They play their records very loud
They pogo in their bedroom
In front of the mirror
But only when their mum’s gone out.
 

(Television Personalities, ‘Part Time Punks’)

 

The Fall, um grupo de Manchester muito famoso no que toca ao mundo do punk e do post-punk, tem uma reputação difícil de definir. Desde o seu início, em 1976, até à morte do vocalista e membro permanente da banda, Mark E. Smith, em 2018 (e consequente fim do grupo), os The Fall gravaram 32 álbuns de estúdio, entre várias outras gravações.

Um dos interesses maiores do grupo é a sua relação com o movimento punk, que ocorreu logo no seu começo, em meados dos anos 70. Esta relação é descrita pelo vocalista da banda Pulp, Jarvis Cocker, no seu livro mais recente, Good Pop, Bad Pop (2022). Cocker, adolescente na altura em que o punk surgiu no Reino Unido, não se identificava com a atitude supostamente punk da altura, a saber, o desdém por alguém que não pertence ao seu grupo, por não usar o tipo de roupa associado ao mesmo. Cocker foi insultado num concerto da banda inglesa The Stranglers por não se parecer com os outros punks. Na perspectiva de Cocker, o punk era símbolo da democratização da música, no que diz respeito a fazê-la; o famoso mantra punk que apareceu na fanzine Sideburns em 1977 é, justamente, um resumo dessa democratização: «This is a chord, this is another, this is a third. Now form a band.» Parte do ethos de Mark E. Smith passava por isto:

The best thing about it [punk] was that it didn’t rely on perfection; you didn’t have to be a well-schooled musician to be a punk. But, as with many scenes, it became very conservative – with everybody dressing the same and avoiding those that didn’t. Small wonder that they soon ran out of things to say. (Smith, p. 41)

The Fall foi, particularmente no seu início, a banda anti-moda por excelência, visto que se vestiam com roupa fora de moda (roupa «não-punk»), pois o que importava para eles era a música e a subversão do que a música pode ser. Para Cocker e muitos outros, é isto que o punk realmente é: «The Fall took punk’s challenge to invent something new seriously. In their case that meant questioning the very notion of what music could be. Did it have to be in time? (...) Did the “singer” actually have to sing? & were you really allowed to put “-ah” at the end of every word?» (Cocker, p. 161).

Para falar de The Fall é necessário olhar para o seu único membro permanente e, de certa forma, líder, Mark E. Smith. Smith era uma figura controversa pelas suas atitudes relativas a arte e a política. Dois pontos que partem de crenças de Smith são importantes para perceber os The Fall e a relação que têm com o punk: i) The Fall é trabalho, é um emprego como os outros; ii) Música rock (e, por extensão, música punk) não é música. Ambas estas convicções têm, necessariamente, origem em crenças morais, artísticas e políticas de Smith.

O primeiro ponto é o mais interessante e é referido várias vezes ao longo da autobiografia de Smith, Renegade (2008):

When I formed the group it wasn’t about me trying to get my picture in some paper or magazine or other – like it is with a lot of bands nowadays – it was because of sounds; of wanting to make something; combining primitive music with intelligent lyrics.

You’ve got to realize and accept that you’re never going to be on Top of the Pops every week if you’re in The Fall, that’s not what The Fall’s about; The Fall’s about hard work. (Smith, p. 26)

É razoável tomar estas últimas palavras como um slogan da ética da banda para Smith: The Fall não serve para ganhar fama, serve para trabalhar. Mas poder-se-ia tomar isto num duplo sentido: The Fall é um espaço para trabalhar (em música), mas também é sobre trabalho. Ou seja, tomando esta hipótese por verdadeira, o trabalho musical que é exigido traduz-se na própria música da banda. Mas isto é estranho. É possível ouvir trabalho?

A atitude de Smith acerca do seu trabalho pode ser equiparada a atitudes acerca de outros tipos de trabalho mais corriqueiros:

In a strange way, I’m still very clerical about most things I do. I suppose I’m still in The Fall because it forces me to make something of myself, which in its own way is a very desk-job attitude to have. It’s probably why I record so much. If it wasn’t for The Fall, I’d be at home right now trying to motivate myself to write, but probably doing every other thing possible not to write. Fucking around with this and that. Going to the pub. Watching TV. It’s that old writer’s dilemma. Unless you’re forced to work, you find yourself cleaning out the backyard as an excuse. (ibid. p. 30)

Smith não parecia entreter preocupações sobre arte quanto à sua música, sendo que o seu interesse principal era produzir alguma coisa. Isto está ligado à insistência de Smith de nunca tocar músicas antigas ao vivo, só dos discos mais recentes. O DJ da rádio BBC 1 John Peel (cuja banda favorita era The Fall) afirmou que o público querer que álbuns novos soassem aos antigos é como comprar Corn Flakes e não querer que saibam a gengibre da próxima vez que os comprarmos.

