Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Ruy Belo

 

O que a floresta está parindo
são frutos de acaso:
pássaros voando,
homens, tempestades,
altas as nuvens
sobre um mar de música,
baixo o arrepio
de ternura e lume.

Ruy Cinatti

 

os pássaros quando morrem
caem no céu

José Gomes Ferreira

 

Ossobó — História dum Pássaro de S. Tomé[1] é o breve conto que, em 1936, dá início à produção de Ruy Cinatti (1915-1986), e que a partir de então figurará como peça de abertura da sua obra poética.[2] Apesar de se tratar de um texto em prosa, o seu carácter descritivo e tendencialmente lírico evidencia uma estratégia compo­sitiva onde prevalece um sentido de hibridização de formas textuais predefinidas que será deter­minante para o entendimento de alguns dos traços mais característicos da poesia do Autor. Mas não só: o destino de Ossobó é também o anúncio simbólico de uma poética fundada numa relação muito especial entre o texto e o mundo, cujos alicerces mais decisivos requerem uma leitura de base fenomenológica, que ao mesmo tempo respeite e revele a firme convicção de que o mundo é a visão do mundo. Será esta leitura que procurarei reconstituir aqui com brevidade, de modo a iluminar o sentido do sacrifício do Pássaro de Cinatti. A obra de Ruy Cinatti deriva de uma agudíssima consciência poética do valor da re­fe­rencia­lidade que, em primeira instância, parece estar na origem do tom peremp­tório de versos como os de Lembranças para S. Tomé e Princípe — 1972: «Na floresta, os frutos. / No poema, os versos» (Cinatti 2016: 1206). Esta consciência traduz-se sobretudo no acto de dedilhar palavras como quem dedilha flores, razão pela qual se torna impertinente o uso dos singulares «a flor», «o fruto» ou «o pássaro» a propósito da sua poesia, uma vez que ela não se coaduna de modo algum com o efeito abstrac­cionante que o singular do hiperónimo necessariamente provoca, e que iria contra a poética que o escritor tão claramente explicitou em versos de Memória Descritiva: «Que as minhas palavras sejam acertadas. / Que eu comunique o que quero dizer. / Que não fabrique imagens, mas palavras / Exactas» (739). Para Cinatti, quem fala em «flor» ou em «pássaro» fá-lo por incapacidade ou falta de vontade de nomear flo­res e pássaros específicos, conforme demonstra o registo pedagógico da microcon­ver­sa em verso no livro Sete Sep­tetos:
 

Tu apontavas: “olha uma flor
na neve!”
Era uma liliácea, vulgo
Pés-de-burro.
Corola com pétalas dispostas em tridente azul. (339)
 

Desde o seu primeiro livro, portanto, Cinatti eliminou do léxico qualquer tentação hipero­nímica, por considerar o hiperónimo dema­siado genera­lizante e des­pro­vido de exactidão, a fim de concentrar no rigor lexical toda a força verbal do pendor descritivo dos versos. Por esta via, e na linha da mais antiga tradição da evidência literária, foi associando os dois actos de denominação e de designação que configuram os estádios originais do descritivo (cf. Hamon 1991: 5-6, 11-12). Na sua obra, portanto, cada coisa tem no­me próprio, um recorte nítido no seio da matéria lin­guís­tica, uma carga sémica densís­sima, em virtude de uma prática de ostinato rigore e de precisão designa­tiva que foi devida­mente destacada por João Gas­par Simões em 1971, ao comparar a poesia de Cinatti com a dos brasi­leiros Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. Segundo o crítico, só nestes se conhecia então «um tal dar às coisas os seus nomes, às coisas em si, não os no­mes do que elas representam na instru­­mentação da poesia» (Simões, 367). Claro que a formação de Cinatti lhe forneceu um voca­bulário es­pe­­­ci­alizado precioso, graças às suas activi­dades pro­fissio­nais enquanto engenheiro agró­­nomo, fitogeo­­gra­fis­ta, meteo­ro­­lo­­gista e antro­pó­logo, o que levou a que o seu próprio nome tenha sido atribuído, em 1948, a duas espécies bo­­tânicas, a partir de então deno­mi­nadas «Eucalyptus Cinattiensis» e «Justitia Cinat­tii».

