A 1 de Fevereiro de 1907, exactamente no mesmo dia em que Le Figaro publica «Sentimentos Filiais de um Parricida», Proust escreve duas cartas a Gaston Calmette, director do jornal, agradecendo a publicação, mas lamentando ver o seu «encantador Figaro obstruído pela massa compacta do meu pesado artigo». No mesmo mês, numa carta ao crítico de arte Auguste Marguillier, Proust descreve o artigo como uma coisa feita «sem esboço, sem qualquer correcção e onde as repetições do improvisador e as falhas do paginador se unem para um resultado desastroso». Mais tarde, já em Dezembro do mesmo ano, escreverá ao seu amigo de longa data Daniel Halévy a dizer que «Sentimentos Filiais» é «tão mau que eu não o quis assinar», classificando-o até como de longe o pior entre os artigos que escrevera para o jornal. Apesar desta aparente rejeição da criatura pelo próprio criador, parece-me possível argumentar que este texto é um dos mais importantes da obra proustiana, funcionando como uma importante chave de leitura para Em Busca do Tempo Perdido, que Proust começaria dois anos depois e que escreveria durante todo o resto da sua vida.

Entender este texto implica, todavia, compreender o contexto em que foi escrito, bem como os motivos que levaram Proust a, na sua correspondência, tão violentamente rejeitar aquele que aqui argumento ser um dos textos decisivos para a escrita de Em Busca do Tempo Perdido. Na carta a Calmette acima descrita, Proust começa por atacar o texto e elogiar o jornal onde este foi publicado mas de seguida, depois da costumeira lisonja inicial ao seu destinatário que tem sempre como objectivo último obter o favor que invariavelmente é pedido algumas linhas abaixo, avança para o que realmente lhe interessa: manifestar o desagrado com a decisão editorial de Cardane, director adjunto do jornal, que decidira suprimir o último parágrafo por questões morais, parágrafo esse que Proust considerava essencial («poderia cortar tudo o que desejasse desde que não omitisse as últimas linhas»). A importância destas derradeiras linhas não se prende com o elogio do parricídio nelas contido, uma vez que em muitos outros sítios esse elogio é mais evidente e exaltado (veja-se, por exemplo, o penúltimo parágrafo). O último parágrafo é importante por permitir, nas palavras do autor, que «a palavra parricida que tinha aberto o artigo o concluísse». Proust parece aqui, portanto, pela primeira vez encarar a sua obra com um sentido forte de unidade, em que o princípio e o fim se tocam, tornando-se enfim clara a ideia de o parricida não ser o último dos homens, mas antes alguém com verdadeiros sentimentos filiais, talvez mais sinceros e mais fortes do que os de qualquer um de nós. Uma unidade que retomaria depois ao escrever Em Busca do Tempo Perdido.

Na carta a Marguillier, o lamento de Proust é de fácil compreensão. Não haverá talvez na história da literatura nenhum escritor tão obcecado com o processo de revisão das provas, que com Proust poderia durar anos, pelo que não é de estranhar o lamento por ter tido apenas três horas para concluir o artigo escrito a convite de Calmette.

Mais demorada será, contudo, a justificação para a carta a Halévy, visto ser esta a mais significativa das três. Depois de sugerir que «Sentimentos Filiais» seria o seu pior texto até à data, Proust justifica-se, escrevendo: «não digo que não tenha ideias bastante verdadeiras. Mas fazem de tal forma parte do meu pensamento que podem ter para mim uma espécie de banalidade que não teriam para uma outra pessoa». Proust sugere então que não consegue gostar do texto por este estar demasiado próximo de si mesmo e das suas ideias, por se expor demais. Seria interessante, mas não pertence ao escopo deste texto, analisar o que leva Proust a tantas e tantas vezes repudiar aquilo que lhe é próximo, parecendo sentir aquilo que Wilde descreveu como a raiva de Caliban ao ver num espelho o seu rosto, pelo que irei apenas procurar explicar, tanto quanto possível, o que leva a que Proust encare «Sentimentos Filiais» como esse tal espelho.

Em Junho de 1905, Proust concluíra a tradução de Sesame and Lilies, de Ruskin. Em Setembro do mesmo ano, a sua mãe morre, levando-o a retirar-se completamente quer do convívio com os seus conhecidos, quer da escrita, sendo «Sentimentos Filiais» o primeiro texto que escrevera em ano e meio. Como seria de se esperar com Proust, marcado por um acontecimento tão traumático e por um interregno tão prolongado, este regresso literário tem um carácter marcadamente autobiográfico, expresso não só no parágrafo inicial ou na história do «amigo» que se interessara por um funcionário dos caminhos-de-ferro.

