Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Ruy Belo
O que a floresta está parindo
são frutos de acaso:
pássaros voando,
homens, tempestades,
altas as nuvens
sobre um mar de música,
baixo o arrepio
de ternura e lume.
Ruy Cinatti
os pássaros quando morrem
caem no céu
José Gomes Ferreira
Ossobó — História dum Pássaro de S. Tomé[1] é o breve conto que, em 1936, dá início à produção de Ruy Cinatti (1915-1986), e que a partir de então figurará como peça de abertura da sua obra poética.[2] Apesar de se tratar de um texto em prosa, o seu carácter descritivo e tendencialmente lírico evidencia uma estratégia compositiva onde prevalece um sentido de hibridização de formas textuais predefinidas que será determinante para o entendimento de alguns dos traços mais característicos da poesia do Autor. Mas não só: o destino de Ossobó é também o anúncio simbólico de uma poética fundada numa relação muito especial entre o texto e o mundo, cujos alicerces mais decisivos requerem uma leitura de base fenomenológica, que ao mesmo tempo respeite e revele a firme convicção de que o mundo é a visão do mundo. Será esta leitura que procurarei reconstituir aqui com brevidade, de modo a iluminar o sentido do sacrifício do Pássaro de Cinatti. A obra de Ruy Cinatti deriva de uma agudíssima consciência poética do valor da referencialidade que, em primeira instância, parece estar na origem do tom peremptório de versos como os de Lembranças para S. Tomé e Princípe — 1972: «Na floresta, os frutos. / No poema, os versos» (Cinatti 2016: 1206). Esta consciência traduz-se sobretudo no acto de dedilhar palavras como quem dedilha flores, razão pela qual se torna impertinente o uso dos singulares «a flor», «o fruto» ou «o pássaro» a propósito da sua poesia, uma vez que ela não se coaduna de modo algum com o efeito abstraccionante que o singular do hiperónimo necessariamente provoca, e que iria contra a poética que o escritor tão claramente explicitou em versos de Memória Descritiva: «Que as minhas palavras sejam acertadas. / Que eu comunique o que quero dizer. / Que não fabrique imagens, mas palavras / Exactas» (739). Para Cinatti, quem fala em «flor» ou em «pássaro» fá-lo por incapacidade ou falta de vontade de nomear flores e pássaros específicos, conforme demonstra o registo pedagógico da microconversa em verso no livro Sete Septetos:
Tu apontavas: “olha uma flor
na neve!”
Era uma liliácea, vulgo
Pés-de-burro.
Corola com pétalas dispostas em tridente azul. (339)
Desde o seu primeiro livro, portanto, Cinatti eliminou do léxico qualquer tentação hiperonímica, por considerar o hiperónimo demasiado generalizante e desprovido de exactidão, a fim de concentrar no rigor lexical toda a força verbal do pendor descritivo dos versos. Por esta via, e na linha da mais antiga tradição da evidência literária, foi associando os dois actos de denominação e de designação que configuram os estádios originais do descritivo (cf. Hamon 1991: 5-6, 11-12). Na sua obra, portanto, cada coisa tem nome próprio, um recorte nítido no seio da matéria linguística, uma carga sémica densíssima, em virtude de uma prática de ostinato rigore e de precisão designativa que foi devidamente destacada por João Gaspar Simões em 1971, ao comparar a poesia de Cinatti com a dos brasileiros Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. Segundo o crítico, só nestes se conhecia então «um tal dar às coisas os seus nomes, às coisas em si, não os nomes do que elas representam na instrumentação da poesia» (Simões, 367). Claro que a formação de Cinatti lhe forneceu um vocabulário especializado precioso, graças às suas actividades profissionais enquanto engenheiro agrónomo, fitogeografista, meteorologista e antropólogo, o que levou a que o seu próprio nome tenha sido atribuído, em 1948, a duas espécies botânicas, a partir de então denominadas «Eucalyptus Cinattiensis» e «Justitia Cinattii».
