Os quatro elementos

A Rolland de Renéville

Se digo Fogo, o meu corpo é por chamas cercado
Digo Água e o Oceano vem morrer a meus pés
Navio vazio imerso num sólido cristal
Escavada múmia pelos gelos tomada e digo Ar

 

Terra, e o náufrago cria raízes e adormece
Sob as folhas ao vento da árvore do seu corpo

 

Da sua boca o sonho gera um ramo de ouro
Da sua boca terrosa expiram os seus pulmões
Devolvendo ao céu uma troante frondosidade

 

Seara vermelha ao sol da meia-noite e morte

 

Ao vento Norte 

Vives, não vives, rastejas por um pedregal
Prisioneiro de um sonho
Amante de um ideal
Esmagado à partida
Pela excessivamente pesada amarração
De mármore da tua morte
Que há milénios procuras ululando
Nos destroços e cadáveres do teu corpo
Alerta espantalho permeável ao vento Norte
Dançando e suando de vertigem
Sobre um solo de ar fugidio onde o teu peso é o medo

 

Coração estourado e vazado de sangue e soluços
Apanhado no ar gelado
Sob um céu empedrado
Eternamente emparedado num álgido cristal.

 

A cabeça coroada 

Delírio, dom troante do sonho e das espumas
Anel de onda vibrante no fundo da porvindoura virgindade
Entre mim e o nada que me assombrava de verdade
A minha cabeça balançando ao vento num espanejar de penas
Cintilando com o embate dos martelos sobre a bigorna apenas
Deslumbra-se com o seu destino de ouro puro imerecido e grave
O assalto dos martelos cinge e atroa
Sobre a sua fronte forja a sua coroa
Círculo ardente, infame sacerdócio do infortúnio mor
À custa de grandes golpes de dor gotejante carmim
Temo que por força do esplendor
A cabeça enfim exploda.

 

Bouquet sobre o meu túmulo 

Em tempos tive um sonho. Resta-me ainda um caixão.
O meu sonho está morto; dorme, envolto no seu sudário
E eu permaneço… no meu túmulo solitário
Ponham a Violeta de luto então.

 

Senti por vezes impulsos místicos rumo ao vazio
Do Céu. Lamentavelmente, o voo da minha alma foi interrompido.
Guardo em mim uma memória triste, mas apaziguadora:
Amo a ascensão do lhano Lírio!

 

Ele faz-me recordar o protoplasma original.
Procurei o segredo nos arcanos sombrios.
Penetrei amiúde nos teus Sonhos diáfanos
Ó Brama, grande Lótus intemporal!

 

E desejei o esquecimento no meio da rubra orgia
E o vício corroeu as fibras do meu coração.
Que venha enfim adormecer-me a profunda letargia:
O ópio da Papoila que embala sem senão.

 

Em breve, viverei para sempre sob a estela do zelo.
O meu espírito entre os desvanecidos espectros dançará.
O meu corpo do repouso impassível por fim saberá,
Coroado com o macilento Asfódelo.

 

Mas ai como odeio estas flores, com um ódio imortal!…

 

Homenagem fraterna
ou
A besta imunda

I

Vocês são buracos de sombra
Escavados em forma de homens
Grosseiramente esculpidos segundo a efígie da figura humana
Talhados no branco pintado do espaço sem limites
E olham-me com grandes olhos vazios

 

Esse olhar onde procuro em vão
Qualquer coisa de humana impressão
Esse olhar é terrível

 

Enquanto aí procurava a velha consciência
Enquanto aí observava a emergência de um ser
Inclinava-me pejado de amor
Na direcção do meu semelhante tão desafortunado como eu
Prisioneiro da cega masmorra do desespero

 

À luz moribunda da encantadora flama
Não vi mais do que um véu escuro e opaco
Que nem mesmo o vento poderia levantar.

