Chiffre à double sens. Un clair et où il est dit que le sens est caché.

Blaise Pascal

 

— Which Doppelgänger fictions would you single out for praise?
— The Doppelgänger subject is a frightful bore.

Vladimir Nabokov

 

the greater the attachment to a concept (as to a person, or to a god), the harder it may be to explain either the attach­ment or the concept; or perhaps it should be said that everything one does is, or could be, the only explanation of it.

Stanley Cavell

 

35 é o número do melhor e mais importante capítulo de Lolita (1955). O facto de se tratar do penúltimo capítulo do livro, imediatamente antes do epílogo, tem a grande vantagem de confirmar ideias feitas sobre a construção de romances (talvez por isso Harold Bloom tenha sido mais reticente na apreciação do seu valor[1]); mas parece terminar aqui a confirmação de ideias feitas, em particular sobre este roman­ce. Nesse momento do monólogo, de Dolores Haze resta apenas Lolita onde sempre esteve — no teatro da memória do seu inventor —, e o essencial do episódio dá-se entre Humbert Humbert e Clare Quilty. Se dúvidas houver quanto ao valor que o próprio Nabokov reconheceu a este con­fronto, três sinais serão talvez suficientes para as dissipar: no exterior da narrativa, o autor escolheu uma versão equivalente a esta como cena de abertura do argu­mento que preparou para a adaptação fílmica da obra por Stanley Kubrick (e Kubrick, ainda que tenha acabado por  se distanciar de­clara­damente do guião de Nabokov, mantendo apenas «bits and shadows of it», seguiria esta deci­são)[2]; no interior da narrativa, é logo no capítulo 8 que o número do penúltimo capítulo se anuncia, quando Humbert se dedica à leitura do anuário de teatro Who’s Who in the Limelight e se detém no nome próprio de uma certa Dolores que figura imediatamente depois de Clare Quilty, para notar: «Perhaps, she might have been an actress too. Born 1935. Appeared (I notice the slip of my pen in the preceding paragraph, but please do not correct it, Clarence) in The Murdered Play­wright. Quine the Swine. Guilty of killing Quilty» (2000: 32)[3]; no discurso de Hum­bert, um dos mais divertidos nar­ra­dores de Nabo­kov[4], a duração, os detalhes e o registo emocional do primeiro e deci­sivo encontro físico dos dois adversários contras­ta em absoluto com a brevi­dade, o laconismo e a frieza com que dera conta da sua primeira relação sexual com Dolores:

Frigid gentlewomen of the jury! I had thought that months, perhaps years, would elapse before I dared to reveal myself to Dolores Haze; but by six she was wide awake, and by six fifteen we were technically lovers. (idem: 132)

Há na apologia de Humbert uma deslocação sintáctica da «frigi­dez» do conta­dor para as suas eventuais interlocutoras ― mas o adjectivo, ao abrir o parágrafo por meio de uma hipálage, anun­cia e denuncia com precisão o tom e o estilo que regem a reme­moração. Technically speaking, o desajuste flagrante entre os relatos de cada um dos dois momentos (vs. Lolita, vs. Quilty) explica-se pela diferente gestão da tem­po­ralidade nos modos de coor­denar aconte­cimentos (ou acções) e narração: com Lolita, mediante o sumário quase elíptico que parece confrontar a omnipresença dela ao longo de todo o monólogo — omnipresença que tivera um clímax retórico em forma de delírio tipográfico poucos capítulos antes, na injunção «Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita. Repeat till the page is full, printer» (idem: 109); com Quilty, através de uma cena na qual a duração dos factos e a do discurso tendem a coincidir, assegurando à personagem aparentemente secundária uma pre­sença qualitativa que até então só havia sido elipticamente sugerida por indícios.