Ora, é justamente em virtude desta pulsão de objectividade científica que na ilha de Ossobó — o rouxinol que abre a obra de Cinatti em 1936 —, não há plantas nem árvores, mas acácias, fetos arbóreos, begónias, amoreiras, ocás, ipés, paus‑lírio, obós, figueiras, jacas e assim sucessivamente, tal como não há aves ou pássaros, mas bicos-de-lacre, celestes, taclés, periquitos, andorinhas e garças. Trata-se de um processo poético de oficina no plano lexical que, encetado no conto de abertura da obra, não mais será abandonado pelo poeta, atingindo alguns momentos-síntese, como o da sequência de composições sobre flores em 56 Poemas, a que pertence um «Narciso» explicitamente roubado a Wordsworth, e onde podem encontrar-se ainda dálias, estevas, goivos e glicínias (OP, 1239-1245). Como já assinalei num outro contexto (Frias 2014), esta volúpia taxonómica de eventual leitura pré-romântica integra-se surpreendentemente num complexo tecido bucólico e pastoril (ou pastoral), gerado por uma inextricável intersecção que reúne Teócrito e Virgílio, Bernardim Ribeiro e Rodrigues Lobo, Ambrose Philips, Keats e Shelley, todos mediados, claro está, pela fenomenologia poética de Alberto Caeiro. Este tecido traça uma espécie de locus amoenus que atravessa toda a obra sob a forma de idílio, num tipo de inscrição em que o idílio é rigorosamente esse «pequeno quadro para ler» que o reenvia à sua mais originária etimologia, já que a palavra deriva da raiz eidos, de que é um diminutivo: eidyllion, pequeno quadro.
Num fragmento inédito de cariz autobiográfico, divulgado por Peter Stilwell e datado de Janeiro de 1949, Ruy Cinatti exprime o desejo de «viver vegetalmente, sim, com as árvores e as pedras», e de «sentir como os animais: não pensar, sobretudo» (apud Stilwell 1995, 192). Numa leitura imediata, este gesto manifesta, ao nível psicoepistemológico, uma atitude marcadamente sensualista, com correspondência notória, ao nível da poética, numa atitude sensacionista, própria da linhagem inaugurada por Mário de Sá‑Carneiro e Alberto Caeiro, na senda do Epicuro do Jardim. Numa leitura talvez menos imediata, é possível ver neste gesto a base fundadora da simplicidade que constitui o alicerce mais consolidado da poética de Cinatti:
Para se ser poeta é preciso ser-se simples
Como eram simples os elementos naturais
Antes de Deus fazer misturas. (apud Stilwell 1995, 56)
Quer dizer, antes de tudo o mais, que Cinatti aspira a uma plenitude atingível graças ao contacto imediato do corpo com as coisas — ou da carne com o mundo, como prefere Merleau‑Ponty —, experienciada na relação sensorial pura, aquém de todo o pensamento. Num plano elementar, o primeiro gesto da obra de Cinatti não faz deflagrar senão a demanda do «ser que é anterior ao pensamento», um ser que funda a sua presença no mundo num contacto originário, sem mediações de qualquer espécie que não sejam as da presença sensível do mundo em si que o corpo lhe suscita. «Quem tem sentidos que sinta», proclama este Argonauta das sensações verdadeiras em Uma Sequência Timorense, de 1970 (OP: 615).
A primeira camada da inscrição do mundo nos versos de Cinatti é uma inscrição que, paradoxalmente, dispensaria a própria mediação das palavras, pois a busca do poeta é, antes de mais, não a da colusão directa do referente com o significante que, na expressão de Barthes, é berço da ilusão referencial e do efeito de real característicos da Modernidade literária (cf. Barthes 1987, 136), mas a da colusão radical do referente com o corpo, através de uma «pele entreaberta» (Cinatti 1996, 29), suprimida a própria linguagem. Num fragmento inédito, também divulgado por Stilwell, onde relata as suas primeiras experiências poéticas, Cinatti confidencia que «poesia» começou por significar, para si, «os solitários passeios a cavalo por pinhais e montados, a distância dos montes, o céu com algumas nuvens, o mar», para concluir: «poesia sem palavras, como a música» (idem: 419). Ao denunciar a emergência de um genuíno modo lírico no seu discurso, o que passa a estar em causa, por conseguinte, é a intenção de ignorar o signo para fazer da notação o puro encontro de um objecto com a sua sensação no corpo‑sujeito, incrustando as coisas na carne ou no sangue, numa vivência orgânica pura. Nas palavras de Merleau‑Ponty, trata‑se mesmo da experiência do sensível enquanto «possibilidade de ser evidente em silêncio» (1988, 267), já que, a este nível, é o próprio corpo, e não a língua, o verdadeiro vinculum do eu e das coisas, o que se torna ainda mais claro quando Cinatti destaca nos pintores a qualidade de «tratarem as coisas sem palavras», realçando que «um artista desenha com toda a gravidade as grandes curvas de um porco porque não pensa na palavra porco» (apud Stilwell 1995, 92; cf. Merleau‑Ponty 1966, 256).