Ora, é justamente em virtude desta pulsão de objectividade científica que na ilha de Ossobó — o rouxinol que abre a obra de Cinatti em 1936 —, não há plantas nem árvores, mas acácias, fetos arbóreos, begónias, amoreiras, ocás, ipés, paus‑lírio, obós, figueiras, jacas e assim suces­siva­mente, tal como não há aves ou pássaros, mas bicos-de-lacre, celestes, taclés, periquitos, andorinhas e garças. Trata-se de um processo poético de oficina no plano lexical que, encetado no conto de abertura da obra, não mais será abandonado pelo poeta, atingindo alguns momentos-síntese, como o da sequência de composições sobre flores em 56 Poe­mas, a que per­tence um «Narciso» explicitamente roubado a Wordsworth, e onde po­­dem encontrar-se ainda dá­lias, estevas, goivos e glicínias (OP, 1239-1245). Como já assinalei num outro contexto (Frias 2014), esta volúpia taxonómica de eventual leitura pré-romântica integra-se surpreenden­­temente num complexo tecido bu­có­lico e pastoril (ou pastoral), gerado por uma inex­tri­cá­vel inter­sec­ção que reúne Teócrito e Vir­gílio, Bernardim Ribeiro e Ro­drigues Lobo, Ambrose Philips, Keats e Shelley, todos media­dos, claro está, pela feno­me­nologia poética de Al­ber­to Caeiro. Este tecido traça uma espécie de locus amoe­nus que atra­vessa toda a obra sob a forma de idílio, num tipo de inscrição em que o idílio é rigorosamente esse «pequeno quadro para ler» que o reenvia à sua mais originária eti­mo­logia, já que a palavra deri­va da raiz eidos, de que é um diminutivo: eidyllion, pequeno quadro.

Num frag­mento inédito de cariz autobiográfico, di­vul­gado por Peter Stilwell e datado de Janeiro de 1949, Ruy Cinatti exprime o desejo de «viver vegetal­mente, sim, com as árvores e as pedras», e de «sentir como os animais: não pensar, sobretudo» (apud Stilwell 1995, 192). Numa leitura imediata, este gesto manifesta, ao nível psicoepis­te­mológico, uma atitude marcada­mente sensualista, com correspon­dên­cia notória, ao nível da poética, numa atitude sensacionista, própria da linhagem inau­gurada por Mário de Sá‑Carneiro e Alberto Caeiro, na senda do Epicuro do Jardim. Numa leitura talvez menos imediata, é possível ver neste gesto a base fundadora da simplicidade que constitui o alicerce mais consolidado da poética de Cinatti:
 

Para se ser poeta é preciso ser-se simples
Como eram simples os elementos naturais
Antes de Deus fazer misturas. (apud Stilwell 1995, 56)
 

Quer dizer, antes de tudo o mais, que Cinatti aspira a uma plenitude atingível graças ao contacto imediato do cor­po com as coisas — ou da carne com o mundo, como prefere Mer­leau‑Ponty —, experienciada na relação sensorial pura, aquém de todo o pen­samento. Num plano elementar, o pri­mei­ro gesto da obra de Cinatti não faz deflagrar senão a demanda do «ser que é anterior ao pensamento», um ser que funda a sua presença no mundo num contacto originário, sem mediações de qual­quer espécie que não sejam as da presença sensível do mundo em si que o corpo lhe suscita. «Quem tem sentidos que sinta», proclama este Argo­nauta das sensações verdadeiras em Uma Sequência Timorense, de 1970 (OP: 615).

A primeira camada da inscrição do mundo nos versos de Cinatti é uma inscrição que, paradoxalmente, dispensaria a própria media­ção das pala­vras, pois a busca do poeta é, antes de mais, não a da colusão directa do referente com o significante que, na expressão de Barthes, é berço da ilusão refe­ren­cial e do efeito de real caracte­rísticos da Moder­nidade literária (cf. Barthes 1987, 136), mas a da colusão radical do re­­fe­rente com o corpo, através de uma «pele entreaberta» (Cinatti 1996, 29), supri­mida a própria lingua­gem. Num frag­mento inédito, também divul­gado por Stil­well, onde relata as suas pri­meiras ex­pe­­riências poéticas, Cinatti confi­dencia que «po­esia» come­çou por signi­ficar, para si, «os solitários passeios a cavalo por pinhais e mon­ta­dos, a distância dos mon­tes, o céu com algumas nuvens, o mar», para concluir: «poesia sem pala­vras, como a música» (idem: 419). Ao denun­ciar a emer­gência de um genuíno modo lírico no seu discurso, o que passa a estar em causa, por conse­guinte, é a intenção de ignorar o signo para fazer da notação o puro encontro de um objecto com a sua sensação no corpo‑sujeito, incrustando as coisas na carne ou no sangue, numa vivência orgânica pura. Nas palavras de Merleau­‑Ponty, trata‑se mesmo da experiência do sensível en­quan­to «pos­sibi­li­dade de ser evidente em silên­cio» (1988, 267), já que, a este nível, é o pró­prio corpo, e não a língua, o verdadeiro vinculum do eu e das coisas, o que se torna ainda mais claro quando Cinatti destaca nos pintores a qualidade de «tratarem as coisas sem pala­vras», real­çando que «um artista desenha com toda a gravidade as grandes curvas de um porco porque não pensa na palavra porco» (apud Stilwell 1995, 92; cf. Merleau‑Ponty 1966, 256).