Numa leitura imediata, este contraponto vem subverter os elementos mais óbvios do enredo, e nesse sentido parece ir ao encontro de um propósito que Na­bokov esclareceu ao comentar o seu livro imedia­tamente anterior, Bend Sinister (1947), a fim de o resgatar do fácil enquadramento num conjunto mais alargado de romances distópicos produ­zidos em tempos de totali­tarismos comunistas e fas­cis­tas. «The story in Bend Sinister», explica,

is not really about life and death in a grotesque police state. My characters are not “types,” not carriers of this or that “idea.” (…) The main theme of Bend Sinister, then, is the beating of Krug’s loving heart, the torture an intense tenderness is subjected to—and it is for the sake of the pages about David and his father that the book was written and should be read. (1990)

Entre outras coisas, o depoimento poderá comprovar em parte o parecer de Richard Rorty segundo o qual o tópico central da obra de Nabokov seria a crueldade. Mas interessará talvez menos avaliar em que medida a apresentação daquele estado poli­cial tem maior ou menor prepon­derância na história que o livro conta do que aceitar o movimento criativo segundo o qual, sob o aparato de um tema geral de grande impacto — regimes ditatoriais, abusos pedófilos mais ou menos incestuosos —, podem revelar-se detalhes característicos de pessoas e de relações absolutamente particulares. Eis o ponto no qual Nabokov situa a possibilidade de um autor exercer plenamente o seu livre-arbítrio, como deixou claro desde muito cedo, já nas russas aparições do concei­to de free will vinculadas à origem do gesto ficcional (o primeiro exemplo encontra-se provavel­mente na figura de Luzhin pai, o escritor; cf. 2016: 48-49[5]) — eis, em suma, onde reside para si o essencial da responsabilidade, não moral, mas artís­tica. De resto, trata-se de um tipo de relação (a que se tece entre gene­ralidades colectivas e parti­cu­laridades individuais) que Nabokov bem poderá ter treinado nas suas conhe­cidas leituras detectivescas, e que justificaria a propósito de Lolita um enunciado de Clare — não Quilty — em The Real Life of Sebastian Knight (1941): «A title (…) must convey the colour of the book, not its subject». Talvez por isto mesmo Lolita se tenha visto conver­tida em nome de mero furacão que passa no poema subsequente de John Shade.

Não será assim difícil imaginar o mesmo Nabokov a dizer a propósito de Lolita qualquer coisa como it is for the sake of the pages about Quilty and his killer that the book was written and should be read. A verdade é que a imagem que prevalece qua imagem é a do com­bate com Quilty, e não a do(s) contacto(s) com Lolita (que na ver­dade compõem uma série de scenes unseen, algumas delas resu­midas com re­cur­so a números), o que não sucede decerto graças a qualquer pudor de Humbert, mas sim por decisão de Nabokov, para quem, como é sabido, no princípio estaria sempre uma imagem, e no fim uma composição por montagem. Sinto­ma­­­­ti­camente, aliás, o primeiro encontro com Lolita fica sub­sumido naquele advérbio «techni­cally», que por si só bastaria para contestar as sucessivas leituras ro­mânticas semi-ingénuas do livro, uma vez que, no caso de Nabokov mais do que em qualquer outro, não convém subestimar o valor da escolha de cada uma das palavras que compõem cada frase do texto (basta lembrar que, en­quanto leitor e pro­fessor de Literatura, chegava a pedir aos alunos que discutissem os usos da palavra «e» em Flaubert).       

Admitir a validade da percepção de que o capítulo onde se consuma o agonis­mo entre Humbert e Quilty com a agonia de ambos é o melhor e o mais importante do livro pode abrir possibilidades de leitura não neces­saria­­mente convergentes. Na primeira e mais imediata delas, já defendida com empenho por alguma crítica, estaria aí latente a sugestão de uma atracção homoerótica tendente a anular (ou até a sublimar) as confidências do narrador quanto à prática mais aparatosa (e patente) do abuso ninfófilo: Lolita acompanha Hum­bert no carro e em motéis, mas é Quilty quem na verdade o persegue pelas curvas sinuosas da estrada, da narração e das iniciais C e Q (ou do seu motivado diminutivo «Cue»).[6] Trata-se de uma leitura inte­res­­sante que procura recuperar evidências homossexuais vindas de livros ante­riores (ou antecipar casos similares nos seguintes, com especial destaque para o de Kin­bote em Pale Fire),[7] mas não parece ser especial­mente escla­re­cedora para a narração de Humbert Hum­bert, ainda que dê destaque a passa­gens extraor­dinárias como «He was naked and goatish under his robe, and I felt suffocated as he rolled over me. I rolled over him. We rolled over me. They rolled over him. We rolled over us» (2000: 299). Em certa medida, um entendimento desse tipo tende a enquadrar as perso­nagens de Humbert e Quilty numa triangulação à René Girard de que Lolita seria ainda um dos vértices, mas apenas enquanto mediadora — em rigor, pouco mais do que uma dobradiça, se se atentar ainda nas notas arrapazadas que vão pontuando aqui e ali a sua carac­terização.