Aceitar esta fisiologia do sensível como um dos formantes basilares da aparição do mundo na poesia de Ruy Cinatti é, sem dúvida, o primeiro passo indispensável para rebater juízos críticos apressados — como o que João Gaspar Simões emitiu em 1976, a partir de uma visão dualista, em que defendia que o poeta era «mais um poeta do sujeito que do objecto» (357) — e compreender em toda a sua complexidade essa dialéctica «fusão luminosa de sujeito e objecto, do poeta com o mundo e os outros» que, com inteira pertinência, Peter Stilwell assinalou a propósito do conjunto da obra cinattiana (2000, 33). Ruy Cinatti optou sempre por um husserliano «retorno às próprias coisas», o que faz com que, ao contrário do que entendeu João Gaspar Simões, a experiência poética se caracterize, não por uma concentração dualista no sujeito por elisão do objecto, mas por um conhecimento que é, com toda a sua pertinência etimológica, co‑nascimento do sujeito e do objecto, quer dizer, da Sensação e do Sensível. Se, na lição de Merleau‑Ponty, é o sensível que me inicia no mundo, na do primeiro Edmund Husserl, a sensação testemunha que «nem todos os vividos são intencionais», o que significa, em termos muito simples, que uma poesia orientada para a sensação pura é uma poesia que busca a mais absoluta fidelidade ao objecto, como sustenta ainda Husserl, quando defende que a sensação é, por si só, «selo da realidade» (Merleau-Ponty 1988, 271; Husserl 1961, 171; Husserl 2002, 112). Em todo o caso, trata‑se da experiência mais radical e originária, do contacto mais primordial e despojado com o mundo, da colusão com o Ser «bruto» ou «selvagem», a um ponto tal que, como já previra Fernando Pessoa ao falar das «sensações mínimas», na leitura deleuziana de José Gil, a sensação é, de certa forma, «pré‑humana» (1999, 10).
Numa carta redigida em Dezembro de 1936 a Amy Christie, Cinatti já confidenciava à destinatária que, na ilha do Príncipe, «estranhas luzes e sombras» dançavam perante si, «misturando‑se com borboletas e hibiscos vermelhos», e tudo «tão cheio de murmúrios, mas de murmúrios e cores silentes», que só poderia «ser descrito em música», em alguma coisa «parecida com os murmúrios da Floresta de Wagner ou os nocturnos e imagens de Debussy» (apud Stilwell 1995, 393). Mais tarde, diria ainda, a propósito da paisagem de Díli, que esta propiciava «uma visão rítmica, quase musical» (Cinatti 1987, 13), reiterando assim num registo imagista a circunscrição da sinestesia à audição colorida,[3] o que de alguma forma vem explicar toda a configuração sensorial e intersensorial da obra de Cinatti: o objecto aparece, antes de tudo o mais, como sensível visível — «Somente a cor / — nela persiste / e a figura» —, mas o sujeito só pode dar a ver essa visibilidade primordial através do sensível audível, isto é, da matéria verbal dotada de ritmo — «Só minha a música / com que a liberto».
Ao isolar a cor e a figura do objecto, Cinatti limita‑se a reconstituir o que, na lição da Gestaltheorie, é o dado sensível mais simples que se pode obter, isto é, uma figura sobre um fundo. Com o mesmo gesto, demonstra ainda que o dado sensível mais simples que se pode obter é um dado visível, ou seja, que o sensível mais radical é para si, sem qualquer sombra de dúvida, o sensível visível: «Quem tiver olhos que veja», proclama em Memória Descritiva, reformulando o anterior «Quem tem sentidos que sinta». Por último, com a visão da figura, o poeta reenvia a sensação para a esfera da percepção, não só porque passa a exibir a unidade dual da hylè sensual e da morphe intencional — que, já no entender de Husserl, fundava a correlação inextricável da sensação e da percepção (Husserl 1950, 289) —, mas também, e sobretudo, porque, como quis Merleau‑Ponty, vem demonstrar que todo o sensível se integra num horizonte perceptivo, isto é, que só percepcionamos uma figura sobre um fundo na medida em que, qualquer que seja a coisa percepcionada, ela está sempre no meio de outra coisa, porquanto se integra num campo perceptivo, o que se torna inequívoco se pensarmos que é o sujeito que visa a figura, uma vez que, se o sujeito visasse o fundo este fundo seria a própria figura, e a figura tornar‑se‑ia parte do fundo.
