I never was the things I said I was,
But it’s not as if I lied.
What I was, all I was,
Was the effort to describe,
The effort to describe.
Now, I may not have been born to deliver the truth,
But I sure do love to ride the route.

(...)

Yeah, you can call me anything
Just as long as I can sing.
I sing for answers,
I sing for good listeners
And tired dancers.

 

Bill Callahan, «Call Me Anything»

 

A canção «Feather by Feather», de Bill Callahan, assinada como (Smog),[1] apresenta uma narrativa de consolo. Na segunda estrofe, o narrador diz o seguinte: «And it’s crow vs. crow, / A brawl in mid-air, / Beak-click on beak-clack, / No reason is there / But for the brawl in mid-air» (2003). O facto de o combate ser «crow vs. crow» tira a especificidade aos combatentes. A falta de «reason» no combate deve-se ao facto de ser um combate emocional, mas também se poderia dizer que o combate é o seu próprio motivo. Mais à frente, quando os combatentes são especificados, podemos voltar a ler «crow vs. crow» com mais propriedade: «It’s Ali vs. Clay, / Both pummelling away. / A champ always fights themself.» Cassius Clay é o nome de nascimento de Muhammad Ali; «Ali vs. Clay» é, então, equivalente a «crow vs. crow.» Assim que isto é explicitado, torna-se claro que o consolo é dirigido ao próprio narrador, e não a uma pessoa exterior a ele. Isto é consolidado pela seguinte estrofe:

When they make the movie of your life
They’re going to have to ask you
To do your own stunts,
Because nobody, nobody, nobody, nobody
Could pull off the same shit as you
And still come out alright. (ibid.)

Quando fizerem o filme da vida da pessoa (quando, não se), só esta poderá fazer as suas acrobacias, visto que só esta sabe o que é passar pelos problemas que passou. Aliado a isto está a ideia de que uma narrativa (um filme) é muito parecida com uma vida humana, mas apenas no sentido em que é feita de particulares que dizem respeito a cada pessoa e em que só essa pessoa pode emular as suas experiências de forma fidedigna.

O último verso da estrofe «Ali vs. Clay» é também relevante: «a champ always fights themself» Este verso toma o tema do consolo e consegue condensá-lo no verso ao dizer que um «champ»[2] (um campeão de boxe, mas também o narrador, ligado depois ao verso «kid’s got heart» do final da canção), luta sempre com «themself.» Isto volta a apontar para a ideia do narrador dirigir-se a si mesmo nesta canção.

 

O único livro de ficção que Callahan publicou, Letters to Emma Bowlcut (2010), é uma novela epistolar composta por cartas escritas por um narrador anónimo que começa a escrever cartas a uma rapariga, chamada Emma Bowlcut, que conhece numa festa. O narrador, que tem como função estudar o «Vortex», algo que não é bem explicado o que possa ser ao longo do livro, é um grande admirador de boxe; na segunda metade do livro começa a ter aulas de boxe e a querer participar activamente no desporto.

Na primeira carta, o narrador conta a Emma as impressões do seu primeiro encontro na festa:

I heard those footsteps. I turned my head and you were there. At that party. I was the one whose date was a micrometer. (...) I could talk about your hair or my studies. They are intricately connected. And that is what struck me about you. I am dominated by my work. When I saw it growing out of your head, I had to write you.
I couldn’t talk to you but I had to write you. (Callahan 2010, 3, meus itálicos)

A ambiguidade na expressão «I had to write you» ― a necessidade de escrever a Emma e de a escrever (ou inventar) ― aponta não tanto para a possibilidade de Emma ser um produto da sua imaginação (não é uma hipótese de grande interesse), mas para a possibilidade de, enquanto escreve a Emma, o narrador estar a dirigir-se a si mesmo, ao falar sobre si mesmo: «It crossed my mind that my letters are all about me and not about you» (ibid., 8). Os jogos de palavras do narrador têm um propósito cómico no livro, mas também podem sugerir uma relação entre duas actividades de grande importância para ele, a escrita e o boxe: «I hope you are finding time to write me. Take off your mitts and write me. Or does the sight of your demitted mitt negate the mitt mittiness of mitt all» (ibid., 15). Não parece ser por acaso que a palavra «write» rima com a palavra «fight» e que tenham uma relação em «[t]ake off your mitts and write me.»