Ora, uma alternativa mais atraente poderá advir do acordo com a advertência de Harold Bloom segundo a qual «Admirers who defend Nabokov’s writing as mimesis do him violence. His genius was for distorted self-representation» (1987: 2); e com a de Elizabeth Hardwick: «Nabokov’s own novels very often end, and no matter what the plot, in a rhapsodic call to literature itself» (2017). É inegável que descrições como «distorted self-representation» e «rhapsodic call to literature itself» têm um aspecto demasiado apelativo e confortável que só pode suscitar des­con­fiança, já que atribuir tudo à literatura é o que de mais fácil se pode fazer perante a literatura. Neste caso, o conforto é tal que permite até ver nessas breves descrições o essencial de um gesto como o que presi­diu à elaboração de The Gift em 1938, ou de Pale Fire em 1962. Mas em Lolita a variação disto, ainda que inscrita num padrão, poderá ser mais interes­sante.

Metonimicamente pensados, o encontro e a luta entre Humbert e Quilty ex­primem-se num conflito tragicómico que se dá num cenário romanesco entre «two literati», o poeta embriagado e o dramaturgo drogado (condições opostas à de Dolo­res, «wide awake» no momento-chave da primeira parte do romance), ou entre «two literae», a poesia europeia e o drama norte-americano. Não por acaso, este é o capí­tulo que mais abusa da paródia do francês literato, acolhendo no diálogo uma série de pastiches, de Proust a Eliot, passando por Sade e outros,[8] numa espécie de carnaval literário que bem justificaria que nele se descobrissem desígnios homo­textuais mais do que homos­sexuais. Todo o pathos da cena se desenvolve em torno desse meca­nismo de trans­ferência, graças ao qual se coloca no campo de batalha do romance as peças-pro­fé­ticas de Quilty face ao poema-sentença de Humbert, sob o auspicioso conceito de «justiça poética». Num claro gesto próprio da tal auto-repre­­sentação distorcida mencionada por Bloom, Nabokov introduz aqui sinuosa­mente uma das suas opiniões (mais) fortes, segundo a qual qualquer intuito de produção de um texto «engazhay and compelling» (termos caricaturais do seu John Shade) só poderá ser objecto de desprezo. Ao fazê-lo, porém, está ainda a ressignificar o conceito (e com isso o seu romance), transformando Quilty — cue, o alegado epígono ― no derradeiro crítico cínico de Humbert: «Well, sir, this is certainly a fine poem. Your best as far as I am concerned» (2000: 300).

Pouco dado a dualismos antitéticos, o autor de Lolita actua com muito mais convicção no domínio dos dissoi logoi. Na leitura do poema de Humbert há portanto uma duplicidade que ganha destaque, pois ao mesmo tempo que o texto se elabora como imitação fraca de uma litania de T. S. Eliot, Humbert usa essa imitação para acusar Quilty de roubo: «because you stole her» (idem: 300). Quer dizer: Humbert imita, Quilty rouba — como é próprio da diferença entre poeta imaturo e poeta maduro no famoso dictum do mesmo Eliot —, o que talvez ajude a validar o juízo final do narrador: «This (…) was the end of the ingenious play staged for me by Quilty» (2000: 305; destaques meus). Retrospec­tivamente, porém, a leitura do poema do poeta fraco pelo dramaturgo forte parece lançar uma outra luz sobre uma das úl­timas e mais peremptórias declarações de Mrs. Richard F. Schiller, absorvida e devol­vida ao leitor pelo próprio Humbert: «He [Quilty] saw—smiling—through every­thing and everybody, because he was not like me [Humbert] and her but a genius» (idem: 275). Kubrick entendeu a importância deste juízo, a ponto de o ter recuperado quase ipsis verbis no filme, mesmo que no discurso directo pro­fe­rido pela própria Sue Lyon.

