O contributo mais decisivo para o debate sobre o medium das artes foi, sem dúvida, o de Clement Greenberg. Essencialmente em «Towards a Newer Laocoon» (1940) e «Modernist Painting» (1960),[1] o modernismo na arte é descrito como o processo por que cada disciplina (a música, a literatura, a pintura, a escultura) passa para estabelecer criticamente, como a filosofia já fizera com Kant, os seus próprios limites, isto é, para expulsar de si mesma o que possa pertencer a outras disciplinas. O que cada arte tem de exclusivamente seu, conclui Greenberg, é o medium. No caso da pintura, o que fica no fim desta operação de depuração, é a tela e as tintas com as suas várias propriedades, acima de todas, o carácter liso da superfície dos quadros, que os pintores modernistas, a partir de Manet, procuram enfatizar, a expensas da ilusão de tridimensionalidade e de qualquer tentativa de emular a escultura, bem como da narratividade e dos efeitos tidos como «poéticos».

Em parte, no que toca à demarcação temporal do impulso crítico, esta tese foi desafiada por Leo Steinberg, que, em «Other Criteria» (1972),[2] apresenta exemplos de obras de arte visuais que, muito antes do modernismo, mostram de modo claro que os artistas, por exemplo, os iluminadores medievais, sempre se preocuparam com a natureza do medium. Também a arte da gravura demonstrou, ao longo dos séculos, que não é necessário as artes visuais tenderem para a abstracção a fim de exporem as características particulares do seu medium, e o próprio Steinberg reuniu uma colecção de gravuras notável, cuja parte mais substancial doou ao Blanton Museum of Art, da Universidade do Texas, em Austin.[3] Compreensivelmente, um dos gravadores favoritos de Steinberg é Claude Mellan (1598-1688), o inovador excêntrico que ― dir-se-ia em vocabulário greenberguiano ― procedeu à delimitação mais radical do medium da arte que cultivou com um virtuosismo poucas vezes igualado, reduzindo o número de talhes capazes de representarem ou sugerirem o modelado dos corpos e a gradação das luzes e das sobras a apenas um, impondo assim à sua capacidade expressiva um desafio técnico considerável.[4] O caso mais célebre em todo a obra de Mellan é o da Sainte Face (1649), em que a linha é única de um modo literal, pois todo o rosto de Cristo, bem como o pano e as inscrições no bordo inferior resultam de um único sulco espiralado que, do centro para a periferia, se vai engrossando ou adelgaçando para criar a ilusão.[5] A admiração que lhe é devida é a mesma que, mutatis mutandis, Erasmo sentiu a respeito de Dürer e das suas gravuras, e que radica na capacidade do artista para fazer muito com meios restritos: 

[Dürer] chega mesmo a representar o que não pode ser representado: fogo, raios de luz, tempestades, relâmpagos… caracteres e emoções ― em suma, o espírito humano em todo o seu esplendor… e quase a própria voz. Põe estas coisas diante dos nossos olhos por meio das linhas mais adequadas, linhas pretas, de um modo tal que, se lhes adicionássemos cores, destruiríamos a obra. E não é mais admirável alcançar sem a lisonja das cores o que Apeles alcançava com o seu auxílio?[6]

Muitas outras gravuras de Mellan problematizam de modo enfático a natureza do medium e, dela decorrente, a relação entre textos e imagens. É o caso da desmesurada Tese de teologia de Antoine Talon (1648), em que, na secção inferior, várias figuras se ocupam da inscrição do texto latino na base arquitectónica da grande alegoria que ocupa os dois terços superiores; e do frontispício para a edição do Novo Testamento em grego (1642), com uma cena de gravura em pedra dentro de outra cena de gravura em pedra. No Santo Agostinho, datado de 1660, vemos o santo no jardim da casa em que habitava com Alípio, em Milão. Alípio está junto a um canteiro delimitado por uma balaustrada. Debaixo da figueira, para onde se recolhera em pranto, Agostinho ergue o olhar na direcção da voz sobrenatural que lhe diz o famoso «tolle lege» (toma, lê),[7] proveniente do canto superior esquerdo. Que momento preciso da narrativa de Confissões VIII, xii está aqui representado? A cabeça do santo acaba de se virar e, com ela, boa parte do corpo. O joelho esquerdo está ainda assente no plinto rochoso que serve de genuflexório, mas o pé direito já está apoiado no chão. Também o cotovelo direito já não está apoiado na rocha, e, dos dedos, que estavam entrelaçados em atitude de oração, já só as pontas se tocam.

