OS CAMPANÁRIOS DE CAEN. A CATEDRAL DE LISIEUX.

 

JORNADAS DE AUTOMÓVEL*

 

Saído de... com a tarde já muito avançada, não tinha tempo a perder se queria chegar antes da noite a casa dos meus pais, mais ou menos a meio caminho entre Lisieux e Louviers. À minha direita, à minha esquerda, diante de mim, as janelas do automóvel, que eu mantinha fechadas, emolduravam, por assim dizer, envidraçando-o, o belo dia de Setembro que, mesmo ao ar livre, apenas se via através de uma espécie de transparência. Do ponto mais longínquo em que nos avistavam, junto à estrada em que permaneciam curvadas, velhas casas mancas corriam pressurosas à nossa frente, estendendo-nos algumas rosas frescas ou mostrando-nos com orgulho a jovem malva-rosa que tinham criado e que as ultrapassava já em altura. Outras casas surgiam apoiadas ternamente a uma pereira que a sua velhice cega tinha a ilusão de ainda estacar, e apertavam-na contra o coração mortificado em que a árvore tinha para sempre imobilizado e incrustrado a irradiação magra e apaixonada dos seus ramos. Logo a estrada curvou e, uma vez nivelada com o talude que a bordejava pela direita, apareceu a planície de Caen sem a cidade que, contida porém na extensão que eu tinha diante dos olhos, não se deixava ver nem adivinhar por causa da distância. Solitários, elevando-se da superfície uniforme da planície e como que perdidos em campo aberto, subiam para o céu os dois campanários de Santo Estêvão. Não tardámos a ver três: o campanário de São Pedro juntara-se-lhes.[1] Reagrupados numa tripla agulha montanhosa, apareciam, como muitas vezes em Turner, qual o mosteiro ou o castelo que dá nome ao quadro, mas que, no meio da imensa paisagem de céu, de vegetação e de água, ocupa tão pouco espaço, parece tão episódico e momentâneo como o arco-íris, a luz das cinco da tarde e a pequena camponesa que, em primeiro plano, se faz ao caminho entre os seus cestos. Os minutos passavam, seguíamos depressa e, contudo, os três campanários estavam sempre sozinhos diante de nós, como pássaros pousados na planície, imóveis, e que se distinguem à luz do sol. Depois, rasgando-se a distância como uma bruma que desvela, por completo e em todo o pormenor, uma forma invisível no instante anterior, apareceram as torres da Trindade ou, melhor, apenas uma torre, de tal modo escondia com exactidão a outra atrás de si. Mas desviou-se, a outra avançou e alinharam-se ambas. Por fim, um campanário atrasado (o de São Salvador, suponho) veio, numa curva audaciosa, colocar-se face a elas. Então, entre os campanários multiplicados, e em cujo declive se distinguia a luz que àquela distância víamos sorrir, a cidade, baixa, resignando-se à elevação deles sem a poder igualar, expandia a pique e em subidas verticais a fuga complicada mas franca dos seus telhados. Tinha pedido ao motorista que parasse um momento diante dos campanários de Santo Estêvão mas, lembrando-me de como tínhamos sido lentos a alcançá-los, a eles, que desde o início pareciam tão próximos, tirei o relógio para ver quantos minutos demoraríamos ainda, quando o automóvel fez uma curva e me pôs aos seus pés. Durante tanto tempo inatingíveis ao esforço da nossa máquina que parecia patinar em vão na estrada, sempre à mesma distância deles, foi somente nos últimos segundos que a velocidade de todo aquele tempo, totalizada, se tornou perceptível. E, gigantes, dominadores do cume da sua altura, atiravam-se tão rudemente para a nossa frente que parámos mesmo a tempo de não esbarrarmos contra o pórtico.

Prosseguimos o nosso caminho. Tínhamos deixado Caen havia já muito tempo, e a cidade, depois de nos ter acompanhado durante alguns segundos, desaparecera, de maneira que, deixados sós no horizonte a ver-nos fugir, os dois campanários de Santo Estêvão e o campanário de São Pedro agitavam ainda em sinal de adeus os seus cimos ensoalhados. Às vezes, um ocultava-se para que os dois outros nos pudessem avistar ainda um instante; em breve, não vi mais que dois. Por fim, giraram uma última vez sobre si próprios como duas agulhas de ouro, e desapareceram da minha vista. Não raro, desde então, passando ao sol poente na planície de Caen, revi-os, por vezes de muito longe, e eram apenas como duas flores pintadas no céu, sobre a linha baixa dos campos; por vezes, um pouco mais de perto, já alcançados pelo campanário de São Pedro, semelhantes às três raparigas de uma lenda abandonadas numa solidão em que começava a cair a obscuridade; e enquanto me afastava via-os timidamente procurar o seu caminho e, depois de algumas tentativas trôpegas e de uns quantos tropeções desastrados das suas nobres silhuetas, via-os fechar-se uns contra os outros, deslizar um atrás do outro, desenhando no céu ainda róseo uma única forma escura, deliciosa e resignada, e esconder-se na noite.