O que talvez possa passar despercebido nas dobras livres do discurso indirecto de Humbert (perante o qual o leitor não tem como saber quem fica a sorrir entre os dois travessões) é a importância dada à diferença pressuposta na com­paração: «he was not like…». Dentro de Lolita, Quilty não é como Humbert exacta­mente da mesma for­ma como, em obras diferentes, Hermann (Despair, 1934) e Humbert são pare­cidos «only in the sense that two dragons painted by the same artist at different pe­riods of his life resemble each other» (1989). Quer dizer: não há mistério, mas pa­drão. Será neste ponto preciso que reside a estreita afinidade de Nabokov com a arte de escrever de Robert Louis Ste­venson, e não num qualquer programa epigo­nístico de ressur­reição de Jekylls & Hydes.[9] Ora, esse padrão não é necessariamente o da pintura de vários dragões em diferen­tes períodos da vida de um artista, mas o da possibilidade de comparação que resulta de se pintarem dragões que, podendo ser parecidos, não serão nunca iguais ― e que, justamente por serem parecidos, mais se beneficiam do gesto comparativo que identifica as suas mais particulares carac­terísticas e especifi­ci­dades. Não deixa de ser significativo, a este propósito, que Lolita se situe entre o uni­verso sinistro de Bend Sinister — em cujo estado ditatorial vinga o partido do «Ave­rage Man» destinado a eliminar todas as diferenças entre indivíduos, assim co­mo vinga a maravilhosa máquina escritora que reproduz a caligrafia de todos «as a proof of the fact that a mechanical device can reproduce personality» (1990) — e o de Pale Fire, onde todos os Zemblanos se assemelham, numa terra cujo nome tem ori­­gem na corrupção de «Sembler­­land, a land of reflections, of “resemblers”» (1984: 246).

Duas constatações vêm impor-se: i) ao contrário do que possa parecer, uma das ideias mais fortes de Nabokov — insistentemente efabulada ao longo da obra — diz respeito a diferenças e não a semelhanças; ii) as formas tropológicas de expres­são desta ideia são a paronomásia («a kind of verbal plague») e a comparação — ou, mais adequadamente, o simile —, figuras maiores do estilo do escritor, propiciadoras de sobreposições quase com­pletas mas sempre parciais, onde as mais minúsculas e precisas diferenças podem destacar-se, no exacto avesso do tipo de identificação diluidora pro­mo­vido por operações de espécie metafórica. Não estamos assim face a um percurso conducente àquilo que em The Eye fora anunciado nos termos de «the merging of twin images», mas, pelo contrário, àquilo que procura distinguir esse género de imagens — em duas palavras, ao que pode manifestar-se entre gaze e haze. Quine observaria decerto que «kinship in meaning invites conver­gence in form», e embora Nabokov se tenha dedicado com muito afinco aos termos em que pode dar-se este tipo de convite, parece muito notório (e notável) que aquilo que aí mais lhe interes­sou foi, não o macroscópico sentido (senso) comum, mas o microscópico sentido inco­mum. Significativamente, este tipo de gesto diferenciador intensifica-se, mar­cando mesmo uma clara inflexão, nas obras dos anos americanos de Nabokov, entre as quais Lolita pontifica.       

A premissa nabokoviana style is matter ganha assim especial relevância, sobretudo se for considerada à luz de um postulado como o que encontramos já no precoce The Enchanter: «what is logical gets construed as being zoological». O enun­ciado resume o padrão compositivo de uma boa parte dos romances de Nabo­kov — isto é, descreve a especificidade da sua retórica da ficção —, nos quais as personagens se escusam ao risco de parecerem «serial selves», ao surgirem como formas de elaboração zoológica de um exer­cício lógico que, do ponto de vista verbal e discur­sivo, é identificável como um acto com­parativo. Borboletas, aranhas, macacos e suínos desempenham funções importantes na constituição deste outro universo de zoo­logia comparada, que parece ter acompanhado de muito perto o trabalho ento­mológico desenvolvido pelo escritor durante toda a vida, e entusiasticamente inten­si­­fi­cado nos Estados Unidos pela frequência diária desse «laboratorial Paradise» que foi para ele o Harvard Museum of Comparative Zoology.