É na percepção visual que a experiência doadora originária culmina — «Eu sou um visual», chegou a declarar Cinatti (apud Stilwell 1995, 240) —, quer dizer: toda a experiência é, no sentido fenomenológico, mas também no sentido etimológico mais original, evidência, isto é, aparição da coisa mesma em carne e osso, mediante a fusão inextricável do sujeito que vê e do objecto que é visto. A circunscrição da percepção ao domínio da percepção visual em nada surpreende: a partir desta sinédoque bem caeiriana — «Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura...» (Caeiro 2001, 34) —, é o próprio corpo que se converte em corpo visível‑vidente, ou seja, em olhar, organizando um sujeito que vive o mundo na justa medida em que o vê, perfeitamente ciente de que «o mundo é a visão do mundo e não poderia ser outra coisa» (Merleau-Ponty 1988, 106, 326).
O que se torna mais surpreendente, em toda a poética do visível que, na obra de Cinatti, vem fundar‑se sobre esta fenomenologia da visão, é nada mais do que a fidelidade integral a tal fenomenologia, quer dizer, aos limites que a visão enquanto acto perceptivo necessariamente impõe ao sujeito. Graças a este regime de alta fidelidade, o poeta consegue instaurar uma lógica poética regida por uma espécie de pacto silencioso, a partir do qual se entende que, com todo o rigor, o discurso nunca dará a ver como existente o que está para além do visível. Desde o primeiro livro, esta ética da visão — muito próxima da que, em narratologia, define a especificidade própria das focalizações interna e externa, entendidas como «restrições de campo» — manifesta‑se com recorrência, em inúmeras passagens que demonstram com nitidez que o visível é composto de superfícies em cascata e que o corpo vidente só tem acesso a uma dessas superfícies de cada vez. Mais ainda, a relação do sujeito que vê com o objecto que é visto só pode efectuar‑se em presença, porque aqui reside a natureza específica da relação perceptiva enquanto experiência originária, o que à partida assegura, por exigência intrínseca, o laço existencial entre o poeta e o mundo, o acasalamento do seu corpo com as coisas. É este carácter originário da percepção que funda a diferença entre percepção, presentificação e intropatia, mas, sobretudo, é por meio dele que se enfatiza a coexistência efectiva e indispensável do sujeito e do objecto, reforçando o efeito indicial que a poesia de Ruy Cinatti visa produzir (cf. Husserl 1950, 15, 139 e 378; 1961, 249; e 1963, 74).
A grande problemática situa‑se à superfície, mas não tem nada de superficial. O acesso ao mundo do sujeito que vê é de natureza bidimensional, e não tridimensional, o que suscita duas implicações imediatas: por um lado, o sujeito tridimensional só vê superfícies bidimensionais e, por outro, o sujeito só alcança uma face dos objectos de cada vez — a face que lhe é dada no momento instantâneo da percepção —, independentemente de o seu corpo, pivot do mundo, lhe permitir contornar esses mesmos objectos (Merleau-Ponty 1945, 97).[4] Isto significa que a percepção das coisas se vai processando por esboços progressivos (Abschattungen) que acumulam dados sensíveis, de modo a compor a síntese final que nos dá o objecto. A experiência visual de uma coisa constitui‑se, assim, de uma série de visões de múltiplas faces, encadeando‑se sucessiva e fugitivamente umas nas outras, e depende, em cada etapa, da perspectiva, quer dizer, do ponto de vista em que o sujeito se situa, e da janelidade específica — para utilizarmos o expressivo termo de Eugen Fink (72)[5] — que tal ponto de vista instaura, a partir da qual o sujeito tem acesso a um campo de visão particular.[6]
A vivência integral do objecto dependerá sempre, por conseguinte, da concordância entre os vários esboços, ou seja, da conformidade por correlação antecipante, confirmante ou infirmante, entre os vários momentos da percepção. Neste processo, a percepção apresenta‑se como uma relação com o objecto determinada pela incerteza, autêntica obra aberta de percepções ad infinitum, que faz assimilar o ser e o aparecer, uma vez que, como veio a realçar Sartre, o ser do fenómeno é realmente o seu próprio aparecer. O acto perceptivo estabelece assim um contacto com o objecto que no agora é sempre incompleto e imperfeito, o que não significa que cada um dos momentos da percepção não tenha a sua realidade efectiva, independentemente de o momento seguinte vir a ser a confirmação ou a infirmação do anterior, pois cada etapa tem a sua evidência própria e real, como enfatizou Merleau‑Ponty:
Eu pensava ver na areia um bocado de madeira polida pelo mar, e era uma rocha argilosa. O estilhaçamento e a destruição da primeira aparência não me autorizam a definir a partir daqui o “real” como simples provável, já que eles não são mais do que um outro nome da nova aparição, que, portanto, deve figurar na nossa análise da des‑ilusão. A des‑ilusão só é a perda de uma evidência porque ela é a aquisição de uma outra evidência. […] Cada percepção envolve a possibilidade da sua substituição por uma outra e, portanto, uma espécie de desmentido das coisas. (1988, 63, 65)
Poder enganar‑se constitui, assim, o sentido essencial de toda a evidência que, em virtude desta abertura essencial, se temporaliza na duração de um campo perceptivo constituído numa continuidade de retenções e protensões (no sentido husserliano dos dois conceitos entendidos como «depresentações», respectivamente: a retenção enquanto recordação primária que participa ainda da intuição imediata e nesse sentido se distingue da memória/recordação, e a protensão enquanto sua contrapartida exacta em termos de antecipação). E é a síntese desta continuidade intencional com o agora puro que funda o Presente Vivo do sujeito, quer dizer: o agora puro é sempre acompanhado de uma recordação imediata, a retenção, e de uma antecipação imediata, a protensão, sendo o conjunto dos três momentos que constitui o presente vivo. Ora, é nesta mesma dobra que reside o ponto fulcral de uma poética que pretende fundar‑se sobre uma genuína fenomenologia da percepção visual. Por uma razão muito simples: ao apresentar‑se como sujeito da percepção assim entendida, o poeta assume obrigatoriamente a sua presença no mundo que apresenta, gerando uma legitimação imanente do discurso, que o constitui como discurso que dá as coisas «em carne e osso», criando, desta forma, mais do que um efeito de real, um efeito de verdade, assente num pressuposto semiótico indicial, num index veri. E o que passa a estar em causa é, justamente, um acto de apresentação, e não de representação.
É por isso que Cinatti recupera a toda a hora o estado nascente do mundo e de si próprio, apresentando a experiência visual como a experiência inaugural. Ou seja, amanhecendo, a vida começa, como num dos versos de abertura de Memória Descritiva: «abre‑se o corpo: aurora!» (idem: 639). Ou como na narrativa fundadora, Ossobó:
É dia finalmente; o frio nevoeiro vai desaparecendo nos cerrados escuros de trepadeiras onde vivem esmagadas as árvores que, em tempos, miravam com benevolência as insignificantes cordas de água, subindo hesitantes pelos seus troncos.
Tudo reanima do torpor da noite. As sensitivas intumescem, abrem devagar as suas folhas, e as flores do pau‑lírio lançam baforadas de perfume.
Sol!…
De manhã o ar é fresco e a vida penetra na floresta em grande movimento. (idem: 34)
Eis o sujeito verdadeiramente fenomenológico, o eu puro que se posiciona no ponto de um não‑saber radical, mediante a suspensão da sua própria história, como quis Caeiro ao decretar programaticamente: «Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. / É esta a ciência de ver, que não é nenhuma» (169). Só a partir deste posicionamento pode o sujeito realmente dotado do «olhar puro», invocado em «Memória hodierna», ver claramente visto, uma vez que, como insistiu Eugen Fink, «pôr o mundo entre parêntesis» ou «fora de jogo» na epoché significa recuperar a visão, pois «a atitude natural é uma espécie de cegueira». E só assim a poesia pode ser composta, de facto, da «fecunda energia / de palavras‑madrugada», conforme proclama o poeta em Conversa de Rotina (OP: 753). Nesta composição, a derradeira imagem dos poetas é que, tal como os pássaros, «Acordam então cedo, / com o sol nos olhos. // Celebram intensa / madrugada», em versos que vêm recuperar a associação da luz solar, do despertar das aves e da criação poética, já assumida em Sete Septetos: «Inundámo‑nos de sol / cintilante e poesia» (idem: 326). Não admira, pois, que, ao recuperar o incipit de uma das mais famosas composições líricas de Camões — «Aquela triste e leda madrugada» —, Cinatti tenha elidido o termo disfórico do verso camoniano: «Só não percebo o que em mim pressinto / de amor por tão leda madrugada» (idem: 1119).