Começava a desesperar de chegar a Lisieux a horas de passar o serão com os meus pais, que felizmente não tinham sido avisados da minha chegada, quando pela hora do crepúsculo nos metemos por um declive rápido no fim do qual, na concavidade sangrante de sol em que descíamos a toda a velocidade, vi Lisieux, que aí nos tinha precedido, reerguer e alinhar à pressa as suas casas feridas, as suas altas chaminés tintas de púrpura; num instante, tudo tinha retomado o seu lugar e, quando alguns segundos mais tarde nos detivemos à esquina da Rue aux Fèvres, as velhas casas cujos finos troncos de madeira nervurada desabrochavam nos suportes das vigas sob a forma de cabeças de santos ou de demónios pareciam não ter vacilado desde o século XV. Uma avaria no carro obrigou-nos a ficar em Lisieux até ao cair da noite. Antes de partirmos, quis rever na fachada da catedral algumas folhagens de que fala Ruskin, mas as débeis candeias que iluminavam as ruas da cidade não chegavam à praça em que a Notre-Dame estava quase imersa na escuridão. Avancei, todavia, querendo pelo menos tocar com a mão a floresta de pedra de que brotava o pórtico e entre cujas áleas tão nobremente talhadas desfilou talvez a pompa nupcial de Henrique II de Inglaterra e de Leonor de Aquitânia. Mas no momento em que dela me aproximava tacteando, uma súbita claridade inundou-a: tronco após tronco, os pilares saíram da noite, destacando vivamente, em plena luz sobre um fundo de sombra, o relevo abundante das suas folhas de pedra. Era o meu motorista, o engenhoso Agostinelli que, enviando às velhas esculturas a saudação do presente cuja luz já só servia para melhor ler as lições do passado, dirigia sucessivamente para todas as partes do pórtico, à medida que eu as queria ver, os faróis do seu automóvel[2]. E ao voltar para o carro, vi um grupo de crianças que a curiosidade aí reunira e que, inclinando sobre o farol as cabeças cobertas de caracóis que palpitavam naquela luz sobrenatural, recompunham aqui, como que projectada por um raio vindo da catedral, a figuração angélica de uma Natividade. Quando deixámos Lisieux era noite cerrada; o meu motorista tinha vestido uma grande capa de borracha e coberto a cabeça com uma espécie de coifa que, envolvendo a plenitude do seu jovem rosto imberbe, o fazia assemelhar-se, enquanto nos embrenhávamos cada vez mais depressa na noite, a um peregrino ou, antes, a uma religiosa da velocidade. De tempos a tempos — santa Cecília improvisando num instrumento ainda mais imaterial — tocava no teclado e movimentava um dos jogos daqueles órgãos escondidos no automóvel e de cuja música, embora contínua, apenas nos apercebíamos nessas mudanças de registo que são as mudanças de velocidade; música por assim dizer abstracta, toda símbolo e toda número, e que faz pensar na harmonia que produzem, diz-se, as esferas, quando giram no éter. Mas na maior parte do tempo, limitava-se a segurar a roda — a roda da direcção (que se chama volante) — muito semelhante às cruzes de consagração que seguram os apóstolos adossados às colunas do coro da Sainte-Chapelle de Paris, à cruz de São Bento e, em geral, a qualquer estilização da roda na arte da Idade Média. Não parecia servir-se dela, de tal modo se mantinha imóvel, mas agarrava-a como teria agarrado um símbolo de que se devesse fazer acompanhar. Também os santos nos pórticos das catedrais seguram, um, uma âncora; outro, uma roda, uma harpa, uma foice, uma grelha, uma trompa de caça, pincéis. Mas se estes atributos se destinavam em geral a lembrar o ofício em que esses homens se distinguiram enquanto viviam, eram também por vezes a imagem do instrumento pelos quais pereceram. Fique para sempre o volante do jovem motorista que me conduziu o símbolo do seu talento, mais do que a prefiguração do seu suplício! Tivemos de parar numa aldeia onde fui durante alguns instantes, para os habitantes, o «viajante» que deixou de existir por causa dos caminhos-de-ferro e que o automóvel ressuscitou; aquele a quem a criada nos quadros flamengos serve o último copo antes da partida; que vemos nas paisagens de Cuyp, detendo-se para perguntar o caminho, como diz Ruskin, «a um transeunte cuja aparência basta para se perceber que é incapaz de o informar» e que, nas fábulas de La Fontaine, cavalga ao Sol e ao vento, coberto com um balandrau quente no princípio do Outono, «quando a precaução ao viajante é boa», — aquele «cavaleiro» que, na realidade, já não existe e que no entanto ainda entrevemos algumas vezes a galopar na maré baixa, à beira-mar, quando o Sol se põe (saído sem dúvida do passado em benefício das sombras da tarde), fazendo da paisagem de mar que temos diante dos olhos uma «marinha» que data e assina, pequena personagem que parece acrescentada por Lingelbach, Wouwermans ou Adriano Van de Velde de modo a satisfazer o gosto por pequenos episódios com figuras dos ricos comerciantes de Harlem, apreciadores de pintura, a uma praia de Guilherme Van de Velde ou de Ruysdael. Mas sobretudo, desse viajante, o que o automóvel nos devolveu de mais precioso, é a admirável independência que o fazia partir à hora que bem entendia e parar onde lhe aprouvesse. Compreender-me-ão todos aqueles a quem o vento, ao passar, tenha subitamente despertado o desejo de fugir com ele até ao mar, onde poderão ver, em vez dos pavimentos inertes da aldeia batidos em vão pela tempestade, as ondas levantadas retribuir-lhe golpe por golpe, rugido por rugido; todos aqueles, sobretudo, que sabem o que pode ser, em certos serões, a perspectiva de se fecharem com a sua dor durante toda a noite; todos os que conhecem a alegria que é, depois de se ter lutado longamente contra a angústia, assim que se começa a subir para o quarto abafando as batidas do coração, poder parar e dizer de si para si: «Ora essa! Não, não vou subir; sele-se o cavalo, prepare-se o automóvel», e fugir toda a noite, deixando para trás as aldeias onde a nossa dor nos teria sufocado, onde a adivinhamos debaixo de cada pequeno telhado que dorme, enquanto passamos a toda a velocidade, sem sermos por ela reconhecidos, longe das suas investidas.