As observações do narrador sobre combates de boxe permeiam o livro. O que parece motivar a sua relação com o boxe é o que se poderia chamar uma «equiparação moral»:

The highlight [of the fight] was one feller going down for the second time, squarely beat—the ref holding him down with a loving hand on his chest. The fighter saying, I’m clear, I’m clear. The ref shook his head. The downed man said, Let me up, I’m embarrassed. And that bald admission cut through everything. I could barely hold my head up after that for fear of making eye contact with him. I must be the only son of a bitch in the crowd with tears welled up at just about every fight I see. A boxing match is like a wedding. Oh, it’s so beautiful. (ibid., 22)

O casamento (ou a vida doméstica) é uma preocupação recorrente na obra de Callahan.[3] A canção «Pigeons», do seu álbum Gold Record (2020), é pertinente para mostrar a relação do cantor com o matrimónio. O narrador da canção é um motorista de limusinas para recém-casados, e a dada altura da canção o noivo repara no anel do motorista e pergunta-lhe se tem conselhos para eles (o casal). O narrador depois diz o seguinte:

Well, I thought for a mile, as I drove with a smile,
Then I said “when you are dating, you only see each other,
And the rest of us can go to hell,
But when you are married, you’re married to the whole wide world:
The rich, the poor,
The sick and the well,
The straights, and the gays,
And the people that say ‘we don’t use those terms these days’.
The salt and the soil.” (Callahan 2020)

 As opiniões do narrador sobre casamento dão-se pela oposição entre o fechamento ao resto do mundo quando um casal está a namorar e uma abertura a todos a partir do momento em que se casam. O casal não responde e continua em silêncio, com o narrador a reflectir se os seus conselhos foram «potent advice or preachy as hell» (ibid.). No final, o narrador diz que se vai embora sozinho, mas que não está sozinho, e termina com um verso de Leonard Cohen da sua canção «Famous Blue Raincoat»: «Sincerely, L. Cohen.» «Pigeons» começa com a forma de Johnny Cash abrir os concertos, «Hello, I’m Johnny Cash», tornando a letra desta canção numa carta, com cumprimento e despedida. Poder-se-ia ler os versos finais em que diz que não está sozinho como uma homenagem a duas pessoas que o influenciaram muito, Cohen e Cash, mas creio que é mais plausível a ideia de que não está sozinho porque está casado e está «married to the whole wide world.»

Regressando ao boxe, creio que o papel que o desporto tem na vida pessoal de Callahan é muito útil para perceber a relação do narrador da novela com a mesma actividade. Numa entrevista concedida à revista BOMB, em 2009, quando lhe perguntaram como tinha nascido o seu interesse por pugilismo, Callahan respondeu o seguinte:

A friend had done something horribly wrong to me. I wanted to punch him in the face the next time I saw him and knock him out. So I started watching other people do it. It turns out it was not a horrible thing, so much. It was a comedic twist thing. Or almost like a miracle-type misunderstanding. So I calmed down and no longer wanted to punch him in the face. But I was left with this beautiful thing, a love of boxing that stimulates me so much. I’m writing this epistolary epic poem called Letters to Emma Bowlcut that will come out on Drag City. It is the story of a boxing fan. I try to explore what I love about fights in the book, among other things. People don’t think they like boxing but if I show them the right tape, with the backstory of the fighters, they get hooked. I don’t consider it a sport. (Raymond 2009)

É de notar que o peso que o boxe teve, e tem, na vida pessoal de Callahan afectou a sua vida profissional ― foi uma das origens do seu livro. Poder-se-ia também argumentar que uma das motivações de Callahan para escrever a novela foi uma tentativa de justificar o seu fascínio pelo boxe e fazer com que outras pessoas vissem o que ele vê. O narrador afirma, em cartas diferentes: «I could become a boxer. Easy» (Callahan 2010, 51) e «I could become a short-story writer. Easy» (ibid., 65).

Agora, o que une a apreciação de Callahan pelo boxe (seja pessoalmente ou na sua obra) com a escrita é, a meu ver, uma apreciação moral; mais especificamente, uma forma particular de apreciar carácter. Numa entrevista a Callahan para a revista The Quietus, Laura Snapes pergunta-lhe: «Had you long harboured ambitions of being an author? Who are your favourite writers?», ao que Callahan responde:

I’d like to be an author someday! I don’t think I am. I just wrote a book is all. I think you have “favorite” authors and “favorite” things when you are young, ie from childhood to early 20s. After that, things kind of explode out and you see writing as writing. You value writing as writing. And anything can be as good as the next. Your grampa can write a sentence in an email that is devastating, beautiful. So, I’m more a follower of writing than favorite writers. It’s too rigid, otherwise. (Snapes 2010)