Em sentido estrito, apenas se vê aqui representado o instante em que Agostinho suspende o lamento e o choro para ouvir a voz sobrenatural. A conversão propriamente dita virá um pouco mais tarde, depois da leitura de S. Paulo, cujo códice deixara junto de Alípio. Mas Mellan não deixou de significar a conversão por meio de um conceito visual, que excede a narrativa, pois Agostinho está-se fisicamente a convertere, que em latim significa, à letra, virar ou voltar. Assim se consuma na perfeição o ideal albertiano e leonardesco do corpo, por meio dos seus movimentos, a exprimir os movimentos da alma, mas mais depressa se percebe que as artes gráficas têm uma gramática própria, e que não têm pejo em amalgamar momentos distintos da narrativa para produzir um efeito que só tem sentido no âmbito restrito da arte visual. Um tal conceito é reforçado plasticamente pelas linhas sinuosas que formam o tronco das duas árvores estruturantes da composição e que seguem a orientação do olhar do santo, mimetizando a torsão do seu corpo.

Acresce que o artista dirige também o «tolle lege» ao observador. Representar as falas das personagens por meio de uma inscrição no quadro, no pergaminho ou no papel, sobretudo quando são uma parte relevante da narrativa e permitem identificar iconograficamente a imagem, é uma convenção nas artes visuais (cf. a Anunciação de Ambrogio Lorenzetti ou, do próprio Mellan, o São Paulo em êxtase). Aqui, a inclusão da fala celeste dá ao artista o ensejo de reflectir acerca do estatuto dos textos e da sua representação numa obra de arte gráfica – numa gravura, concretamente, como se verá, e não nas imagens em geral. As palavras divinas passam à frente da árvore e estão no primeiro plano, tão próximo da superfície do papel ao ponto de se sugerir, equivocamente, que não são apenas parte da diegese mas que poderiam estar inscritas na própria gravura ― como, de facto, estão. Por outro lado, Mellan incluiu uma bandeirola no canto inferior esquerdo com a inscrição «Dolores animae salutem parturientes» e, no canto inferior direito, uma cartela com uma citação muito imprecisa, porque compósita, das Confissões. O modo como ambos os papéis escritos são apresentados não deixa margem para dúvidas: a bandeirola, à esquerda, está sobreposta a uma pedra e projecta uma sombra irregular, dado o seu formato anguloso, o desequilíbrio do apoio e o acidentado do chão ― tem uma existência «subjectiva» (como António José Saraiva diz dos deuses antigos n’Os Lusíadas, internos à narrativa e agentes no enredo); ao passo que a cartela, alinhada pelo canto inferior direito, exterior à diegese também porque Agostinho ainda não a poderia ter escrito, está encostada, de modo ilusório, ao papel da própria gravura, e é sobre ele que projecta a sua sombra ― tem, por sua vez, uma condição «objectiva» (como Saraiva diz de Deus, em que Camões, enquanto Cristão, acreditava). Se a bandeirola à esquerda contém uma inscrição que Santo Agostinho poderia ler, uma vez que faz parte do mundo dele, a cartela é visível apenas ao apreciador de gravuras, não lhe deixando dúvidas a respeito do assunto ilustrado. Metonimicamente, denota as Confissões, que, a serem bem-sucedidas, fazem de Santo Agostinho exemplo para futuras conversões. Mas um amador de gravuras que obedeça à injunção «tolle lege» só pode levantar, já não as epístolas de S. Paulo em que Agostinho pegou e que leu com efeitos prodigiosos, mas a pequena cartela que tem diante dos olhos (colocada no sítio em que alguém coloca os dedos para virar a página de um livro). Em última análise, ao tentar pegar na pequena cartela e, assim, nas Confissões (uma instância de pars pro toto), acaba por pegar na gravura. Quando julgava ter acesso a um texto, tem apenas acesso a uma obra de arte. Quando julgava ler, fica-se por ver. Mas esta limitação não é depreciativa da arte do gravador. Pelo contrário, dá crédito à capacidade da imagem para se substituir ao texto e para operar, também ela, conversões.[8]