Aceitar esta fisiologia do sensível como um dos formantes basilares da apa­ri­ção do mundo na poesia de Ruy Cinatti é, sem dúvida, o primeiro passo in­dis­­pen­sável para rebater juízos críticos apressados — como o que João Gaspar Simões emitiu em 1976, a partir de uma visão dualista, em que defendia que o poeta era «mais um poeta do sujeito que do objecto» (357) — e compreender em toda a sua com­­­plexidade essa dialéctica «fusão luminosa de sujeito e objecto, do poeta com o mundo e os outros» que, com inteira pertinência, Peter Stilwell assinalou a pro­­­pó­sito do conjunto da obra cinattiana (2000, 33). Ruy Cinatti optou sempre por um hus­ser­­­liano «retorno às próprias coisas», o que faz com que, ao contrário do que enten­deu João Gas­par Si­mões, a experiência poética se caracterize, não por uma concen­­tra­­­­­ção dua­lista no sujeito por elisão do objecto, mas por um conhecimento que é, com to­da a sua per­tinência etimológica, co‑nascimento do sujeito e do ob­jec­to, quer dizer, da Sen­sação e do Sensível. Se, na lição de Merleau‑Ponty, é o sensível que me inicia no mundo, na do pri­meiro Ed­mund Husserl, a sensação testemunha que «nem todos os vividos são in­­ten­­cio­­nais», o que significa, em termos muito simples, que uma poesia orientada pa­ra a sensa­ção pu­ra é uma poesia que busca a mais absoluta fidelidade ao ob­jec­to, como sus­­tenta ain­da Husserl, quando defende que a sensação é, por si só, «se­lo da rea­li­da­de» (Mer­leau-Ponty 1988, 271; Husserl 1961, 171; Husserl 2002, 112). Em todo o caso, tra­ta‑se da ex­periência mais radical e origi­ná­ria, do contacto mais primordial e des­po­jado com o mundo, da colusão com o Ser «bruto» ou «selva­gem», a um pon­to tal que, como já previra Fernando Pes­soa ao falar das «sensações mí­ni­­mas», na lei­tu­ra deleuziana de José Gil, a sen­sa­ção é, de certa forma, «pré­‑hu­ma­na» (1999, 10).

Numa carta redigida em Dezembro de 1936 a Amy Christie, Cinatti já con­fi­den­­ciava à destinatária que, na ilha do Príncipe, «estranhas luzes e som­bras» dançavam pe­ran­te si, «mis­tu­rando‑se com bor­boletas e hibiscos ver­­melhos», e tudo «tão cheio de mur­múrios, mas de mur­mú­rios e cores silentes», que só poderia «ser descrito em música», em al­gu­ma coisa «parecida com os mur­mú­rios da Floresta de Wag­ner ou os nocturnos e ima­gens de Debussy» (apud Stilwell 1995, 393). Mais tarde, diria ain­da, a propósito da paisagem de Díli, que esta propiciava «uma visão rít­mica, quase mu­si­cal» (Cinatti 1987, 13), reiterando assim num registo imagista a circuns­­crição da sines­tesia à audi­ção colorida,[3] o que de alguma forma vem explicar toda a configuração sen­sorial e intersensorial da obra de Cinatti: o objecto aparece, antes de tudo o mais, como sensível visível — «Somente a cor / — nela persiste / e a figura» —, mas o su­jeito só pode dar a ver essa visibilidade primor­dial através do sensível audível, isto é, da matéria verbal dotada de ritmo — «Só minha a música / com que a liber­to».

Ao isolar a cor e a figura do objecto, Cinatti limita‑se a reconstituir o que, na lição da Gestaltheorie, é o dado sensível mais simples que se pode obter, isto é, uma figura sobre um fundo. Com o mesmo gesto, demonstra ainda que o dado sensível mais sim­ples que se pode obter é um dado visível, ou seja, que o sen­sível mais radical é para si, sem qualquer sombra de dúvida, o sensível visí­vel: «Quem tiver olhos que veja», proclama em Memória Descritiva, reformu­lando o anterior «Quem tem sen­ti­dos que sinta». Por úl­timo, com a visão da figura, o poe­ta reenvia a sensação para a esfera da perce­p­­ção, não só porque passa a exibir a uni­da­de dual da hylè sensual e da morphe intencional — que, já no enten­der de Husserl, funda­va a correla­ção inex­tri­cável da sensação e da percepção (Husserl 1950, 289) —, mas também, e sobretudo, por­­que, como quis Merleau‑Ponty, vem demonstrar que todo o sensível se inte­gra num horizonte perceptivo, isto é, que só per­cep­cionamos uma figura sobre um fun­do na medida em que, qualquer que seja a coisa per­cep­cio­nada, ela está sem­pre no meio de outra coisa, porquanto se integra num campo per­ceptivo, o que se torna ine­quí­vo­co se pen­sarmos que é o sujeito que visa a figu­ra, uma vez que, se o su­jei­to visasse o fundo este fundo seria a própria figura, e a figura tornar‑se‑ia parte do fun­do.