Para além da aparente humildade de Callahan sobre o seu valor como autor de prosa, é de notar que, a seu ver, há um progresso moral existente na apreciação do que nos rodeia, «favorite things.» Para ele, a partir de uma certa idade, as pessoas (neste caso, autores) não estão preocupados com quem escreveu o quê, mas antes com o que se escreve.[4] Uma defesa de uma atenção deste tipo é moral no sentido em que não se dá importância apenas a escolas literárias ou a autores de renome, mas reconhece-se beleza noutros sítios (um email do nosso avô, por exemplo).

O reconhecimento de outras pessoas pode começar a partir do casamento, mas é algo que é ganho com experiência (se fosse apenas uma questão de cerimónia, o casal da canção anteriormente citada não teria pedido conselhos ao motorista). O boxe, para Callahan, é uma forma de aprendizagem moral; primeiro a partir da observação e só mais tarde através da aplicação prática. É também de notar que a aplicação prática não é descrita como sendo melhor do que a observação, mas algo que deriva dela por necessidade (sendo que a observação continua a fazer parte da actividade). A analogia boxe-amor, com o combate-casamento por intermediário, está profundamente enraizada na ideia de conhecimento e reconhecimento de outras pessoas. A epígrafe da novela de Callahan é muito explícita quanto a isto. Retirada de um livro sobre boxe, diz:

In the pursuit of further knowledge Joe was subsequently struck by Philadelphia Jack O’Brien, who had been hit by Bob Fitzsimmons, who had been hit by Jim Corbett, Corbett by John L. Sullivan, he by Paddy Ryan, Ryan by Joe Goss, and Goss by Jem Mace. (Callahan 2010)

O conhecimento é transmitido através de outras pessoas pela experiência (neste caso, o combate). Joyce Carol Oates, num livro de ensaios sobre boxe, disse o seguinte:

Nor can I think of boxing in writerly terms as a metaphor for something else. No one whose interest began as mine did in childhood—as an offshoot of my father’s interest—is likely to think of boxing as a symbol of something beyond itself, as if its uniqueness were merely an abbreviation, or iconographic; though I can entertain the proposition that life is a metaphor for boxing—for one of those bouts that go on and on, round following round, jabs, missed punches, clinches, nothing determined, again the bell and again and you and your opponent so evenly matched it’s impossible not to see that your opponent is you: and why this struggle on an elevated platform enclosed by ropes as in a pen beneath hot crude pitiless lights in the presence of an impatient crowd?—that sort of hellish-writerly metaphor. Life is like boxing in many unsettling respects. But boxing is only like boxing. (Oates 1987, n.p., meus itálicos)

A citação de Oates (que Callahan menciona em duas das entrevistas citadas aqui) aponta para um aspecto muito importante: o boxe não pode servir como metáfora para outra coisa. A relação que Oates tem com o boxe é muito semelhante à de Callahan, dado que o seu interesse não está na relação do desporto com outras coisas (estabelecido através de uma metáfora), mas no próprio desporto. Poder-se-ia também argumentar que esta relação está ao mesmo nível da relação que Callahan tem com a escrita: «You value writing as writing» (Snapes 2010).

 

O narrador está a lutar contra si mesmo, como se fizesse «shadowboxing», sendo as cartas para Emma momentos de reflexão e registo do seu progresso. A ideia de progresso moral para Callahan também depende de uma verdade necessariamente conseguida em conjunto. Como diz na canção «Truth Serum», «people, there’s a lesson here plain to see / There’s no truth in you / There’s no truth in me / The truth is between» (Callahan 2003). O «between» é o que está entre o «you» e o «me», ou seja, as cartas (ou os combates). Isto pode ser visto no seguinte excerto de uma entrevista com Callahan:

Peter Moysaenko: Is there another reason why you were drawn to this tradition with roots as ancient as those of epic verse? Are you an avid letter writer in general?

Bill Callahan:  It used to be all that I built my hopes and dreams on, letters. When I was a whelp. There’s a lot of desire and loneliness and happiness, givingness in letters. Letters are for the underdog, for the truth. Weapons. And also how retirees vent their frustration at fast food restaurants that don’t give them the correct change.

(...)