Uma outra gravura de Claude Mellan tem a virtude de tematizar o paragone das artes, bem como a relação entre gravar e escrever. Trata-se do frontispício para De l’instruction de Monseigneur le Dauphin, um tratado acerca da educação do príncipe, o futuro Luís XIV, cuja autoria é atribuída a François de La Mothe Le Vayer, e que foi publicado em Paris por Sébastien Cramoisy em 1640. Nela se vê o delfim a ser iniciado nas mais diversas artes por Minerva, a deusa da sabedoria e da guerra. O significado alegórico da imagem parece não levantar grandes dúvidas: o resultado da educação do futuro rei é a paz e a estabilidade, simbolizadas pela oliveira e pela coluna. No entanto, também esta imagem revela subtilezas não imediatamente acessíveis a uma simples análise iconográfica. Entre os instrumentos espalhados em primeiro plano, na secção inferior da imagem, encontra-se um buril, o utensílio do gravador, por meio do qual são abertos na placa de cobre os sulcos mais ou menos profundos, de que resultam os traços mais ou menos grossos que vão definir as formas e os contrastes. As armas amontoadas no canto inferior direito, no limiar da imagem, têm o estatuto ambíguo de serem suplantadas pela oliveira da paz e de, em simultâneo, serem os instrumentos por meio dos quais aquela paz é assegurada. O caduceu de Mercúrio também está presente, um pouco mais perto do púlpito, e num plano mais recuado. Podendo-se ver nele simbolizado mais um dos frutos da educação ― o florescimento do comércio ―, não é acidental que esteja perfeitamente alinhado com o buril e com o esquadro. Na verdade, sendo o instrumento do deus mensageiro, é o mediador, o intermediário, entre o buril e a área mais caracteristicamente gravada da imagem ― a inscrição na face do púlpito, para a qual a deusa e a criança, imitando-a, apontam. O que está implícito é que o gravador é o veículo da educação, ao representar o delfim a ser educado e ao fixar por escrito o início desse processo. O futuro rei aprende a ler no título de um tratado acerca da sua educação. No fim do processo pedagógico, alcançada a meta, o pequeno papel em branco depositado no púlpito deverá ser escrito e assinado pelo soberano. Será a ordem de comando, a lei, o decreto por meio dos quais se estabelece o governo da nação e se consegue a felicidade da França. Do ponto de vista intradiegético, convida à prossecução da educação, o púlpito surgindo como um obstáculo que necessita de ser transposto e como um meio para chegar à redacção da lei. De um ponto de vista extradiegético, o papel interrompido pelo bordo da imagem convida à continuação da leitura ― já não apenas por parte do rei, mas por parte de quem queira em seguida folhear o livro de que esta imagem constitui a primeira página. Rei e leitor alinham-se, assim, e coincidem como agentes de uma acção comum, os planos intra e extradiegéticos coincidindo também. Além disso, o papel tem a forma da cartela por excelência, o lugar em que seria de esperar encontrar o nome do artista, relegado, ao invés, para o limbo da face do púlpito que o leitor vê mas o rei não. «C. Mellan G inven. et s» não podia, em rigor, e por decoro, estar inscrito no que viria a ser a lei, não seria lícito que ocupasse o lugar da assinatura real. Está, ainda assim, alinhado pelo seu prumo, como memória do lugar que, noutras circunstâncias, ocuparia, de modo natural, negligente e despretensioso.

O pequeno «s» que abrevia sculpsit (esculpiu, gravou), como o papel que há-de ser transformado na lei que produzirá efeitos em toda a França, é a expressão da intermediação, ao reproduzir quer a orientação quer a forma sinuosa das serpentes que se enrolam no caduceu, e ao reproduzir ainda a forma e a disposição do papel no púlpito. A gravura é escultura: reafirma-se, uma vez mais, nesta imagem. Por isso, o percurso de Minerva e do delfim, da esquerda para a direita, é acompanhado, no bordo inferior, por um percurso idêntico: da paleta do pintor, no canto esquerdo, à forma simétrica do escudo com a imagem de Medusa, uma figuração tradicional da escultura, no canto direito.

«Inven[it] et s[culpsit]» descreve assim, em sucessão, a transição do desenho para a gravura, mas também da imagem para a palavra, como acontece explicitamente a «dauphin»: dos pequenos golfinhos no manto do príncipe ao termo inscrito ― gravado, et pour cause ― na face do púlpito. A gravura, subentende-se, é uma forma de escrita, é um exercício racional, que dispensa a cor e o estímulo sensorial, não fazendo apelo aos sentidos mas apenas ao intelecto, a invenção da linha única sendo o resultado máximo dessa sublimação. É forma, dessein, mais que dessin.