É na percepção visual que a experiência doadora originária culmina — «Eu sou um visual», chegou a declarar Cinatti (apud Stilwell 1995, 240) —, quer dizer: toda a ex­pe­­riência é, no sentido fenome­no­ló­gico, mas também no sen­­tido etimológico mais original, evi­dên­cia, isto é, aparição da coisa mesma em carne e osso, me­di­ante a fusão inextri­cá­vel do sujeito que vê e do objecto que é visto. A circuns­cri­ção da percepção ao do­mínio da percepção visual em nada surpreende: a partir desta sinédoque bem caeiriana — «Por­­que eu sou do tamanho do que vejo / E não do ta­ma­nho da minha altura...» (Caeiro 2001, 34) —, é o próprio corpo que se con­ver­te em corpo visível‑vidente, ou seja, em olhar, or­­ga­­nizando um sujeito que vive o mundo na justa medida em que o vê, per­feita­men­te ciente de que «o mundo é a visão do mundo e não poderia ser outra coi­­sa» (Merleau-Ponty 1988, 106, 326).

O que se torna mais surpreendente, em toda a poética do visível que, na obra de Cinatti, vem fundar‑se sobre esta fenomenologia da visão, é nada mais do que a fide­lidade integral a tal fenomenologia, quer dizer, aos limites que a visão en­quan­­to acto perceptivo necessariamente impõe ao sujeito. Graças a este regime de alta fide­lidade, o poeta consegue instaurar uma lógica poética regida por uma es­pécie de pacto silencioso, a partir do qual se entende que, com todo o rigor, o dis­curso nunca dará a ver como existente o que está para além do visível. Desde o primeiro livro, esta ética da visão — muito próxima da que, em narrato­logia, de­fine a especificidade própria das focalizações interna e externa, entendidas como «restrições de cam­po» — manifes­ta‑­se com recorrência, em inúmeras passagens que demonstram com nitidez que o visível é composto de superfícies em cascata e que o corpo vidente só tem aces­­­so a uma dessas superfícies de cada vez. Mais ainda, a relação do sujeito que vê com o objecto que é visto só pode efectuar‑se em presença, porque aqui re­­si­de a natu­reza específica da relação perceptiva enquanto experiência origi­ná­ria, o que à par­tida assegura, por exigência intrínseca, o laço existencial entre o poe­ta e o mun­do, o acasa­lamento do seu corpo com as coisas. É este carácter origi­nário da percepção que funda a diferença entre percepção, presentificação e intro­patia, mas, sobretudo, é por meio dele que se enfatiza a coexistência efectiva e indis­pensável do sujeito e do objecto, reforçando o efeito indicial que a poesia de Ruy Cinatti visa pro­duzir (cf. Husserl 1950, 15, 139 e 378; 1961, 249; e 1963, 74).

A grande problemática situa‑se à superfície, mas não tem nada de superficial. O acesso ao mundo do sujeito que vê é de natureza bidimensional, e não tridi­men­sional, o que suscita duas im­plica­ções imediatas: por um lado, o sujeito tridi­men­sional só vê superfícies bi­di­­mensio­nais e, por outro, o sujeito só alcança uma face dos objectos de cada vez — a face que lhe é dada no mo­­­mento instantâneo da percepção —, indepen­den­­temente de o seu corpo, pivot do mun­­do, lhe per­mitir contornar esses mes­mos objectos (Merleau-Ponty 1945, 97).[4] Isto significa que a percepção das coisas se vai processando por esboços pro­gres­sivos (Ab­schat­tun­gen) que acumulam da­dos sensíveis, de modo a compor a síntese final que nos dá o objecto. A ex­pe­riên­cia visual de uma coisa constitui‑se, assim, de uma série de visões de múl­ti­plas faces, encadeando‑se sucessiva e fugitiva­mente umas nas outras, e depende, em cada etapa, da perspectiva, quer dizer, do pon­to de vista em que o sujeito se situa, e da janelidade específica — para utilizarmos o expressivo termo de Eugen Fink (72)[5] que tal ponto de vista instaura, a partir da qual o sujeito tem acesso a um cam­po de visão parti­cular.[6]