A beautiful fight can spring on you from out of nowhere. It can be for so many different reasons. Joyce Carol Oates said, “Boxing is life.” It’s not a sport, it’s not even a metaphor for life. It is life. The better fighter can often lose. That is one of the best things about boxing. Upsets. Something can spook a champ. Anything. A bad night’s sleep the night before a match. Some thought of which he can’t rid himself. The body deciding not to work. Inexplicably sluggish on fight day when you’d been feeling sharp as a tack for a month. As long as both fighters have some decent training and are roughly the same size/weight as each other, boxing is a pretty even playing field where either one could win. (Moysaenko 2010)

O género epistolar, para Callahan, constitui uma forma de ver o mundo muito parecida com o pugilismo: há desejo, solidão, felicidade, generosidade, perdedores e verdade. As preocupações que Callahan mostra nas canções, na prosa e nas entrevistas giram todas em torno da questão de como (e a quem) prestar atenção. Parece também ser importante reconhecer que há um meio termo entre manter-se fiel ao que ele pensa e quer, e o que o público acha do seu trabalho («the truth is between»); é uma parte inextricável da sua forma de escrever canções e do conteúdo das mesmas: «I sing for answers, / I sing for good listeners / And tired dancers» (Callahan 2019). Apesar de ele cantar para conseguir respostas, isto não exclui (aliás, implica) ser um bom ouvinte ou um dançarino cansado, sendo a melhor forma de perceber quem está a ouvir as suas canções. Para Callahan, escrever cartas, praticar boxe e, especialmente, escrever canções são actividades que não podem prescindir de um público. Falar sozinho, shadowboxing, é sempre falar com alguém.

 

[1] O nome artístico de Bill Callahan entre 1988 e 2005, passando a assinar com o seu nome civil a partir de 2007.

[2] A sugestão criada pela semelhança ou proximidade entre palavras é claramente algo que interessa Callahan: «Munching around, champing at the bit. I was chomping at the bit until I found out it was champing. Getting out of the house to stop the film loop in me.» (Callahan 2010, 6) Cf. ibid., 3, 8 e 15.

[3] Ver, por exemplo, «Let’s Move to the Country» (Knock Knock, 1999); «Morality» e «Our Anniversary» (Supper, 2003); «What Comes After Certainty» e «Son of the Sea» (Shepherd in a Sheepskin Vest, 2019), para não falar da centralidade do tema no seu último disco, YTILAER (2022).

[4] Isto também é uma preocupação presente na apreciação que Callahan faz da sua própria obra e da relação que ela tem com a de outros artistas. Por exemplo, à interpretação que um entrevistador faz da citação feita por Callahan (em «Real Live Dress») da canção «Baby Got Back», de Sir Mix-a-Lot, como sendo uma apropriação irónica, Callahan responde: «You’re way wrong. I love “Baby Got Back” and think those lines are pure and true. Keeping it simple. It wasn’t irony, it was admiration for the clarity. It was acknowledging that I couldn’t top it. If I quote something it’s because I can’t top it. No irony.» (Parkhill 2013).

* Doutorando financiado pela FCT (2023.00613.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 Bibliografia:

Callahan, Bill. Supper. Chicago: Drag City, 2003.

______. Letters to Emma Bowlcut. Chicago: Drag City, 2010.

______. Shepherd in a Sheepskin Vest. Chicago: Drag City, 2019.

______. Gold Record. Chicago: Drag City, 2020.

Moysaenko, Peter. «Boxing and Ex-Girlfriends.» 9 de Setembro 2010. BOMB. <https://bombmagazine.org/articles/2010/09/09/boxing-and-ex-girlfriends/.> Último acesso a 26 de Julho 2024.

Oates, Joyce Carol. «On Boxing» in On Boxing. 1987. Nova Iorque: HarperCollins e-books, 2009.

Parkhill, Chad. «Beer & Thank You: Bill Callahan Interviewed». 8 de Outubro 2013. The Quietus. <https://thequietus.com/interviews/bill-callahan-interview/>. Último acesso a 26 de Julho 2024.

Raymond, Jon. «Interview: Bill Callahan.» 1 de Julho 2009. BOMB. <https://bombmagazine.org/articles/2009/07/01/bill-callahan/>. Último acesso a 26 de Julho 2024.

Snapes, Laura. «A Q&A With Bill Callahan & Extract From Letters To Emma Bowlcut». 18 de Agosto 2010. The Quietus. <https://thequietus.com/culture/books/smog-bill-callahan-interview-letters-to-emma-bowlcut-extract/.> Último acesso a 26 de Julho 2024.

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