e deva ter, a sua base na lei divina, mas apenas que o que chama «sentido moral especial» ou, às vezes, o sentido «absoluto» o deva de ter… Apesar de a filiação num sindicato possa muito bem acarretar a obrigação de respeitar os piquetes, apesar de os médicos poderem ter várias obrigações profissionais, estas não podem ser consideradas como completamente obrigatórias, uma vez que é sempre possível ao sindicalista desfiliar-se, ao médico arranjar outra profissão. Em contrapartida, quando uma obrigação é tida como uma vontade de Deus, não há a possibilidade de o crente escolher ignorá-la.

Beardsmore continua a discordar de Anscombe sobre por que é que para o crente religioso as ordens de Deus «possuem o estatuto de obrigações absolutas». As divergências com ela, mais uma vez, assentam em mal-entendidos. A própria Anscombe, tanto quanto sei, nunca usa realmente a locução «obrigação absoluta». Distingue sim entre obrigações condicionais e incondicionais, assim como entre o que é intrinsicamente injusto e o que é injusto em determinadas situações. A inteligibilidade de qualquer destas distinções não assenta, contudo, na sua noção de lei divina. Nenhuma destas distinções marca por isso o tipo de distinção entre «absoluto» e «não-absoluto» que Beardsmore reconhece em Anscombe.

Beardsmore (nos comentários citado em cima) faz confluir um argumento feliz e um infeliz: (a) apenas quando usado num contexto de uma concepção legal de ética é que o termo «obrigação» ganha um sentido moral especial, (b) o que torna uma obrigação no tipo que só Deus pode prescrever é se podemos escolher ou não ignorá-la. Beardsmore mistura estes dois argumentos numa noção única de «obrigação absoluta» que atribui a Anscombe.

Quanto a (a), apesar de Anscombe poder concordar com ele, não o tomaria como implicando que o termo «obrigação» está desprovido de força modal quando usado em contextos seculares (nem aceitaria que nesses contextos como necessariamente condicional em papéis de que nos pudéssemos alienar). O excerto de «Modern Moral Philosophy» que Beardsmore parece ter em mente (nos comentários citados acima) é o seguinte:

Os termos «deveria», «deve», ou «precisa»… adquiriram um dito sentido «moral» especial — i.e. um sentido com o qual inferem algum veredicto absoluto (como o de um homem ser culpado/inocente) sobre o que é descrito nas frases com «deve» usadas em certos tipos de contextos…

Os termos comuns (e bastante indispensáveis) «deveria», «precisa», «deve», «tem de» adquiriram este sentido especial por serem equiparados nos contextos relevantes com «é obrigado», «é forçoso», ou «é requerido que», no sentido em que um pode ser obrigado ou forçado por lei, ou que algo pode ser requerido por lei. (pp. 29-30)

O argumento de Anscombe aqui não é o de que os termos «é obrigado», «é forçoso», ou «é requerido que» só têm força modal genuína numa concepção de lei divina. Dá-se antes o caso de que um vocabulário modal não-legal («deveria», «precisa», «deve», «tem de») adquirir a força modal de termos como «é obrigado», «é forçoso», ou «é requerido que» — e tome assim um sentido moral especial (o sentido em que podemos ser obrigados ou forçados por lei) — quando é usado num contexto de uma concepção legal de ética; e apenas quando é usado no sentido em que algo é requerido por lei é que este vocabulário pode ser entendido como inferindo um veredicto «absoluto» (por oposição a reter meramente uma atmosfera vazia como se fosse um veredicto). Vista assim, Anscombe não assume (a) (como o faz Beardsmore) impugnar concepções de ética que não seja a de lei divina. Assumiria (a) meramente para exprimir um ponto lógico relacionado com a diferença entre a força prescritiva da lei divina e a força prescritiva que a palavra «deve» carrega numa concepção de ética que não a legal. Em especial, não assumiria que (a) impugnasse uma concepção aristotélica de ética.

Quanto a (b), não se dá sempre o caso em que o estado que implique uma obrigação possa ser removida por uma acto de escolha (como a filiação num sindicato). Mas talvez Beardsmore pense que Anscombe está confusa sobre isto e que assim mantenha que podemos escapar a todas as obrigações excepto às decretadas por ordem divina por nos alienarmos da filiação no tipo de estados que as  implicam. Contudo, tanto quanto percebo, nada do que Anscombe diz em «Modern Moral Philosophy» convida a que se lhe atribua tal posição. Ainda para mais, ela repudia explicitamente tal posição em «On the Source of the Authority of the State» (in Ethics, Religion and Politics), onde contrasta as obrigações que temos para com um clube (ao qual podemos — e nalguns casos devíamos — renunciar) e as obrigações que temos para com um governo que exerce poder civil legítimo (ao qual não podemos nem devemos renunciar).