A vivência integral do objec­to dependerá sempre, por conseguinte, da con­cor­dância entre os vários esboços, ou seja, da confor­mi­dade por correlação antecipante, confir­­man­te ou infirmante, entre os vários momentos da per­cep­ção. Neste processo, a per­cepção apre­­senta‑se como uma relação com o objecto determinada pela incerteza, autêntica obra aberta de percepções ad infini­tum, que faz assimilar o ser e o aparecer, uma vez que, como veio a realçar Sartre, o ser do fenó­me­no é real­mente o seu próprio aparecer. O acto perceptivo estabelece assim um contacto com o objecto que no agora é sem­pre incompleto e im­per­feito, o que não significa que cada um dos mo­men­tos da per­cep­ção não tenha a sua rea­li­da­de efectiva, inde­pen­dente­­mente de o mo­­mento se­guinte vir a ser a con­fir­mação ou a infirmação do anterior, pois cada etapa tem a sua evidência própria e real, como enfatizou Merleau‑Ponty:
 

Eu pensava ver na areia um bocado de madeira polida pelo mar, e era uma rocha ar­gi­losa. O estilhaçamento e a destruição da primeira aparência não me au­to­ri­zam a de­finir a partir daqui o “real” como simples pro­vá­vel, já que eles não são mais do que um outro nome da nova aparição, que, por­tanto, deve figu­rar na nossa análise da des‑ilusão. A des‑ilusão só é a perda de uma evidência porque ela é a aquisição de uma outra evidência. […] Cada per­cep­­ção envolve a possibilidade da sua substi­tui­ção por uma outra e, portanto, uma espécie de desmentido das coisas. (1988, 63, 65)
 

Poder enganar‑se constitui, assim, o sentido essencial de toda a evi­dência que, em virtude desta abertura essencial, se temporaliza na duração de um campo perceptivo constituído numa con­ti­nui­­dade de reten­ções e pro­­tensões (no sentido husser­liano dos dois conceitos entendidos como «depresentações», respec­tivamente: a retenção enquanto recordação primária que parti­cipa ainda da intuição imediata e nesse sentido se distingue da me­mória/recordação, e a protensão enquanto sua contrapartida exacta em termos de antecipação). E é a síntese desta continui­dade intencional com o agora puro que funda o Pre­sente Vivo do sujeito, quer dizer: o agora puro é sempre acompanhado de uma recordação imediata, a retenção, e de uma antecipação imediata, a protensão, sendo o conjunto dos três momentos que constitui o presente vivo. Ora, é nesta mesma dobra que reside o ponto fulcral de uma poética que pre­tende fundar‑se sobre uma genuína fenomenologia da percepção visual. Por uma ra­zão muito simples: ao apresentar‑se como sujeito da percepção assim entendida, o poe­ta assume obrigato­riamente a sua presença no mundo que apresenta, gerando uma legitimação imanente do discurso, que o constitui como discurso que as coi­sas «em carne e osso», criando, desta forma, mais do que um efeito de real, um efei­to de verdade, assente num pres­suposto semiótico indicial, num index veri. E o que passa a estar em causa é, justa­mente, um acto de apresentação, e não de repre­sentação.

É por isso que Cinatti recupera a toda a hora o estado nascente do mun­do e de si próprio, apre­sentando a ex­pe­riên­cia visual como a expe­riên­cia inau­gural. Ou seja, amanhecendo, a vida co­me­ça, como num dos versos de abertura de Memória Des­cri­ti­va: «abre‑se o corpo: au­rora!» (idem: 639). Ou como na narrativa fundadora, Osso­bó:
 

É dia finalmente; o frio nevoeiro vai desaparecendo nos cerrados escuros de trepadeiras onde vivem esmagadas as árvores que, em tem­pos, miravam com benevolência as insignifi­cantes cordas de água, su­bindo hesitantes pelos seus troncos.
Tudo reanima do torpor da noite. As sensitivas intumescem, abrem devagar as suas folhas, e as flores do pau‑lírio lançam baforadas de perfume.
Sol!…
De manhã o ar é fresco e a vida penetra na floresta em grande movi­mento. (idem: 34)
 