O refrão do poema «As crianças», de Crónica Cabo‑Verdiana, repetindo até à exaustão o verso «Que vêem meus olhos senão o que vêem?» (OP: 382), poderia servir como ponto de partida para a reconstituição detalhada da poética da visão fenomenológica que Ruy Cinatti foi elaborando ao longo de toda a sua obra. Além de só ver o que está iluminado, o poeta vê apenas o que se situa dentro do seu campo de visão, com todas as condicionantes que tal circunscrição lhe impõe. Desde logo, o campo de visão é constituído por um segmento de espaço para além do qual não é possível ver: «vales e colinas que adivinham montes / para além dos olhos, / a norte» (idem: 997). É esse segmento que distingue o que está dentro de campo do que está fora de campo: «Caminhava eu rua adiante, / iluminou‑se o caminho: ruínas, / andaimes, montes de lixo. A um canto, / um braço adormecido» (idem: 518). Note‑se como a sinédoque funciona como uma hipálage que dá a ver o que está fora do campo de visão — já que «adormecido» desliza no espaço, como é próprio da hipálage —, sem deixar de acentuar a fronteira que separa o que está fora do que está enquadrado. Em Archeologia ad Usum Animae, a imagem repete‑se, num contexto terminológico explícito: «Só nessa altura reparo na imagem / apercebida por causa dum braço / aprisionado / na perspectiva» (2000, 114). Por outro lado, os objectos coexistem com o sujeito, mantendo com ele diferentes relações de distância, graças às quais nem todos os contornos são precisos, e, sobretudo, nem todas as evidências sucessivas se confirmam umas às outras, o que faz com que a luz seja, com frequência, sinónimo de ilusão.
É esta a lição que estreia a obra de Ruy Cinatti em 1936, na história de Ossobó, o pássaro das ilhas de S. Tomé e Príncipe que Bernardo Marques desenhou. Trata-se de um brevíssimo conto que descreve o amanhecer na floresta a partir do trajecto de um pássaro-protagonista apresentado na primeira linha, Ossobó, cujos percursos esvoaçantes se vão esboçando gradualmente à medida que o dia avança. Por alguns momentos e durante algumas linhas, a paisagem que Ossobó atravessa e habita é mesmo idílica: «De manhã o ar é fresco e a vida penetra na floresta em grande movimento. Ossobó entra na ribeira e imita os seus companheiros. Agacha‑se, faz com que a corrente se desvie ante o obstáculo do seu corpo e mergulha repetidas vezes nas águas. Salpica‑se, asperge‑se e todo estremece de prazer ao sentir a penugem eriçada e as gotas a escorrerem do seu peito branco» (OP: 34). Há assim uma atmosfera generalizada de «renascence of wonder» que em tudo se harmoniza com o que virá a ser a visão da paisagem na obra poética de Cinatti, sendo, no entanto, rapidamente interrompida pela simples introdução de um «mas» na frase imediatamente a seguir à passagem que acabei de transcrever: «Mas os bicos-de-lacre pararam de brincar e olham inquietos qualquer coisa que se move e que em filas tortuosas vem a subir pelas pedras roliças das margens». A suspensão dos bicos-de-lacre anuncia a chegada das «cobras traiçoeiras», e a melodia que Ossobó entoa «parece alegre» mas está afinal povoada de «recordações melancólicas» (35). São estes os índices naturais de uma alteração notória na visão da floresta, cuja descrição vai abandonando os topoi quase bucólicos para começar a enfatizar tópicos de força e agressão, de agonia e morte: «vales profundos», «pedregulhos a rolar torrentes abaixo», «cordas serpeando nervosamente pelo chão», líquenes que pendem «como coisas mortas», «rochas negras», lugares onde a luta não pára. A aproximação do fim do dia é também, visivelmente, a aproximação do fim da vida — neste caso, da vida de Ossobó:
Despreocupado, perscruta por entre as folhas e depois saltita atraído pelo vermelho dum insecto que zumbe mais em baixo.
