No recente The Holdovers (Alexander Payne, 2023), Paul Giamatti representa Mr. Hunham, professor detestado e irascível. Este é o espelho do professor Keating, personagem próxima e jovial protagonizada por Robin Williams em Dead Poets Society (Peter Weir, 1989). Os actores acrescentam credibilidade por estarem, em certa medida, a representar-se a eles próprios como indivíduos: a depressão de Giammati, eterno actor secundário na sombra de gente bem-parecida; a solidão de Robin Williams contra um mundo de fautores que têm em comum o facto de respeitarem mais os livros do que o talento, as autoridades do que as verdades, o hábito do que a paixão. O tutor Keating, professor novo no colégio, vem quebrar a tradição de ler poesia através de literatura secundária, apelando à impressão pessoal dos alunos sobre os poemas. O êxito é espantoso e este torna-se conselheiro dos jovens, adquirindo sobre estes uma autoridade moral. Diferentemente, o tutor Hunham é um professor temido pelos alunos, de quem desconfia. Se no caso de Keating a narrativa se desenrola de mais a menos, no caso de Hunham esta evolui de menos a mais. A ascensão e queda do primeiro contrasta com a queda e ascensão do segundo. O final do filme parece influenciar o modo como olhamos para a bondade dos seus projectos de esperança criadora, como acontecera celebremente no Titanic (filme de James Cameron, 1997), tal como explícito na linha de argumentação exposta por Žižek (The Perverter’s Guide to Ideology, 2012). A narrativa do filme de Cameron coincide com a abertura de possibilidades de amor impossível entre as personagens de Di Caprio e Winslet, onde um jovem pobre se apaixona por uma jovem rica. Tanto em Titanic como nos dois filmes que trazemos debaixo de olho, a sanção da autoridade traz-nos de volta «à realidade» (com a evidente diferença de que a autoridade é cósmica e se chama icebergue no caso de Titanic, e, no caso dos professores, o icebergue incontornável são professores autoritários). Que realidade é esta? Uma realidade possível entre outras, mas certamente não o único mundo possível; nem o «melhor dos mundos possíveis». É um certo modo de olhar para a vida de forma resignada. O’Neil chamou-lhe «modo funcionário de viver»: a aventura não é necessária e, logo, não é possível.
Bernard Williams alumiou o tema numa passagem em que dialoga com o método do velho Sócrates, contrariando-o:
Mas a ideia de um valor que reside para lá de toda a sorte é uma ilusão (…) consegue apenas encorajar a ideia de que quando essa ilusão desaparece não poderá haver ideias coerentes de justiça social, mas apenas a eficácia, o poder ou a sorte não neutralizada.[1]
Esta frase induz um entendimento «nem isto nem aquilo» sobre o sucesso, aferido como a relação entre as possibilidades de acção e as necessidades práticas; nem ele é um feito total do sujeito, nem ele é um feito estranho ao indivíduo. O acaso é o que se mete entre o homem e a vida, mas só se esquecermos o papel da ideologia. Nestes dois filmes, não há espaço para qualquer acaso, e o desenlace semelhante é inevitável: esse é o efeito da ideologia, ou pelo menos a aplicação do «modo funcionário» de ver. O filósofo defende uma visão particularista, a que geralmente se chama indução, ou «caso a caso». Este é o método frequente da moral que os juízes pediram emprestado às conversas banais e não devolveram. É o senso comum quem o tem actualizado e percebe-se bem porquê,[2] dado o afastamento entre alta e baixa cultura, linguagem técnica e linguagem comum. O raciocínio sobre casos semelhantes, descontada a imperfeição da analogia pelo fácil mutatis mutandis, permite acelerar a análise do que acontece até à previsão das condutas. Por exemplo, para Wittgenstein a causalidade (que enforma qualquer responsabilidade por associação, mesmo quando parece automática) significa uma forma de superstição; será assim no caso de Cristiano Ronaldo, como no caso do fado da Severa: a Severa morreu, jamais haverá outra igual, logo ninguém cantará o fado como a Severa. A rapidez confunde-se com a certeza das conclusões, e ambas formam o «ter razão» no senso prático da adequação. Como nos westerns, o primeiro a disparar é tido por sagaz. Porém, a aprendizagem requer lentidão. Um exemplo que me tem interessado ultimamente é a discussão sobre o que significa conhecer uma regra. Desenvolvendo formas de contingência, apercebemo-nos de quão erradas estão as posições de princípio reaccionárias sobre a certeza, a que chamaram «jurídicas», enquanto resultado inevitável de uma acção englobada numa categoria de actos. O que acontece, advoga Platão na Apologia de Sócrates, é que os grupos profissionais se comportam como um conjunto de sábios que julgam saber mais do que realmente sabem, e não como um conjunto de artesãos. Assim, uma parcela do significado redentor da contingência está relacionada com a ideia de aventura humana que costuma ser elogiada a propósito do ensaio «Experience», de Emerson (1844), onde se lê: «The secret of the illusoriness is in the necessity of a succession of moods or objects.»