Eis o sujeito verda­dei­ra­­­mente feno­me­no­lógico, o eu puro que se posi­cio­na no ponto de um não‑saber ra­dical, mediante a sus­pen­são da sua própria his­tó­ria, como quis Caeiro ao de­cre­tar pro­gramaticamente: «Ver podendo dispensar tu­­do menos o que se vê. / É esta a ciên­cia de ver, que não é nenhuma» (169). Só a partir deste posicio­namento pode o su­jeito realmente dotado do «olhar puro», invocado em «Memória hodier­na», ver claramente visto, uma vez que, como insistiu Eugen Fink, «pôr o mundo entre pa­rêntesis» ou «fora de jogo» na epoché significa recu­perar a vi­são, pois «a atitude natural é uma espécie de ce­guei­ra». E só assim a poesia pode ser com­pos­ta, de facto, da «fecunda energia / de pala­vras­­‑madru­ga­da», confor­me pro­cla­ma o poeta em Conversa de Rotina (OP: 753). Nesta com­po­sição, a derradeira imagem dos poetas é que, tal como os pássaros, «Acordam então cedo, / com o sol nos olhos. // Celebram intensa / ma­dru­gada», em versos que vêm recuperar a associação da luz solar, do despertar das aves e da cria­ção poética, já assumida em Sete Septetos: «Inun­dámo‑nos de sol / cintilante e poesia» (idem: 326). Não admira, pois, que, ao recu­perar o incipit de uma das mais famosas com­posições líricas de Camões — «Aquela triste e leda madru­gada» —, Cinatti tenha elidido o termo disfórico do verso camoniano: «Só não percebo o que em mim pressinto / de amor por tão leda madrugada» (idem: 1119).

O refrão do poema «As crianças», de Cró­nica Cabo‑Verdiana, repe­tin­do até à exaustão o verso «Que vêem meus olhos senão o que vêem?» (OP: 382), poderia ser­vir como ponto de partida para a reconstituição detalhada da poética da visão feno­me­­­nológica que Ruy Cinatti foi elaborando ao longo de toda a sua obra. Além de só ver o que está iluminado, o poeta vê ape­nas o que se situa dentro do seu cam­po de visão, com todas as condicionantes que tal circunscrição lhe impõe. Desde logo, o campo de visão é constituído por um segmento de espaço para além do qual não é possível ver: «vales e colinas que adivinham montes / para além dos olhos, / a norte» (idem: 997). É esse segmento que distingue o que está dentro de cam­po do que está fora de campo: «Caminhava eu rua adiante, / iluminou‑se o ca­minho: ruínas, / andaimes, montes de lixo. A um canto, / um braço ador­me­ci­do» (idem: 518). Note‑se como a sinédoque funciona como uma hipálage que dá a ver o que está fora do cam­po de visão — já que «ador­me­cido» desliza no espaço, como é pró­prio da hipálage —, sem deixar de acentuar a fron­teira que separa o que está fora do que está enqua­­dra­do. Em Archeologia ad Usum Animae, a imagem repete‑se, num contexto terminológico explícito: «Só nessa altura reparo na imagem / apercebida por causa dum braço / aprisionado / na perspectiva» (2000, 114). Por outro lado, os objec­tos coexistem com o sujeito, mantendo com ele diferentes relações de distância, graças às quais nem todos os contornos são precisos, e, sobretudo, nem todas as evidências sucessivas se confirmam umas às outras, o que faz com que a luz seja, com frequência, sinónimo de ilusão.

É esta a lição que estreia a obra de Ruy Cinatti em 1936, na história de Ossobó, o pás­saro das ilhas de S. Tomé e Príncipe que Bernardo Marques desenhou. Trata-se de um brevíssimo conto que descreve o amanhecer na floresta a partir do trajecto de um pássaro-protagonista apresentado na primeira linha, Ossobó, cujos percursos esvoaçantes se vão esboçando gradualmente à medida que o dia avança. Por alguns momentos e durante algumas linhas, a paisagem que Ossobó atravessa e habita é mesmo idílica: «De manhã o ar é fresco e a vida penetra na floresta em grande movi­mento. Ossobó entra na ribeira e imita os seus companheiros. Agacha‑se, faz com que a corrente se desvie ante o obstáculo do seu corpo e mergulha repetidas vezes nas águas. Salpica‑se, asperge‑se e todo estre­mece de prazer ao sentir a penugem eriçada e as gotas a escorrerem do seu peito branco» (OP: 34). Há assim uma atmosfera generalizada de «renascence of wonder» que em tudo se harmoniza com o que virá a ser a visão da paisagem na obra poética de Cinatti, sendo, no entanto, rapidamente interrompida pela simples introdução de um «mas» na frase imediatamente a seguir à passagem que acabei de transcrever: «Mas os bicos-de-lacre pararam de brincar e olham inquietos qual­quer coisa que se move e que em filas tortuosas vem a subir pelas pe­dras roliças das margens». A suspensão dos bicos-de-lacre anuncia a chegada das «cobras traiçoeiras», e a melodia que Ossobó entoa «parece alegre» mas está afinal povoada de «recordações melancólicas» (35). São estes os índices naturais de uma alteração notória na visão da floresta, cuja descrição vai abandonando os topoi quase bucólicos para começar a enfatizar tópicos de força e agressão, de agonia e morte: «vales profundos», «pedregulhos a rolar torrentes abaixo», «cordas serpeando nervosamente pelo chão», líquenes que pendem «como coisas mortas», «rochas negras», lugares onde a luta não pára. A aproximação do fim do dia é também, visivelmente, a aproximação do fim da vida — neste caso, da vida de Ossobó:

 

Despreocupado, perscruta por entre as folhas e depois saltita atraído pelo vermelho dum insecto que zumbe mais em baixo.
(…)
Não ouvia ainda o cantar dos bicos-de-lacre? Seria ilusão tudo aquilo?
(…)
Descendo das alturas passam cinco garças brancas, mas Ossobó já nem as vê. As suas asas roçam o chão sem força alguma e, preso ao seu destino, Ossobó aguarda o fim.
O silêncio é enorme quando um silvo cortante talha o ar. Por de­trás do tronco surge a cobra negra com as estrias vermelhas na cabeça e os dois dentes curvos saindo da bocarra.
Rastejando, o seu corpo manchado de amarelo, descreve longos ss em direcção a Ossobó, mas este só sente dois pontos brilhantes que cada vez mais se aproximam e lhe entram pelos olhos dentro. (OP: 37-38; itálicos meus)
 

Ossobó morre de desilusão, dessa des‑ilusão sen­sível que acon­te­ce simples­mente graças à perda de uma evidência pela aparição de uma nova evi­dência, e da falta de coinci­dência entre ambas, o que vem de­mons­trar que a verdade se define no e pelo devir, em suma, que o falso é rigoro­sa­mente um momento do verdadeiro. O senso comum ensina‑nos que ver é poder fixar, e este é o primeiro passo que se­pa­ra a sensação da percepção, comprovando que ver é um acto volun­tá­rio (cf. Berger 1980, 12). Fixar é, por­tanto, o primeiro acto de visar pela visão, e é este acto de singula­­ri­za­ção no seio do visível que realiza a «análise» de que fala Cinatti a propó­sito do seu método de cria­ção poética, pois, como sublinha Merleau‑Ponty, «do lado do su­jeito, [fixar] é subs­tituir a visão global, na qual o nos­so olhar se presta a todo o es­pec­táculo e se deixa invadir por ele, por uma obser­va­ção, quer dizer, uma visão local que ele governa à sua vontade» (1945, 261). Con­co­mi­tan­te­men­te, do lado do objecto, fixar é «separar a região fixada do resto do cam­po, é interromper a vida total do espec­tá­cu­lo», é destacar uma figura de um fun­do através do olhar, é, portanto, escolher aquilo sobre que o olhar incide, alterando o visto pela visão. Na realidade, fixar implica necessariamente trazer o objecto da margem do campo de visão para o seu centro, acordá‑lo e pô‑lo em mo­vi­mento, levando a que, em última instância, ao fixar um objecto, o sujeito acres­cente atenção à sua intenção.[7] No caso de Ruy Cinatti, fixar é ainda, rigorosamente, focar — ajustar a retina e a len­te ao objecto visado, que assim pas­sa a identi­ficar­‑se com o ob­jec­to ver­ba­lizado, uma vez que ambos são dados à luz no mesmo parto. Trata‑se da evidência ver­bal­mente edificada, em que a ple­nitude se manifesta na coin­ci­dência total do objec­to dado e do objecto dito, ou seja, reformulando o lema de Mer­leau‑Ponty, tra­ta‑se do visí­vel como a pos­si­bi­­li­da­de de ser evidente em palavras. Pelos olhos morre o pássaro. Ou melhor, morre pelo órgão, pela sen­sa­ção e pela per­cepção, isto é, pelos olhos, pelo olhar e pela visão. Os­so­bó é o sacri­fício de Ifi­génia de Ruy Cinat­ti. A falta de adequação entre a primeira evidência, o «ver­­melho de um insecto», e a se­guinte, «a cobra negra com as estrias ver­me­lhas», cus­ta a vida ao pás­saro de S. Tomé e Príncipe, que o poeta não hesita em matar à en­tra­­da da sua obra, anun­cian­do assim a sua inteira fide­li­da­de ao visível como aquilo que apa­rece. E o que apa­rece é a cor vermelha fun­dando o segmento de coin­­ci­dência onde se inter­sec­tam as duas evi­dên­cias discordantes, como de resto se anuncia logo no início do conto, já que também a identidade do pássaro se funda numa espécie de remixagem consti­tuinte («confundindo o verde das suas penas com o verde das folhagens»; OP: 33).