O púlpito, assimilável à secretária do rei, é também análogo de um altar: a educação consiste no sacrifício da criança para se tornar mais que humana. Mas, ainda mais do que um altar, o encontro das duas figuras com a inscrição recorda o encontro dos pastores com um túmulo em plena Arcádia, nas duas versões que Poussin pintou deste tópico. Defende-se aqui que a primeira (Colecção do Duque de Devonshire, Chatsworth), pintada c. 1627, em Roma, onde Mellan então também vivia, terá servido de modelo à gravura, dada a semelhança na disposição e no progresso das figuras e, acima de tudo, no facto de, em ambos os casos, alguém tentar decifrar uma inscrição lapidar. Mellan substitui o choque do encontro dos pastores com a morte na Arcádia pela promessa de uma educação ― a educação de uma criança nas várias artes (a guerra, as belas-artes, o comércio) que, ao invés da morte, a vão tornar imortal. O púlpito só à primeira vista parece um túmulo, e a cena de instrução só aparentemente reitera a troca de atributos entre o túmulo de pedra e quem o lê; pelo contrário, o púlpito não é um ponto de chegada, mas um começo; e, nessa medida, a imagem gravada de Mellan corrige a pintura de Poussin. Assim se explica que a paleta e as cores fiquem para trás e dêem lugar ao «s[culpsit]» e ao papel-cartela ― papel no plano intradiegético, cartela no plano extradiegético ― onde a lei do reino vai ser escrita e a gravura de Mellan vai ser impressa.

Talvez se deva, assim, acrescentar agora à genealogia de imagens e significados que Panofsky descreveu no seu ensaio clássico[9] esta gravura de Mellan. Tenha-a Poussin conhecido ou não, a sua segunda versão do Et in Arcadia ego, datável de c. 1638-1640, mais famosa, e que se encontra no museu do Louvre, parece voltar a conceder a primazia à pintura, pois o pastor que tenta ler a inscrição, apontando para as letras, ocupa o lugar da filha de Butades, o oleiro de Corinto, de que fala Plínio na Historia Naturalis, e que, ao desenhar na parede o contorno da sombra do amante projectada na parede, teria inventado a pintura.[10]

(E talvez se deva acrescentar também à história que Panofsky conta uma inesperada derivação literária mais recente do tópico do encontro com uma sepultura, que associa a experiência mais ou menos feliz da Arcádia à troca de propriedades entre o morto e o viajante, tantas vezes tematizada na literatura. Parece consensual que, na primeira versão de Poussin, o amor tenha sido a actividade interrompida pela morte [ou pelo menos, pelo encontro com a morte], cedendo-lhe o lugar [o que fica claro no desalinho da figura feminina]. A contiguidade entre o amor e a morte é um dado cultural adquirido. Conjugada com a troca de atributos entre o vivo e o morto, recebe uma actualização divertida na longa e detalhada descrição do coup-de-foudre que abre Sodome et Gomorrhe:

À ce moment, où il ne se croyait regardé par personne, les paupières baissées contre le soleil, M. de Charlus avait relâché dans son visage cette tension, amorti cette vitalité factice, qu’entretenaient chez lui l’animation de la causerie et la force de la volonté. Pâle comme un marbre [...], il semblait déjà sculpté, lui Palamède XV, dans la chapelle de Combray.[11]

Semelhante a uma estátua jacente, amortecida a tensão vital e o nome mundano convertido em inscrição tumular, oficial, numerado em romano para a eternidade, o aspecto do barão de Charlus é em seguida descrito com uma variação do lugar-comum segundo o qual os mortos têm sempre uma expressão terna no rosto, pois gozam da paz e da tranquilidade que não tiveram no palco da vida, quando usavam a máscara da sociabilidade (ainda que sejam, como no caso em apreço, intratáveis). Mas, no momento em que o barão abre os olhos, Jupien, observado, e assim interpelado por um sta viator de espécie visual, paralisa, petrifica-se:

le baron, ayant soudain largement ouvert ses yeux mi-clos, regardait avec une attention extraordinaire l’ancien giletier sur le seuil de sa boutique, cependant que celui-ci, cloué subitement sur place devant M. de Charlus, enraciné comme une plante, contemplait d’un air émerveillé l’embonpoint du baron vieillissant.[12]

O barão, por sua vez, regressa ao tempo vivido, pois se diz explicitamente que (ainda) envelhece. Não é, pois, apenas a concomitância de lugar e de tempo, de que fala Genette ― a presença em simultâneo do barão, de Jupien, da orquídea e do abelhão no pátio ―, a sobredeterminar (ou a simular que sobredetermina), intratextualmente, a comparação de Jupien, pregado ao chão, a uma planta que ganha raízes[13]; a sobredeterminação deriva também, intertextualmente, da alusão ao venerando tópico do encontro inopinado com uma sepultura, de que decorre a animação dos mortos e, o seu corolário simétrico, a petrificação dos vivos.)