 

II

Noite maldita para sempre interdita entre todas
Noite onde o fogo sangrento do meu olhar perfura
Esse lago de lama obscura absurda e vertical
E todo o vidente vacilará diante deste espectáculo
No fundo dos olhos que acreditava de um irmão sem vestígios de alma
Nem o santo estigma nem a consagração infame
Que outrora marcaram o homem primevo

 

No seu lugar um buraco voraz
Um abismo de escarranchadas goelas
Uma ausência de respiradouro, cega sede de presa
A rapacidade nua
A loucura e o horror do caos que abunda e devasta em volta
O bestial contágio do informe
A ganância de quem não é
A sucção da boca vazia de sombra dos mortos
A podridão negra com relâmpagos de fósforo
A vertigem sem fundo do nada que devora
Que jamais suprirá a sede do buraco boquiaberto
Um relancear de todo o céu a arder de desesperança
O fogo de um olho onde todo o céu se desespera
Mistério de amor demasiado semelhante à morte.

 

As Visões 

Momento único de consciência deslumbrada
Onde o próprio silêncio é a voz inusitada.
Nada, sou o átomo indo para a Unidade;
Sou o ser que vibra em uníssono com os mundos,
Luz original em mim. Tanta clareza,
Jorrada no seio das noites de tenebrosas vagas,
Concedeu-me deus durante o estupefaciente assalto do relâmpago.
Mas, fulminado pela brancura do fogo tremendamente claro,
O coração desfalece tomado pelo angustiante êxtase.

 

O horror — enquanto apagador de velas — vem abafar a fase.

 

II 

Oh, caído, acocorado em adorações!
Depois, a grandes jorros, eis que rolam as visões:

 

Sobre um fundo tenebroso, assim como um polvo se move airado
Um grande lírio negro faz oscilar o seu pistilo avermelhado.

 

A lua — úlcera no seio do céu — sobre o pântano seduz
Destilando lentamente uma gota de pus.

 

Máscara pálida e inchada do morto cuja alma suporta por imposição
O sofrimento do cadáver e a sua podridão.

 

Serpente branca e cautelosa que se estende até ao infinito e extemporâneo
No calabouço do meu abismo subterrâneo.

 

Silêncio do combate bestial dos monstros: fresco
Alucinante onde o sangue esguicha em arabesco.

 

Vertigem do nada: horror absoluto.
A forma desvanecida deixou as trevas
Cujo frio vem fortemente raspar as vértebras:
O espírito cambaleia e faz a oblação do coração
Às duas divindades: a Loucura e o Medo.

 

É sempre meia-noite no mostrador da minha alma,
O dobre do infinito lugubremente o clama.
O meu corpo cai para todo o sempre com terríveis sobressaltos:
Queda sibilante no fosso abissal do caos.

 

III 

Fantasmas, pesadelos, filhos de noites de neurose,
Bastardos do Sonho constelado de paraísos,
Sarabanda dos monstruosos deuses de outrora,
Seguidos pelo louco rebanho das suas metempsicoses,
Infernos vivos roendo o cérebro dos amaldiçoados,
Eu vos prefiro ao menos, misticidades selvagens,
Marcas dos santos delírios de tempos antigos e de voragem
— Antes que a hora enfim badale por ser igual
Ao Incriado que não conhece bem nem mal —
Até à razão lúcida, impotente no que toca a conhecer
Os velhos segredos do além e do não-ser:

Este hediondo dilema em toda a sua esterilidade,
Para preencher os buracos negros deles, que quer o homem que ele faça de adventício?

«Ser matéria ou o não ser», ou este suplício

«Viver em abstracção e para toda a eternidade!»

Por mim, noites em massa, desabem sobre a claridade!

 

O globo de cristal 

No fundo de um antro onde se abatiam as trevas,
Próximo de um globo de puro cristal,
Eu suplicava: «Satanás, tu que celebras
As sentenças do destino brutal,
Mostra-me então, por um momento, o símbolo
Que me representa em espírito.»
Ele aceitou. Eis, visão louca,
O que vimos na bola oca:

 

Firmamento baixo. Ao longe, o vazio horizonte
A um pálido oceano se juntava.
Um grande petrel, ao invés de branco, lívido,
Meio depenado, sangrante,
Errava, berrante, ao longo de álgidos areais.
O seu sangue fluía com a sua vida
Por riachos negros que se lançavam incessantemente
Entre o Océan de Folie[1]!


[1] Do francês: Oceano de Loucura — em itálico no original. (N. do T.)

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