No paraíso laboratorial que pode ser a ficção, como no museu, a identidade exacta entre dois seres vivos é da ordem da ilusão; mas é justamente essa ilusão que permite observá-los com mais cuidado, para lhes reconhecer no detalhe as respectivas diffe­rentiae specificae. Nabokov gostava de descrever «beings akin», não duplos; e não admirava duplos porque não acreditava neles, mas em indivíduos, seres incom­pa­tíveis no duplo (agora sim) sentido de seres inimitáveis, indivisíveis: Luzhin, o jogador, Cincinnatus C., o professor, Alex Krug, o filósofo, Humbert, o escritor — todos eles excêntricos naquele exacto sentido que John Stuart Mill desejou e que Nabokov defendeu no seu ensaio «The art of literature and common sense». Guilty Quilty não é um duplo de somber Humbert — os dois são compa­ráveis e comparados, como aconte­cera já com Albinus e Alex Rex em Laughter in the Dark (1933). E tanto num caso como no outro, aquilo que move a comparação é a expectativa de que em algum momento se consume o princípio de inspiração pascaliana enun­ciado no núcleo da melhor paródia do motivo do duplo produzida por Nabokov em russo, Despair: «two persons resembling each other do not present any interest when met singly, but create quite a stir when both appear at once» (1989).[10] É essencial que Humbert e Quilty apareçam na mesma cena laboratorial, e em ambiente condi­cio­nado — quer dizer, na ausência de Lolita. Eis a razão de ser do capítulo 35 do livro, no qual os espelhos — como já em cenas e capítulos anteriores — não cumprem qualquer intuito simbólico ou psicanalítico de duplicação especu­lar mais ou menos metafísica de pessoas, mas um intuito especificamente teatral de multipli­cação espectacular das figuras da re­pre­sentação (mimética e/ou teatral), o que de resto se anuncia com toda a propriedade nos preli­minares da noite nupcial de Humbert e Dolores:

There was a double bed, a mirror, a double bed in the mirror, a closet door with mirror, a bathroom door ditto, a blue-dark window, a reflected bed there, the same in the closet mirror, two chairs, a glass-topped table, two bedtables, a double bed: a big panel bed, to be exact, with a Tuscan rose chenille spread, and two frilled, pinkshaded nightlamps, left and right. (2000: 119)

Os eventuais interlocutores e interlocutoras do discurso de Humbert — juízes e leitores, ou leitores que são como jurados mal situados — têm um singular paralelo na audiência incrédula dos convidados que, em casa de Quilty, presenciam a execução do anfitrião, reduplicando assim o âmbito da performance. Ambos os públicos estão significativamente ausen­tes dos argu­mentos para filme, talvez porque se pressu­ponha que eles possam materializar-se em especta­dores de carne e osso numa sala de cinema. Mas trata-se de um dos muitos momentos nos quais o ironista Nabokov joga com os desacertos entre verdade e verosi­milhan­ça, o que não por acaso com muita frequência leva a cabo a partir de alusões dra­máticas e/ou teatrais, num movimento transversal e insistente muito pouco co­mentado até à publicação do estudo de Siggy Frank Nabokov’s Theatrical Imagi­nation (cf. 2012: 13-14). Os exemplos máximos deste tipo de manobra encon­tra­vam-se de resto já plena­mente elaborados e publi­cados quan­do Nabokov escre­veu Lolita, nos grand finales de Laughter in the Dark (o rascunho forte de Lolita[11]), Invitation to a Beheading (1936), The Real Life of Sebastian Knight ou Bend Sinister. Em todos eles, ainda que de modos distintos, a finalização da história coin­cide com um efeito de distancia­mento assente num princípio de encenação («stage-directions for last silent scene», como se lê no fecho de Laughter in the Dark), graças ao qual o leitor inevitavelmente se vê esva­ziado de qualquer tentação de em­patia emocional ingénua, ao mesmo tempo que se torna espectador num contexto que tende a diluir os limites entre espectáculo, vigilância e voyeurismo.