A personagem real representada em Dead Poets Society terá sido Samuel Pickering, nascido em 1941 e professor na Universidade do Connecticut. A atitude escolar de Pickering pode ser resumida a partir de um depoimento: «I tie all kinds of things together because I like to drift. That’s the way life is. Some folks don’t like that». O professor apercebe-se de que o conhecimento não está em compartimentos estanques. Como disse um moralista conhecido, usamos diferentes caixas de ferramentas afeitas a tópicos específicos, não obstando, depois, a que os resultados da análise se possam relacionar. A diferença entre análise e síntese é histórica, deste ponto de vista. Esta sucede àquela. Possivelmente, Keating estava certo ao dizer aos estudantes que rasgassem as páginas de Evans-Pritchard. Era demasiado cedo para concluir sobre a experiência de leitura de cada um. O dramatismo de rasgar papéis é a demonstração do corte com um passado que não se deseja, também nos casos domésticos. Isso implica uma distanciação dos usos académicos, como acentua a parte final da frase de Pickering. Enquanto alternativa ao stare decisis dos amanuenses, o tema da esperança é desentranhado das leis gerais pela sensibilidade pessoal. Keating e Hunham serão professores mal vistos pelos pares, porque estão de facto contra os pares. Os dois são despedidos pela direcção da escola em consequência da sua generosidade a favor de estudantes que têm a sua criatividade original oprimida (seja pela família seja pelos maus professores).
No caso de Hunham, em The Holdovers, há um aspecto que é particularmente tocante. A depressão crónica do professor parece provocar no espectador piedade e até simpatia. Se o professor reagia contra a doença por um excesso de autoridade, o filme conduz-nos rapidamente à conclusão de que se trata de um ser bondoso. Aliás, talvez seja possível argumentar que todo o enredo nos grita isso mesmo aos ouvidos. Interessantemente, suponho que a empatia com a cozinheira e com o pupilo é um leve toque de cotovelo na infância escolar do espectador: já todos nos sentimos desamparados e a luz do filme é esse toque de humanidade. Tem sido dito ― não já apenas por românticos, mas agora também por académicos ― que as regras que aceitamos como boas são reconhecíveis já como estados de ânimo e paixões. Tanto são «representativas» neste sentido pessoal que são sinónimos de crenças e práticas.[3] Habituamo-nos a determinados significados e até a estarmos habituados a associá-los automaticamente. Eis a explicação das regras, e o caminho da liberdade, ao revés. Uma vez perguntaram a Miró se, em retrospectiva, se considerava predestinado para perturbar a lógica e a regularidade. Respondeu com desfaçatez, apelando à estranheza dos nomes habituais: «É como nos sonhos. Para mim uma árvore não é uma árvore, qualquer coisa que pertence à categoria dos vegetais, mas uma coisa humana, alguém vivo.»[4] Os sonhos são impossíveis, ou pior, os sonhos desembocam em catástrofe pessoal. Qualquer conservador ― como qualquer apologista do modo funcionário ― tem esta conclusão antecipada como segura. É assim porque os sonhos são uma forma de crítica aguda da realidade e da ideologia. Os sonhos são a desordem em movimento, e em certo sentido, a desorganização do real, se entendido como razão alienada. Se os dois filmes expõem a tomada de atitudes heterodoxas ― contra os usos escolares, contra os usos sociais ― dentro de uma comunidade tradicional, seja a escola ou a família escolhida pelo casamento, reforçam afinal a sugestão conservadora. Não acidentalmente, a recepção da crítica parece reiterar o entendimento de senso comum. Vê em Holdovers uma abordagem inteligente e empática do espírito de comunhão acidental que se gera entre várias pessoas em crise numa época festiva ao passo que, no caso de Dead Poets Society, vê um objecto de lugares-comuns que se traduz na atitude libertária e sentimental perante os brasões e as poses disciplinares. Hunham ― apetece dizer Giamatti ―, o mau professor, representa a canga de mediocridade e ódio de que somos portadores e alvos. Keating ― apetece dizer Robin Williams ―, o professor bom, é expelido na sequência do suicídio de um dos pupilos. É bastante plausível que a diferença de atitudes dos dois professores seja, em geral, enquadrada pela diferença de perspectiva entre um romântico e um conservador.
Para Keating, o despedimento é uma confirmação da sua originalidade e do seu talento, para Hunham é uma surpresa. Keating sabe o que faz e está consciente da sua posição na escola; quando é despedido estará triste, mas não surpreendido. Já Hunham parece agir por impulso afectivo. Está enamorado pelo novo pupilo, sem compreender as eventuais consequências. Mas terá culpa de não ter chegado mais acima no prédio da civilização? Terá sido demérito ou terá sido azar? O acompanhamento do aluno abandonado pela família nas férias de Natal parece-lhe a oportunidade perfeita para mudar a sua personalidade e a sua vida. É a redenção. Além disso, as férias de Natal são um período propenso a actos excepcionais de salvação.