[57] É seguro dizer que muitos dos mal-entendidos a que «Modern Moral Philosohy» tem sido sujeito se devem a os seus leitores usarem do seu conhecimento autónomo sobre as convicções religiosas da autora e sobre as suas apologéticas obras religiosas. Os leitores assumem por isso que também já sabem mais ou menos o que ela tem de estar a dizer neste ensaio. Resumindo, não conseguem apreciar até que ponto o ensaio leva a cabo uma intervenção táctica (não-partidária, por assim dizer) no discurso da filosofia moral moderna. Não só Anscombe não incute uma concepção de lei divina nos seu leitor, incute até uma posição (aristotélica) alternativa — sem dúvida que, em parte, por estar confiante de que a maioria dos seus leitores (como ela diz) «não vão manter tal concepção [de lei divina] e que podemos fazer ética sem ela» (p. 32).

[58] Também escapa a Beardsmore que o objectivo de Anscombe em explorar estas diferenças é realçar como uma característica lógica específica atribuída ao «deve moral» (possuindo força prescritiva que se sobrepõe) está internamente ligado a outras características de uma concepção legal de ética.

[59] A maneira como Beardsmore reconstrói a preocupação de Anscombe classificaria tanto o estóico (que ela considera ter uma concepção legal de ética) como o protestante ( que considera não ter) erradamente de acordo com os seus objectivos.

[60] Beardsmore introduz o seu modo de entender a «obrigação absoluta» como um desenvolvimento do que considera ser o de Anscombe. Escreve ele:

Na medida em que está implícito que a mera existência de uma maneira alternativa de vida basta para roubar às obrigações a sua natureza absoluta, então deve extrair-se a conclusão de que, mesmo para o crente devoto, os mandamentos de Deus não possuem o estatuto de obrigações absolutas. Pois haverá certamente uma alternativa à crença religiosa, nomeadamente o ateísmo… [Mas a] natureza absoluta dos mandamentos de Deus para o crente religioso tem origem não numa negação da possibilidade de ateísmo. Tem origem, em vez disso, no reconhecimento de que esse tipo de vida não é uma possibilidade para essa pessoa.

No excerto está interessado em contrastar duas maneiras de compreender a ideia de uma «obrigação absoluta» (nenhuma das quais relacionada com as características lógicas de uma concepção lógica de ética para as quais Anscombe queria chamar a atenção). O mal-entendidos discutidos na nota 56 levam Beardsmore a assumir que Anscombe deve estar atrás do primeiro desses. É por essa razão que conclui que — se ela escolhe o segundo gume do dilema que ele estabelece — a posição dela acabará por tornar-se «meramente uma variante da linha de raciocínio de Nielsen e Kolakowski». A razão de Beardsmore para propor uma maneira alternativa de compreender «obrigação absoluta» é, em parte, presumo, para evitar que as críticas a Anscombe o comprometam com a posição de que de que todos os crentes religiosos estão tão confusos quanto pensa que ela esteja.

[61] O que Beardsmore propõe não é uma característica distintiva de qualquer concepção de ética. No sentido atenuado de Beardsmore do que é uma coisa ser «absolutamente obrigatória», mesmo alguém com uma concepção aristotélica do que «deve fazer» (tal como  que Anscombe nos incute) pode reconhecer que «absolutamente obrigatório» que uma pessoa virtuosa não haja injustamente.

[62] G. E. M. Anscombe, «The Reality of the Past», in Metaphysics and the Philosophy of the mind: Collected Papers, Vol. III. Minneapolis, MIN.: University of Minnesota Press, 1981, p. 113.

[63] Ibid., pp. 113-4.

[64] Estas qualificações dos casos colaboram precisamente nas confusões que em última instância pretendem esclarecer. São assim forma transitórias de falar que são, no fim de contas, para ser dispensadas juntamente com as confusões a que se dirigem. O método de Anscombe assemelha-se ao de Kierkegaard. Como diz Kierkegaard quando explica o seu próprio método: «Não começamos directamente com o assunto de que queremos falar, começamos sim por aceitar a opinião do outro homem como valiosa» (The Point of View for my Work as an Author, p. 40).

[65] Anscombe, «The Reality of the past», p. 114-5.

[66] É por isto que é relevante para o seu argumento em «Modern moral Philosophy» começar com os filósofos morais modernos que acham difícil desvendar qualquer conteúdo de todo numa conversa sobre «deve moralmente» fazer e que ainda assim pretendem reter o termo como expressando uma força prescritiva. Servem como parte da prova que dá de que pelo menos alguns de nós temos desejos logicamente incoerentes no que diz respeito a esta forma de palavras específica.

[67] Anscombe, «The Reality of the Past», p. 115.

[68] Anscombe, «Modern Modern Philosophy», p. 41.

[69] Ibid., p. 38.