É sabido que Nabokov, mesmo na sua versão/visão de dramaturgo, não manifestava grande apreço por Bertolt Brecht, que incluía no grupo das «mediocridades formidáveis», mas é também inegável que há nele um ímpeto para explorar as nuances e variações de conceitos e palavras am­bi­valentes como «match» (jogo/cor­res­­­­­­­pondência), “play” (jogar/actuar) e «move» (jogada/deslocação) que, se encon­­tra a sua verbalização mais explí­cita nas páginas do precoce The Luzhin Defense, é em Lolita que atinge decerto a sua máxima elaboração roma­nesca. O que dife­rencia a teatralidade de Lolita do efeito similar em obras anteriores é a existência e a presença efectivas do dramaturgo ― mais do que dos seus dramas, pois apesar da as­sumi­damente óbvia função que a peça The Enchanted Hunters desem­penha no enredo, a natureza da sua aparição não chega a ser a do proce­dimento isabe­lino de teatro-no-teatro, mesmo que nela inevitavelmente repercuta a sugestão da rato­eira de Hamlet (neste caso, no jogo com trapp mais do que com mouse). Pelo que: Quilty é como Humbert na sua atracção por ninfetas, Quilty veste um robe como o de Hum­bert, Quilty — como Humbert — é escritor e artista; mas Humbert Humbert distingue-se de Clare Quilty porque não é um autor de teatro, o que significa que ambos confir­mam a crença de Nabokov de que a arte enquanto tal não existe, mas sim artistas, isto é, «indivíduos com diferentes formas de expressão», conforme trans­mitiu a Kath­leen Lucas logo em 1942 (cf. 2019). Curiosamente, aliás, graças a um dos muitos efeitos paronímicos longínquos que Nabokov vai semeando pela obra, no nome do narrador de Lolita o que fica a reverberar é mesmo um «humble Hamlet» vindo de Bend Sinister.

À semelhança do seu Humbert, que diz detestar teatro, Vladimir Nabokov tinha ideias muito fortes sobre teatro. Significativamente, os dois ensaios em que de forma mais declarada se pronunciou sobre o assunto datam do início da década de 40, na sequência da sua che­gada aos Estados Unidos dois anos antes, e são praticamente contem­porâneos da inter­venção que estará na base de um outro texto fundamental inti­tulado «On Demo­cra­cy» (1942), cujo argumento principal poderia resumir-se nestas palavras: «The splendid paradox of democracy is that, while stress is laid on the rule of all and equality of common rights, it is the individual that derives from it his special and uncommon benefit. Ethically, the members of a democracy are equals; spiritually, each has the right to be as different from his neighbors as he pleases» (2019). Dedicados à partida a temas diferentes em âmbitos distintos — arte e po­lítica, domínios cuja associação Nabokov não suportava —, os artigos ganham se lidos em conjunto, exactamente no mesmo sentido em que Lolita poderá ganhar quando lida a par de obras como Invitation to a Beheading ou, ainda mais justi­fi­cadamente, Bend Sinister.[12] A sugestão socrática do cenário do primeiro (um conde­nado que aguarda a sua execução), ao ser consolidada pela referência paródica à exibição de uma ópera-bufa intitulada Sócrates deve diminuir, poderá ainda dizer-nos algu­ma coisa sobre a insistente estratégia de endereçamento usada por Hum­bert na sua apologia tardia, ao mesmo tempo que se vai reconfigurando o julgamento de corrupção dos jovens pelo qual Sócrates foi também condenado à morte.