O lado autobiográfico do texto pode, aliás, ser compreendido se analisarmos com detalhe algumas das inúmeras citações com que Proust o povoa. Antes de recorrer às palavras de H.G. Wells para descrever os olhos como «máquinas a explorar o Tempo», Proust avisa-nos que irá tresler o escritor inglês. Ao citar Michelet acerca da morte de uma medusa, Proust imediatamente desacredita a verdade da afirmação de Michelet, adaptando-a, no entanto, a uma realidade diametralmente oposta. O que Michelet diz acerca de medusas só pode ser levado a sério, segundo Proust, se aplicado não a medusas, mas a pessoas. Até quando recorre ao texto do Figaro que dá a notícia do crime de Henri van Blarenberghe, Proust acrescenta uma significativa torção. Quando cita directamente o jornal, Proust conta que os empregados «viram a senhora van Blarenberghe, de rosto contorcido de terror, descer duas ou três escadas a gritar: “Henri! Henri! Que foste fazer! (qu’as-tu fait?)”». No entanto, em todas as outras ocasiões em que se refere às últimas palavras da senhora van Blarenberghe, Proust acrescentará um de moi que lhe permite colocar van Blarenberghe na posição universal de parricida. Ao transformar o grito desesperado da mãe («que me foste fazer!»), Proust está a recusar ver Henri como um lunático, como alguém que por um segundo perdeu o juízo, preferindo encará-lo como o tal parricida movido por amor filial que, segundo Proust, todos nós somos, como alguém que só se distingue de nós por ter tido a coragem de aceitar a monstruosidade do mundo sem fingir não a ver. Retirando o foco da loucura, Proust chama a atenção para a sua ideia (que já explorara em «Confissão de uma Rapariga» e que irá desenvolver ao longo do seu romance) de que envelhecer é sempre uma forma de parricídio. Este de moi está, assim, a fazer de Henri já não um «criminoso brutal», mas antes «um nobre exemplo de humanidade (…) um homem de espírito esclarecido, um filho ternurento e piedoso». Está a afastá-lo de Ajax para o aproximar de Édipo.

Proust está desta forma a fazer com Wells, Michelet e van Blarenberghe aquilo que mais tarde faria com Sainte-Beuve, Flaubert e Swann. Está a utilizá-los, distorcendo-os sem pedir licença, para falar sobre si mesmo. Tal como fará com todas as personagens do seu romance, Proust está aqui a pegar em Henri van Blarenberghe e a usá-lo para contar a sua própria história, está a colocá-lo numa «religiosa atmosfera de beleza moral», equiparando-o a Édipo e a Orestes, os maiores heróis gregos, apenas para depois mostrar de que forma Henri é, na verdade, apenas uma versão de si mesmo. Porque a maior tragédia do mundo é sempre, para Proust, aquela que nos diz respeito.

O que aqui sugiro, então, é que Proust encara a literatura como uma maneira de subjugar o mundo, de dominar de tal forma tudo aquilo em que toca que as personagens (e até mesmo as pessoas, uma vez que Henri se parece mais com uma pessoa do que com uma personagem, apesar de a distinção entre os dois termos ser já de si bastante ténue), os escritores e os acontecimentos se alteram radicalmente e se subjugam a Proust, transformando-se agora em meras imagens de si mesmo. Henri já não é Henri mas Proust, Michelet já não diz o que quer dizer mas aquilo que Proust deseja que ele diga.

Proust sugere por diversas vezes ao longo do seu artigo que também o passado pode ser revisitado e reinterpretado, não estando a salvo da sua intervenção. À medida que vai sabendo mais coisas sobre Henri, Proust vai retocando a «imagem na [sua] lembrança, ao interpretar, conferindo-lhe uma sensibilidade mais profunda, uma mentalidade menos mundana, alguns elementos do olhar ou dos traços que poderiam comportar uma descrição mais interessante e mais generosa do que aquela em que tinha ficado inicialmente». Muitos críticos proustianos argumentam que o «tempo perdido» a que o título do seu romance faz referência é uma espécie de entidade mística para sempre desaparecida (ainda que em circunstâncias muito particulares possa ser reencontrada). Ao lermos frases como a acima citada, percebemos o erro desta ideia. O passado não é um lugar etéreo e estanque, ao qual regressamos por permissão divina e mediante a reprodução dos gestos certos, mas antes uma coisa como outra qualquer, que novos dados permitem interpretar de uma nova forma e cujo verdadeiro rosto permanecerá para sempre desconhecido. Estes dons que atribuo a Proust não devem ser, ainda assim, lidos como únicos do escritor, que o elevem infinitamente acima de todos nós, comuns mortais, mas antes como uma descrição banal daquilo que somos. Todos nós, para Proust, treslemos o mundo para nos lermos a nós próprios nele, todos nós, para Proust, reinterpretamos constantemente (com maior ou menor resistência) o passado, bem como tudo o resto, para que possamos chegar a uma descrição mais consentânea com o que sabemos, não sendo, portanto, neste sentido, a literatura uma actividade diferente de muitas outras.

A última ilação que se retira desta capacidade de domínio sobre todas as coisas é que, estando tudo ao seu dispor e sendo tudo susceptível de ser usado e adulterado pelo escritor para contar a sua história, Proust não é, contudo, omnipotente. Nas primeiras linhas, Proust parece estar disposto a escrever até que, através das suas cartas, a sua mãe esteja de novo viva, ainda que só por um segundo. Parece ter vontade de escrever tantas vezes em nome dos seus pais que leve a que estes ressuscitem. No entanto, ao escrever em nome deles, não percebe apenas que estes não viverão mais. Percebe também que, ao colocar-se a si na posição anteriormente ocupada pelos seus pais, se torna em certo sentido ele mesmo o responsável pela morte destes. No conto que de forma mais clara se relaciona com este texto, «Confissão de uma Rapariga», Proust conta a história de uma jovem que se considera também parricida por, enquanto tinha relações sexuais com um amante, ter sido apanhada pela mãe que sofrera em consequência desta cena de voyeurismo involuntário um ataque cardíaco do qual viria a morrer. O que se pretende mostrar neste conto é precisamente o mesmo que nos está a ser mostrado em «Sentimentos Filiais»: que crescer é abandonar a posição de filho, matando assim os nossos pais. Porque escrever é, para Proust, um processo infinito de morte e ressurreição daquilo que amamos, uma actividade em que o que amamos ressuscita diante dos nossos olhos por um instante apenas para que o tenhamos que matar mais uma vez.

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