A ideia que Smith tem da banda como trabalho, e não como um meio onde se expressar artisticamente, é uma das várias formas que tem de deflaccionar arte e, mais especificamente, música. O que conduz ao segundo ponto de interesse para falar da relação que os The Fall e Smith têm com o punk: para Smith, música rock não é música. Este tipo de afirmação parece ser algo para chamar a atenção. Numa entrevista concedida a Lauren Laverne em 2007, à pergunta «Acha que há algum grupo musical que tenha o espírito dos The Fall?», Smith respondeu «The Reynolds Girls».[1]  The Reynolds Girls foram um duo de música pop no final dos anos 80, de pouca duração, que ficaram conhecidas pelo single de 1989 «I’d Rather Jack». A letra da canção é, muito resumidamente, um ataque a DJs que só passam música antiga; o grupo quer ouvir música nova:

Golden oldies, Rolling Stones,
We don’t want them back.
I’d rather jack, than Fleetwood Mac.
No heavy metal, rock ‘n’ roll,
Music from the past.
I’d rather jack, than Fleetwood Mac.

A canção, apesar de ter sido fabricada pelos produtores num gesto aparentemente contrário ao que é punk, é interessante para considerar a relação que Mark E. Smith tem com música pop e punk. Tal como as Reynolds Girls, Smith não tem interesse algum em revisitar música antiga, mas está mais preocupado com o que está a ser feito no momento, e em produzir coisas novas e interessantes. Novamente na sua autobiografia, Smith afirma que

I always thought the pure essence of rock and roll was a completely non-musical form of music. Rock and roll is surely not a ‘music’ form. I hate it when people say, ‘Oh, but the production’s so bad on it and I can’t hear the lyrics properly.’ If they want all that then they should listen to classical music or Leonard Cohen – who’s nothing but ‘poetic’. I’m not about that. Writers like that are too serious and precious about their ‘craft’ as they call it. There’s no fire or danger there, because they’ve thought all of it out. (Smith, p. 115)

Smith insiste em fazer distinções entre géneros musicais. Música rock ou punk não é música no sentido normal do termo, como música clássica ou a música de Cohen, por não ser essa a intenção que está por trás da sua composição. Smith rejeitava qualquer tipo de associação entre coisas poéticas e o seu trabalho, e é aqui que ambos os pontos principais convergem: a música que Smith fez com os The Fall não tinha qualquer relação com algo que pudesse ser apelidado de poético ou artístico. Era um trabalho como outro qualquer e, sendo assim, requeria esforço e atenção ao que era preciso fazer. Fazer música (e, por extensão, fazer arte) não é, para Smith, algo que se deva levar a sério no sentido poético, mas sim no sentido laborioso.

Apesar do que Smith diz parecer contraditório, o que está a dizer é que não há grandes ganhos em distinguir música pop e comercial como a canção das Reynolds Girls de música mais «inteligente» e menos comercial, como The Fall ou música punk; o que importa é uma preocupação em fazer algo novo e tratar o seu trabalho como trabalho. Talvez seja isto que separa Mark E. Smith de outras bandas punk ou post-punk da altura. Foi, simultaneamente, por acaso e não por acaso que os The Fall surgiram na altura em que surgiram. A ética da banda é muito mais importante para Smith do que considerações que se possam ter sobre arte ou sobre zeitgeists.

A principal conclusão que se pode retirar da atitude de Smith face ao movimento punk e à música em geral, é a de que a música rock não é sobre técnica. Não lhe interessa muito o aperfeiçoamento. Ao falar de um dos álbuns mais conhecidos dos The Fall (Hex Enduction Hour, 1982), Smith afirma que

I was trying to get the group to play out of time. It’s very cyclic this; I tried to do the same thing with Reformation[2]: taking musicians out of their comfort zone, getting them to think about timing in a distorted way. It’s weird because I never sing in time. Last thing you want is a regular time. (Smith, pp. 113-14)

O interesse principal de Smith não é ser um bom músico de modo a ganhar fama ou dinheiro, mas interessa-lhe, principalmente, pagar as contas no fim do mês: «I went through a period when I couldn’t listen to it [Hex Enduction Hour] because I thought that I’d never be able to improve upon it. But then I stopped thinking like [Elvis] Costello and realized I had bills to pay and got back on the beat» (ibid. 113). Fazer bem o trabalho que temos não é, para Smith, dependente do trabalho em si, de características que cada profissão possa ter; um trabalho deve ser bem feito por ser um trabalho e por ter de ser feito. A virtude de Smith assenta no reconhecimento de que não há importância em (nem tempo para) fazer distinções entre ser músico, escritor ou estivador.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=6aGsaQMvFN4.

[2] Reformation Post TLC, álbum de 2007 dos The Fall.

Bibliografia

Cocker, Jarvis. Good Pop, Bad Pop: An Inventory. Londres: Jonathan Cape-Penguin Random House, 2022.

Smith, Mark E. Renegade: The Lives and Tales of Mark E. Smith. Londres: Penguin Books, 2008.

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