De volta ao teatro: em 1941, o credo de Nabokov é declara­damente anti-brechtiano, e assenta numa firme defesa da preservação convencional da quarta pare­de e da condição de «invisible watchers» dos espectadores — «Destroy the spell and you kill the play», diz em «Playwriting» (cf. 1984) —, malgrado a desconstru­ção do princípio que ele próprio levará a cabo em sede narrativa. Trata-se na verdade de uma singular defesa da poesia, ou, se se preferir, da apologia de um modelo dramá­tico — isto é, literário — de teatro, perante a ameaça de que o drama pudesse ser «taken over by show­man­ship, completely absorbed by that other art, the art of staging and acting, a great art to be sure which I love ardently but which is as remote from the writer’s essential business as any other art». Ora, aquilo que Nabokov aqui designa por «the writer’s essential business» não decorre necessa­riamente do que poderia ser mais óbvio, i. e., do facto de o trabalho do escritor se fazer com palavras e não por meios não-verbais; o que na prevalência do showing sobre o telling per­turba as suas mais firmes convicções é a ideia da im­po­sição de um acto artístico cria­dor resultante apenas de um trabalho colectivo ou colaborativo — logo, não indi­vidual. É curioso aliás que a reserva se manifeste em termos muito similares aos que encontramos na descrição do partido autocrático do «Average Man» em Bend Sinister:     

(…) a play will (…) be based on collaboration, and collaboration will certainly never produce anything as permanent as can be the work of one man because however much talent the collaborators may individually possess the final result will unavoid­ably be a compromise between talents, a certain average, a trimming and clipping, a rational number distilled out of the fusion of irrational ones. (idem)

Anos depois, ao apresentar a sua versão de Lolita para o ecrã, Nabokov fará ainda questão de reforçar o motivo do repúdio, esclarecendo que «there is nothing in the world that I loathe more than group activity, that communal bath where the hairy and slippery mix in a multiplication of mediocrity» (1997; cf. Frank, 2012: 1-17). Não admira portanto que, naquele contexto — quase coincidente com o da mudança deci­siva dos Nabokov para os Estados Unidos —, as palavras-chave do artigo, na sua defesa da poesia individual, sejam liberty e free will.

Regressemos a Lolita, romance, e à primeira das duas últimas cenas do livro, da qual Quilty está ausente: a do derradeiro encontro entre Humbert e Dolly, agora Mrs. Richard F. Schiller, nome aliás que lhe é reconhecido por John Ray, o responsável pelo Prólogo, logo nas primeiras linhas do texto. Esta nomeação cirurgicamente posicionada e essa cena dizem-nos pelo menos duas coisas sobre a deformação do romance de formação: ao contrário do destino que lhe reser­varia a cultura popular, o destino que Nabokov quis dar a Dolores foi o de não ficar refém de Lolita (ou do diminutivo «Lo», no qual sempre ressoará «low»), o que acontece por escolha e por decisão dela, naquele que poderá ser o gesto ficcional mais expressivo da esperança libe­ral que Rorty identificou em toda a obra (cf. idem: 276-277; Rorty, 1993); quando Humbert reconhece que ama esta mulher casada, cansada e grávida, «at first sight, at last sight, at ever and ever sight» (idem: 270), ele está na verdade, mais do que a protagonizar um romantismo melodramático requentado, a cola­borar com o seu autor nesse resgate liberal. Fá-lo distinguindo Dolores por fim da­quele grupo de ninfetas que definira com traços e lugares-comuns ― ao mesmo tempo que se subtrai a si mesmo da associação de ninfoleptos de que Clare Quilty seria ainda e sempre membro. Assim, no que toca à luta entre o dra­ma­turgo e o poeta que de facto vem encerrar Lolita, parece fazer agora mais sentido lembrar que Quilty não chega a actuar ― nem enquanto artista, nem enquanto homem ― como indiví­duo: a sua arte, tanto a teatral quanto a sexual (cf. 2000: 276), encontra-se de tal forma depen­dente da actividade de grupo que em nenhum dos dois palcos ele consegue sobreviver so­zinho. O que talvez explique que, ao tocar educadamente à porta de sua casa antes de o matar, Humbert registe, numa frase: «Re-nobody» (idem: 294). Mas talvez expli­que melhor ainda que no veredicto com que Humbert fecha as suas memórias ele se auto-sentencie única e exclusivamente por violação, não por homicídio; e que a pena a que se condena tenha um número preciso de anos: 35.