[70] O exemplo e a discussão que o acompanha, citadas em cima de «The Reality of the Past», vêm com a seguinte nota de rodapé:

Neste exemplo repito alguns comentários feitos pelo Dr. Wittgenstein em discussão. Por todo o lado neste ensaio imitei as suas ideias e métodos de debate… O seu valor depende… da minha capacidade de perceber e usar o trabalho do Dr. Wittgenstein. (p. 114n)

[71] G. E. M. Anscombe, Intention. Oxford: Blackwell, 1957, §18, p. 27. Neste excerto, Anscombe cita §500 da sua própria tradução das Investigações Filosóficas de Wittgenstein (Oxford: Blackwell, 1953):

Quando se diz que uma frase é destituída de sentido não se diz que é o seu sentido que é destituído de sentido. Diz-se, antes, que uma combinação de palavras é excluída da linguagem, retirada de circulação.

A secção antecedente (§499) começa assim:

Dizer «Esta combinação de palavras não tem qualquer sentido» é excluí-la do domínio da linguagem e com isso delimitar a fronteira do domínio da linguagem. Mas o traçado de uma linha de fronteira pode fundamentar-se de diversas maneiras.

Isto levanta a questão: quais são as razões de Wittgenstein para propor que excluamos certas combinações específicas de palavras da linguagem? Em Philosophical Grammar (Oxford: Blackwell, 1974), encontramos isto:

Que peculiar que alguém possa dizer que tal e tal estado de coisas é inconcebível! Se tomarmos um pensamento como um acompanhamento que vai com uma expressão, as palavras na declaração que especificam o estado de coisas inconcebíveis tem de ir sem acompanhamento. Então que tipo de sentido é suposto ter? A menos que diga que estas palavras não têm sentido. Mas não como se o seu sentido não tivesse sentido; elas devem ser excluídas da nossa linguagem como se fossem um barulho arbitrário e a razão para a sua exclusão explicit só pode ser que estamos tentados a confundi-las com uma proposição da nossa linguagem (p. 130; emendei a tradução).

Assumo que as razões para Anscombe explicitamente propor a exclusão de uma expressão da linguagem sejam as mesmas de Wittgenstein — não porque é como se o sentido da expressão não tivesse sentido, mas porque «estamos tentados a confundir» frases em figuram sem sentido com proposições significantes da nossa linguagem

Anscombe toma o repúdio de Wittgenstein da ideia de que certas proposições possam exprimir um estado de coisas inconcebível (um sentido sem sentido) como uma marca distintiva do seu pensamento tardio. Toma o Wittgesntein da primeira fase como tendo mantido a ideia de que certa (pseudo-)proposições têm um sentido inexprimível (por não terem sentido):

Uma parte importante é articulada no Tratactus, pelas coisas que, apesar de não poderem ser «ditas», são ainda assim «mostradas» ou «exibidas». Isso é o mesmo que dizer: estaria certo dizer que são «verdadeiras» se, per impossibile, pudessem ser ditas; de facto, não podemos dizer que são verdadeiras, visto não poderem ser ditas, não «poderem ser mostradas», ou não «poderem ser exibidas» nas proposições que dizem as várias coisas que podem ser ditas. (Uma Introdução ao Tractatus de Wittgenstein. Filadélfia, PA: University of Pennsylvania Press, 1971, p. 162)

Contexto esta maneira de alinhar o pensamento do Wittgenstein da primeira fase com o tardio em «The Search for Logically Alien Thought» (Philosophical Topics, vol. 20, nº1)

[72] Philosophical Works of Francis Bacon. Londres: Routledge, 1905, p. 45.

[73] Incluo a salvaguarda «em primeiro lugar» para evitar exagerar as diferenças entre as respectivas análises. A ênfase de cada um cai em sítios diferentes; mas a característica sobre a qual cada um insiste está presente, de alguma forma, nas análises oferecidas pelos outros dois.

[74] Sem a frase que qualifica («em primeiro lugar») isto seria outra vez exagerar as diferenças nas respectivas análises. Para Nietzsche e Kierkegaard as nossas confusões existenciais estão ligadas a confusões conceptuais. (Assim, por exemplo, a preocupação persistente com o que chama problemas «dialécticos» ou «lógicos» — problemas que surgem de uma falha de manter uma posição clara das categorias.) Para Anscombe, a filosofia moral má não corrompe só como pensamos. (Assim, por exemplo, para Anscombe a filosofia moral má — ao encorajar-nos a deixar em aberto a questão que noutras circunstâncias não ficaria em aberto — leva-nos a tolerar e provavelmente a fazer mal. Daí também, em especial, a ligação entre a tese do excerto fulcral e a terceira tese do seu ensaio como desenvolvido nos parágrafos finais: nomeadamente, a maneira como a filosofia nos encoraja a tomar como em aberto a questão «se um procedimento como a condenação judicial dos inocentes não será a decisão “certa” nalgumas circunstâncias» (p. 42).)

† Tradução de Telmo Rodrigues.

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