Ossobó morre vítima da visão, só porque, como ensi­nou Mer­leau‑Ponty na senda de Husserl, ver é sempre ver qualquer coisa, ou seja, «ver ver­­­melho é ver ver­­­me­lho exis­tente em acto», pois não há cor ou forma sem ma­té­ria, co­mo já de­mons­trara a bor­bo­leta de Caeiro: Ossobó morre vítima da visão porque en­tre uma e a outra percepção se instala a falha da síntese da identidade mate­rial que qualquer acto perceptivo necessariamente solicita. Na passagem da sensação ao per­­­­cepto, não se pode ignorar que a visão é, acima de tudo, visão intencional, o que vem precisar ain­da mais o real signi­ficado da morte de Ossobó: a falta de coin­­­cidência entre as duas evidências resulta, na reali­dade, de uma falta de co­in­­­­­­cidência entre o visado e o dado, pois não há pre­enchimento de um pelo ou­tro. Ao contrário do que acontece na memória consciente do poeta, que anos mais tarde evocará o seu pri­meiro pássaro recordando dele apenas «um azul de passarinho, / Ossobó, em S. Tomé» (OP: 1186; sublinhado meu), promovendo assim a recuperação da síntese da identidade material do seu pássaro, bem como a harmonização entre os actos perceptivos e presentificativos no plano poético.

 

[1] Ossobó História dum Pássaro de S. Tomé, separata de O Mundo Português — Revista de Cultura e Propaganda, Arte e Literatura Coloniais, n.º 30, Lisboa, Agência Geral das Colónias, Secretariado da Propaganda Nacional, Junho de 1936 (desenho da capa de Bernardo Marques); 2.ª ed., Ossobó, Braga, Editora Pax (fora do mercado), 1967. De acordo com a indicação de Luís Manuel Gaspar, «o subtítulo História dum Pássaro de S. Tomé figura na capa e frontispício da separata editada em 1936, não constando, quer da publicação na revista, quer da edição em li­vro. Nas listas da “Obra Poética do Autor”, incluídas por Cinatti nos seus livros a par­tir de 1967, o subtítulo passa a ser História de Um Pássaro das Ilhas de S. Tomé e Prín­cipe» (Obra Poética I, org. Luís Manuel Gaspar, pref. Joana Matos Frias, Lisboa, Assírio & Alvim, 2016, p. 1366).

[2] Salvo indicação em contrário, todas as citações da Obra Poética de Ruy Cinatti serão retiradas do volume Obra Poética I, a partir daqui designado com as iniciais OP.

[3] Note-se, a este propósito, que a sinestesia, em Cinatti, não sofre da falta de precisão de que o Ezra Pound imagista chegou a acusar este tropo para se afastar da estética simbolista, pois resulta de uma espécie de hipálage que torna ainda mais detalhada e precisa a apresentação, como se verifica nestes versos de Nós não Somos deste Mundo: «Pensamos que o navio verde-líquido / Sulcava o verde mar» (OP: 100; cf. Pound, 130‑134: «Não confundam a percepção de um sentido ao tentar defini‑la nos termos de outro. Isto é normalmente apenas o resultado de se ser muito pre­gui­çoso para encontrar a palavra exacta»). 

[4] Na síntese de Husserl, portanto, «o lado verda­­deiramente “visto” de um objecto, a sua “face” virada para nós, apresenta sempre e neces­saria­mente a sua “outra face” — escondida — e faz prever a sua estrutura, mais ou menos determinada» (1953, 92).

[5] Fink, discípulo de Husserl, propõe o termo que aqui se traduz por «jane­li­da­de» — no ori­gi­nal, Fensterhaftigkeit —, para descrever, não propriamente o acto perceptivo, mas, já a um outro nível, a natureza específica da imagem. No entender de Fink, «a imagem inteira não é […] mais do que uma pe­quena “janela” dando sobre o mundo de imagem», o que significa que «o mun­do de imagem é tão pouco sobre a superfície como a paisagem vista, no exterior, é na janela real». Apesar de utilizar o termo num registo metafórico, Fink consegue assim enfatizar a natu­re­za ne­ces­­sariamente «enqua­dra­da», isto é, limitada, da percepção visual, totalmente condicionada pelo centro de perspectiva constituído pelo olhar do sujeito (cf. Fink 1974, 92).

[6] Cf. ainda Mer­leau‑Ponty: «Dizer que tenho um campo visual é dizer que, por posição, eu tenho acesso e aber­tu­ra a um sistema de seres, os seres visíveis, que eles estão à disposição do meu olhar […] — e é dizer, ao mesmo tempo, que ela é sempre limitada, que há sempre à volta da minha visão actual um hori­zon­te de coisas não vistas, ou mesmo não visíveis» (1945, 250‑251).

[7] Como salienta Husserl, «o objecto intencional não é sempre objecto de atenção, objecto notado», mas inten­cio­nalidade e atenção implicam‑se mutuamente, a partir do mo­men­to em que o objecto é objecto fixado (1961, 181).

 

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