(…)
Não ouvia ainda o cantar dos bicos-de-lacre? Seria ilusão tudo aquilo?
(…)
Descendo das alturas passam cinco garças brancas, mas Ossobó já nem as vê. As suas asas roçam o chão sem força alguma e, preso ao seu destino, Ossobó aguarda o fim.
O silêncio é enorme quando um silvo cortante talha o ar. Por detrás do tronco surge a cobra negra com as estrias vermelhas na cabeça e os dois dentes curvos saindo da bocarra.
Rastejando, o seu corpo manchado de amarelo, descreve longos ss em direcção a Ossobó, mas este só sente dois pontos brilhantes que cada vez mais se aproximam e lhe entram pelos olhos dentro. (OP: 37-38; itálicos meus)
Ossobó morre de desilusão, dessa des‑ilusão sensível que acontece simplesmente graças à perda de uma evidência pela aparição de uma nova evidência, e da falta de coincidência entre ambas, o que vem demonstrar que a verdade se define no e pelo devir, em suma, que o falso é rigorosamente um momento do verdadeiro. O senso comum ensina‑nos que ver é poder fixar, e este é o primeiro passo que separa a sensação da percepção, comprovando que ver é um acto voluntário (cf. Berger 1980, 12). Fixar é, portanto, o primeiro acto de visar pela visão, e é este acto de singularização no seio do visível que realiza a «análise» de que fala Cinatti a propósito do seu método de criação poética, pois, como sublinha Merleau‑Ponty, «do lado do sujeito, [fixar] é substituir a visão global, na qual o nosso olhar se presta a todo o espectáculo e se deixa invadir por ele, por uma observação, quer dizer, uma visão local que ele governa à sua vontade» (1945, 261). Concomitantemente, do lado do objecto, fixar é «separar a região fixada do resto do campo, é interromper a vida total do espectáculo», é destacar uma figura de um fundo através do olhar, é, portanto, escolher aquilo sobre que o olhar incide, alterando o visto pela visão. Na realidade, fixar implica necessariamente trazer o objecto da margem do campo de visão para o seu centro, acordá‑lo e pô‑lo em movimento, levando a que, em última instância, ao fixar um objecto, o sujeito acrescente atenção à sua intenção.[7] No caso de Ruy Cinatti, fixar é ainda, rigorosamente, focar — ajustar a retina e a lente ao objecto visado, que assim passa a identificar‑se com o objecto verbalizado, uma vez que ambos são dados à luz no mesmo parto. Trata‑se da evidência verbalmente edificada, em que a plenitude se manifesta na coincidência total do objecto dado e do objecto dito, ou seja, reformulando o lema de Merleau‑Ponty, trata‑se do visível como a possibilidade de ser evidente em palavras. Pelos olhos morre o pássaro. Ou melhor, morre pelo órgão, pela sensação e pela percepção, isto é, pelos olhos, pelo olhar e pela visão. Ossobó é o sacrifício de Ifigénia de Ruy Cinatti. A falta de adequação entre a primeira evidência, o «vermelho de um insecto», e a seguinte, «a cobra negra com as estrias vermelhas», custa a vida ao pássaro de S. Tomé e Príncipe, que o poeta não hesita em matar à entrada da sua obra, anunciando assim a sua inteira fidelidade ao visível como aquilo que aparece. E o que aparece é a cor vermelha fundando o segmento de coincidência onde se intersectam as duas evidências discordantes, como de resto se anuncia logo no início do conto, já que também a identidade do pássaro se funda numa espécie de remixagem constituinte («confundindo o verde das suas penas com o verde das folhagens»; OP: 33).