Qualquer um dos professores, no entanto, assume o papel de autoridade moral sobre os jovens. Isso justificará, mais tarde, a responsabilidade exagerada que lhes é tributada pelos actos juvenis. Se os dois filmes parecem, em largos trechos, inspirados pela condenação de Sócrates por corrupção da juventude, destoam do argumento clássico de Platão no desenlace. Nas três histórias, as dos filmes e a de Platão, os tutores acabam despedidos por terem agido correctamente. Keating casa bem com Platão na famosa cena em que as mesas servem de apoio para os pés dos estudantes ― significa «não são vocês que me condenam a sair, sou eu que vos condeno a ficar».[5] Platão ampara a sua revolta de condenado com a serenidade do homem que conhece as fundações da moral melhor do que os seus juízes. Keating conhece especialmente bem o modo funcionário de viver; afinal foi ele quem disse para rasgarem as páginas de introdução à poesia e lerem por eles mesmos. Lê-se na Apologia de Sócrates:
O que acaba de me suceder é, sem dúvida, um bem, e os que entre nós pensarem que a morte é um mal estão enganados. Foi-me dada uma prova convincente, porque o sinal habitual se teria com certeza oposto a mim, se eu não estivesse destinado a ir ao encontro de algo de bom.[6]
A devolução do argumento ao senso comum é constante e envolve em todos os casos a noção de obediência a ordens superiores infundadas. A ideia é a de que a obediência dispensa qualquer outra justificação ética, aparentando a ideia de que a sobrevivência dispensa qualquer questão filosófica, o que pode, aliás, ser verdade. Tanto Williams como Giamatti são tristes representantes do que resta de mérito no sistema escolar privado e terão ascendido às suas posições intelectuais de superioridade através de graciosas bolsas excepcionais. Situa-se isto na questão da liberdade de movimentos em colégios privados, destinados a elites que tendem à degenerescência por uma frequentemente observável dissipação dos bens herdados, exemplos da preguiça. Os alunos da turma de Keating são de classe alta, irregularmente assisados e distraídos, como se espera de uma turma. No caso da relação paternal de Hunham com o jovem protegido, também filho da classe alta, mostra-se um amor impossível entre o professor odiado e o adolescente rebelde. Amparam-se na vulnerabilidade um do outro. Também aqui a mensagem é agradável para os espectadores comuns. Os pais ricos são sujeitos irresponsáveis, demasiado ocupados com relações negociais.
Um autor distinguiu entre «comunidades de recreação» e «comunidades de negócio».[7] A diatribe protagonizada pelo miúdo e pelo graúdo Hunham durante as férias de Natal parece reiterá-la. A ida à cidade parece ser feita por conta da bondade de Hunham, e só por acaso poderia revelar uma relação de aprendizagem entre tutor e aluno. É um divertimento. As convenções dos momentos de recreação têm uma lógica particular de responsabilidade, porque têm um sistema particular de sanções. Por exemplo, o cartão vermelho mostrado a um futebolista durante o jogo não tem consequências fora daquela actividade específica. Enquanto o modo negocial parece ter uma vocação predatória da vida, o ócio tem um antídoto para o veneno. Prescinde de certas regras e posições sociais formatadas pela economia. Como tal, é frequentemente descrita como uma atitude não convencional que vai dos passeios no parque à leitura de Ruy Belo em voz alta.
Finalmente, a posição cega de Hunham é a que se identifica mais com a narrativa ideológica sobre o trabalhador comum. Instado pela tradição a comportar-se como um animal de companhia, tal não lhe valerá nada quando for dispensado pelo patrão com alegações fictas de rebeldia. Ao contrário, a posição de Keating é a posição do intelectual. Poderá disparar umas setas epistolares à distância como fez Verney, o autor de Verdadeiro Método de Estudar (1746), conjunto de epístolas dirigidas à Universidade de Coimbra. Ou escrever textos como este.
* Doutorando na Vrije Universiteit Brussel.
[1] Bernard Williams, Ethics and the Limits of Philosophy, p. 231. Recorri à tradução portuguesa de Artur Morão e David G. Santos, Sistema Solar, 2017.
[2] Clifford Geertz, Common Sense as a Cultural System, p. 26
[3] Simon Blackburn, Rule-Following and Moral Realism, p. 166.
[4] Juan Miró, Esta é a cor dos meus sonhos, p. 47.
[5] Luis Miguel Cintra, Luis Miguel Cintra: o Cinema, p. 211.
[6] Platão, Apologia de Sócrates, 31 c).
[7] John Finnis, Natural Law and Natural Rights, p. 181.
Bibliografia
Blackburn, Simon. Rule-Following and Moral Realism (Wittgenstein: How to follow a rule). Routledge, 1981.
Cintra, Luis Miguel. Luis Miguel Cintra: O Cinema (org. José Manuel Costa). Cinemateca Portuguesa, 2020.
Finnis, John. Natural Law and Natural Rights. Oxford, 2011.
Geertz, Clifford. Common Sense as a Cultural System (The Antioch Review, vol. 33, n.1). 1975.
Miró, Juan. Esta é a cor dos meus sonhos (trad. José Mário Silva). 90 graus ed., 2006.
Platão. Apologia de Sócrates (trad. Pinharanda Gomes). Guimarães Ed., 2019.
Williams, Bernard. Ethics and the Limits of Philosophy. Harvard, 1986.