* Este texto é um excerto reformulado do meu relatório de Agregação, incidindo na cadeira de Literatura e Arte (do minor em Estudos Literários), que coube a António M. Feijó arguir, em Junho de 2023.

[1] Ambos os ensaios estão traduzidos e coligidos em Clement Greenberg, Vanguarda e Kitsch (Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018).

[2] In Other Criteria: Confrontations with Twentieth-Century Art, 2ª ed. (Chicago: The University of Chicago Press, 2007), pp. 55-91.

[3] Para um conspecto da história da gravura através do olhar pessoal do coleccionador, v. Leo Steinberg, «What I Like About Prints», in Art in Print – The Global Journal of Prints and Ideas, Janeiro-Fevereiro de 2018, vol. 7, nº 5, pp. 3-28.

[4] Na técnica da gravura a buril, os talhes são os sulcos abertos na placa de cobre, que serão preenchidos com tinta. Uma vez pressionada a chapa contra uma folha de papel, a tinta passa para o papel, num processo que poderá ser repetido tantas vezes quantas o artista ou o impressor quiser, e enquanto a chapa não se gastar. A técnica de Mellan abdica daquilo a que em francês se designa “contre-tailles”, i.e., as linhas ou os sulcos que se cruzam, para uma maior subtileza de gradações.

[5] O tratamento mais exaustivo e brilhante da Sainte Face foi feito por Irving Lavin, em “Il Volto Santo di Claude Mellan: ostendatque etiam quae occultet”, in Christoph Luitpold Frommel & Gerhard Wolf, eds., L'immagine di Cristo. Dall'acheropita alla mano d'artista. Dal tardo medioevo all'età barocca, Studi e testi 432 (Cidade do Vaticano, 2006), pp. 449-91. Entre outras considerações, muitas das quais determinantes para a natureza do medium da gravura, Lavin mostra como o conceito “formatur unicus una” que explicitamente determina esta gravura é devedor do ideal renascentista “ex uno lapide”, que impunha ao escultor o desafio de executar uma escultura monumental a partir de um único bloco de mármore. V. também, de Lavin, “Ex uno lapide: The Renaissance Sculptor’s Tour de Force”, in Il cortile delle statue: Der Statuenhof des Belvedere im Vatikan – Akten des internationalem Kongresses zu Ehren Richard Krautheimer, Rom, 21-23 Oktober 1992 (Mainz: Verlag Philipp von Zabern, 1998), pp. 191-210.

[6] Apud Giulia Bartrum, ed., Albrecht Dürer and His Legacy: The Graphic Work of a Renaissance Artist (Londres: British Museum, 2003), pp. 14-15.

[7] Santo Agostinho, Confissões, trad. Arnaldo do Espírito Santo, João Beato, Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2021), 3ª ed. revista.

[8] Por outro lado, se o coleccionador ou o amador de gravuras seguir o movimento da personagem e das linhas no tronco das árvores e virar a gravura, como se fosse a página de um livro, vai ver uma folha em branco, o verso, sem texto nem imagem, o que subtrai ainda mais a arte à esfera da literatura. A gravura até pode converter os espíritos, mas, lembra o artista, não é As Confissões. (Deve-se notar que Mellan concebeu esta gravura como obra autónoma, e não para servir de frontispício a nenhuma edição das Confissões.)

[9] Erwin Panofsky, «Et in Arcadia Ego: Poussin and the Elegiac Tradition», in Meaning in the Visual Arts (Harmondsworth: Penguin, 1970), pp. 340-367. Panofsky descreve a deriva semântica desta expressão latina ― na pintura, de Guercino à segunda versão de Poussin e, na literatura, passando por Goethe e Evelyn Waugh.

[10] Que o formato da sombra configure, no quadro de Poussin, a silhueta da morte empunhando a gadanha foi já objecto de ampla indagação, por exemplo, de Louis Marin, talvez o autor mais influente neste domínio: Louis Marin, Détruire la peinture (Paris: galilée, 1977).

[11] Marcel Proust, À la recherche du temps perdu, vol. III, ed. Jean-Yves Tadié (Paris: Gallimard «Bibliothèque de la Pléiade», 1988), p. 5.

[12] Idem, p. 6.

[13] Gérard Genette, «Métonymie chez Proust», in Figures III (Paris: Seuil, 1972), pp. 41-62; em especial pp. 49-50.

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