Ossobó morre vítima da visão, só porque, como ensinou Merleau‑Ponty na senda de Husserl, ver é sempre ver qualquer coisa, ou seja, «ver vermelho é ver vermelho existente em acto», pois não há cor ou forma sem matéria, como já demonstrara a borboleta de Caeiro: Ossobó morre vítima da visão porque entre uma e a outra percepção se instala a falha da síntese da identidade material que qualquer acto perceptivo necessariamente solicita. Na passagem da sensação ao percepto, não se pode ignorar que a visão é, acima de tudo, visão intencional, o que vem precisar ainda mais o real significado da morte de Ossobó: a falta de coincidência entre as duas evidências resulta, na realidade, de uma falta de coincidência entre o visado e o dado, pois não há preenchimento de um pelo outro. Ao contrário do que acontece na memória consciente do poeta, que anos mais tarde evocará o seu primeiro pássaro recordando dele apenas «um azul de passarinho, / Ossobó, em S. Tomé» (OP: 1186; sublinhado meu), promovendo assim a recuperação da síntese da identidade material do seu pássaro, bem como a harmonização entre os actos perceptivos e presentificativos no plano poético.
[1] Ossobó — História dum Pássaro de S. Tomé, separata de O Mundo Português — Revista de Cultura e Propaganda, Arte e Literatura Coloniais, n.º 30, Lisboa, Agência Geral das Colónias, Secretariado da Propaganda Nacional, Junho de 1936 (desenho da capa de Bernardo Marques); 2.ª ed., Ossobó, Braga, Editora Pax (fora do mercado), 1967. De acordo com a indicação de Luís Manuel Gaspar, «o subtítulo História dum Pássaro de S. Tomé figura na capa e frontispício da separata editada em 1936, não constando, quer da publicação na revista, quer da edição em livro. Nas listas da “Obra Poética do Autor”, incluídas por Cinatti nos seus livros a partir de 1967, o subtítulo passa a ser História de Um Pássaro das Ilhas de S. Tomé e Príncipe» (Obra Poética I, org. Luís Manuel Gaspar, pref. Joana Matos Frias, Lisboa, Assírio & Alvim, 2016, p. 1366).
[2] Salvo indicação em contrário, todas as citações da Obra Poética de Ruy Cinatti serão retiradas do volume Obra Poética I, a partir daqui designado com as iniciais OP.
[3] Note-se, a este propósito, que a sinestesia, em Cinatti, não sofre da falta de precisão de que o Ezra Pound imagista chegou a acusar este tropo para se afastar da estética simbolista, pois resulta de uma espécie de hipálage que torna ainda mais detalhada e precisa a apresentação, como se verifica nestes versos de Nós não Somos deste Mundo: «Pensamos que o navio verde-líquido / Sulcava o verde mar» (OP: 100; cf. Pound, 130‑134: «Não confundam a percepção de um sentido ao tentar defini‑la nos termos de outro. Isto é normalmente apenas o resultado de se ser muito preguiçoso para encontrar a palavra exacta»).
[4] Na síntese de Husserl, portanto, «o lado verdadeiramente “visto” de um objecto, a sua “face” virada para nós, apresenta sempre e necessariamente a sua “outra face” — escondida — e faz prever a sua estrutura, mais ou menos determinada» (1953, 92).
[5] Fink, discípulo de Husserl, propõe o termo que aqui se traduz por «janelidade» — no original, Fensterhaftigkeit —, para descrever, não propriamente o acto perceptivo, mas, já a um outro nível, a natureza específica da imagem. No entender de Fink, «a imagem inteira não é […] mais do que uma pequena “janela” dando sobre o mundo de imagem», o que significa que «o mundo de imagem é tão pouco sobre a superfície como a paisagem vista, no exterior, é na janela real». Apesar de utilizar o termo num registo metafórico, Fink consegue assim enfatizar a natureza necessariamente «enquadrada», isto é, limitada, da percepção visual, totalmente condicionada pelo centro de perspectiva constituído pelo olhar do sujeito (cf. Fink 1974, 92).
[6] Cf. ainda Merleau‑Ponty: «Dizer que tenho um campo visual é dizer que, por posição, eu tenho acesso e abertura a um sistema de seres, os seres visíveis, que eles estão à disposição do meu olhar […] — e é dizer, ao mesmo tempo, que ela é sempre limitada, que há sempre à volta da minha visão actual um horizonte de coisas não vistas, ou mesmo não visíveis» (1945, 250‑251).
[7] Como salienta Husserl, «o objecto intencional não é sempre objecto de atenção, objecto notado», mas intencionalidade e atenção implicam‑se mutuamente, a partir do momento em que o objecto é objecto fixado (1961, 181).