Mas o automóvel parou na curva de um caminho fundo, diante de um portão aveludado de íris murchas e rosas. Tínhamos chegado à morada dos meus pais. O motorista toca a buzina para que o jardineiro nos venha facilitar a entrada, essa buzina cujo som nos desagrada pela sua estridência e monotonia, mas que todavia, como qualquer matéria, se pode tornar belo quando impregnado de um sentimento. No coração dos meus pais ressoou alegremente como uma palavra inesperada... «Parece-me ter ouvido... Mas então, só pode ser ele!» Levantam-se, acendem uma vela protegendo-a cuidadosamente do vento entrado pela porta que a impaciência já os fez abrir, enquanto ao fundo do jardim a buzina, cujo som tornado alegre, quase humano, já não podem desconhecer, não cessa de lançar o seu anúncio uniforme como a ideia fixa da alegria próxima dos meus pais, insistente e repetida como a ansiedade crescente de ambos. E ocorria-me que, no Tristão e Isolda (no segundo acto, a princípio, quando Isolda agita o seu agasalho como um sinal; mais tarde, no terceiro acto, ao chegar o navio), é, primeiro, à repetição estridente, indefinida e cada vez mais rápida de duas notas cuja sucessão é por vezes produzida pelo acaso no mundo desorganizado dos ruídos; e, da segunda vez, à flauta de um pobre pastor, à intensidade crescente, à insaciável monotonia da sua toada singela, que Wagner, por uma aparente e genial abdicação da sua força criativa, confiou a expressão da mais prodigiosa espera de felicidade que alguma vez encheu a alma humana.

 

[1] Abstenho-me, naturalmente, de reproduzir neste volume as numerosas páginas que escrevi sobre igrejas no Figaro, por exemplo, «A igreja de aldeia» (mesmo que muito superior, na minha opinião, a muitas outras que leremos adiante). Mas tinham entrado para À la Recherche du Temps Perdu e eu não me podia repetir. Se abri uma excepção para esta, é porque em Du Côté de chez Swann é apenas citada parcialmente algures, entre aspas, como exemplo do que escrevi na minha infância. E no IV volume (ainda não aparecido) de À la Recherche du Temps Perdu, a publicação no Figaro desta página reescrita é o assunto de todo um capítulo.

[2] Não podia de todo prever, quando escrevi estas linhas, que sete ou oito anos mais tarde este jovem me pediria para dactilografar um livro meu, aprenderia a pilotar aviões sob o nome de Marcel Swann, no qual associara amigavelmente o meu nome de baptismo e o nome de uma das minhas personagens, e encontraria a morte aos vinte e seis anos num acidente de aviação ao largo de Antibes.

 

*[N. do T.] Este texto é a primeira parte — uma espécie de prólogo — de um ensaio mais longo e erudito sobre Ruskin e as catedrais góticas francesas. Foi publicado pela primeira vez em 1907, no jornal Le Figaro de 19 de Novembro. O ensaio completo, intitulado «Em memória das igrejas assassinadas», foi incluído pelo autor na colectânea Pastiches et mélanges, publicada em 1919. Trata-se de um dos vários ensaios que Proust escreveu na época em que traduziu e leu de modo intensivo o crítico vitoriano, e que corresponde grosso modo ao interregno que mediou entre o abandono de Jean Santeuil, o romance falhado de juventude, e o começo da redacção ininterrupta de À la recherche du temps perdu. Face ao texto de 1919, as variantes do dactiloscrito, do Figaro e das provas de Pastiches et mélanges são mínimas e estão repertoriadas em Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve, précédé de Pastiches et Mélanges, et suivi de Essais et articles, ed. Pierre Clarac & Yves Sandre, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de La Pléiade», pp. 716-717. A tradução segue a versão definitiva.

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