[1] “Humbert’s murder of Quilty is at once the most curious and the least persuasive episode in Lolita (Bloom, 1987: 3).

[2] Alfred Appel qualificou mesmo esta decisão como «the most dramatic shift in the film» (cf. 1974: 229).

[3] Trata-se ainda do ano do casamento de Humbert com Valeria Zborovski ― ou, se se preferir uma perspectiva mais abrangente, do último ano da verdadeira vida de Sebastian Knight, como se lê quase no fecho desse relato.

[4] John Hollander terá sido um dos primeiros leitores a escapar ao impacto da leitura do romance totalmente orientada para a relação entre Lolita e Humbert, tendo conseguido apreciar devidamente o bom humor deste logo em 1956.

[5] «Now, a decade and a half later, these war years turned out to be an exasperating obstacle; they seemed an encroachment upon creative freedom, for in every book describing the gradual develop­ment of a given human personality one had somehow to mention the war, and even the hero’s dying in his youth could not provide a way out of this situation. There were characters and circumstances surrounding his son’s image that unfortunately were conceivable only against the background of the war and which could not have existed without this background. With the revolution it was even worse. The general opinion was that it had influenced the course of every Russian’s life; an author could not have his hero go through it without getting scorched, and to dodge it was impossible. This amounted to a genuine violation of the writer’s free will.»

[6] A abertura de The Real Life of Sebastian Knight autoriza a fantasia aliterante no seu efeito visual ―  «Her name was and is Olga Olegovna Orlova—an egg-like alliteration which it would have been a pity to withhold» —, também na sua reformulação subsequente: «Life with you was lovely—and when I say lovely, I mean doves and lilies, and velvet, and that soft pink “v” in the middle and the way your tongue curved up to the long, lingering “l.” Our life together was alliterative (…)» (2011).

[7] Maurice Couturier dedicou um estudo completo à discussão deste tipo de leitura (cf. 2014).

[8] Seria naturalmente ocioso reconstituir as inúmeras alusões e referências que pontuam esta e as outras obras de Nabokov. No caso de Lolita, o trabalho foi feito com grande detalhe por Alfred Appel Jr., na sua edição de referência The Annotated Lolita (cf. também Proffer, 1968).

[9] Penso especificamente em pontos característicos do pensamento de Stevenson como o que ele define a partir do conceito de web e expõe em «On some technical elements of style in literature»: «The web, then, or the pattern: a web at once sensuous and logical, an elegant and pregnant texture: that is style, that is the foundation of the art of literature» (1905: 14).

[10] No contexto original, a imagem surge devidamente rodeada pela referência a Pascal feita nos seguintes termos: «There is, I believe, somewhere in Pascal a wise thought (…). I have never read Pascal nor do I remember where I pinched that quotation.» Trata-se muito provavelmente da adap­tação do fragmento 1/38 da Vanité do filósofo francês, onde se lê «Deux visages semblables dont aucun ne fait rire en particulier, font rire ensemble par leur resemblance.»

[11] Por oposição ao muito mencionado rascunho fraco que encontramos em The Enchanter (1939), divulgado na sua primeira edição em inglês apenas em 1985 pela mão de Dmitri Nabokov, e em cujo comentário de 1959 Nabokov assumira a quase contemporaneidade da escrita com o «first little throb of Lolita», considerando-o assim «a kind of pre-Lolita novel» (cf. «On a book entitled Lolita», 2000: 311). Em todo o caso, e malgrado a pouca relevância literária de The Enchanter na obra, há nele uma habilís­sima gestão do movimento paronímico que se dá entre gaze e haze que permite restabelecer o essen­cial da ligação entre o originalmente intitulado Camera Obscura e Lolita.

[12] Alfred Appel Jr. nota precisamente que Humbert e Lolita se conhecem em 1947, ano da publi­cação de Bend Sinister, «thus sustaining the author’s “fictive time” without interruption» (apud Nabokov, 2000: xxix).


Referências

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