À medida que envelhecemos, os nossos heróis mudam. Todos nós tivemos a experiência de conversar com amigos que cresceram connosco e de perceber que o Olimpo que, na infância, estes reservavam ao Bruce Wayne é agora ocupado por um qualquer Elon Musk. O mesmo acontece com os nossos heróis do desporto. Se me perguntassem aos seis anos, o desportista que eu mais invejava e admirava era o Rui Costa. Hoje, se me perguntarem quem é o atleta que eu mais gostaria de ser, responderia sem hesitar: Eddie The Eagle.

Eddie The Eagle Edwards é uma lenda do desporto britânico. Em 1986, Eddie decidiu abandonar o ski alpino para se dedicar aos saltos de ski (uma modalidade que nunca tinha praticado antes), tendo participado dois anos depois nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Calgary, no Canadá, onde viria a bater o recorde britânico em duas variantes da modalidade. Talvez a admiração do estimado leitor possa diminuir ao saber que Eddie só bateu este recorde porque em toda a história do desporto britânico apenas um outro atleta amador competira nesta modalidade, em 1929, e que Eddie se aproveitara de uma lacuna nas regras para poder participar nos Jogos Olímpicos sem ter qualquer competência ou talento para o fazer. Ou ao saber que Eddie saltou menos vinte metros do que o penúltimo classificado e menos cinquenta metros do que o primeiro. Ou, talvez, ao descobrir que, na pontuação técnica, Eddie teve metade dos pontos do penúltimo e quase quatro vezes menos do que o vencedor. No entanto, seria um erro encarar Eddie como apenas uma fraude e voltar novamente os olhos para os mais extraordinários vencedores da história do desporto. Talvez o melhor seja contar a história toda.

Eddie The Eagle era um simpático estucador de Gloucestershire, de óculos de massa, com um problema na fala e um queixo extraordinariamente saliente. Tudo menos o arquétipo de um atleta olímpico. Em 1986, Eddie percebeu que nunca conseguiria obter nem os mínimos olímpicos nem os patrocínios necessários para se qualificar para a prova de downhill de Calgary e assim cumprir o seu sonho de infância: participar numa edição dos Jogos Olímpicos. Qualquer um baixaria os braços, mas não o grande Eddie The Eagle Edwards. Eddie apercebeu-se nesse momento, a menos de vinte meses do início dos Jogos de Inverno, que poderia cumprir o seu sonho se conseguisse um único salto válido com mais de sessenta metros (o recorde mundial era, em 1987, de cento e quarenta e dois metros), uma vez que a comitiva britânica tinha direito a uma vaga que à partida ficaria, como em todas as edições anteriores, por ocupar por falta de atletas.

Eddie juntou as suas poucas economias e mudou-se para os Estados Unidos, onde se via forçado a usar seis pares de meias para caber nas botas que conseguira que lhe emprestassem e a prender o capacete com um pedaço de cordel, o que levava a que por vezes o próprio capacete conseguisse alcançar uma distância maior do que a do meu herói. Reza a lenda que Eddie terá saltado durante duas ou três horas da plataforma dos quinze metros antes de decidir que estava pronto para passar para os quarenta metros. Durante esse ano, Eddie deslocou um maxilar, rasgou os ligamentos do joelho e partiu o nariz, a clavícula e os dentes. Nada de espantar numa modalidade que consiste em arremessar o nosso próprio corpo de uma ribanceira abaixo a cem quilómetros por hora. Mudou-se depois para a Finlândia, onde, para poupar dinheiro, comia o que encontrava no lixo e vivia num manicómio, rodeado de doentes psiquiátricos que lhe falavam numa língua que não conseguia compreender. Tudo para cumprir o seu sonho.

Eddie conseguiu então, no meio de todas estas adversidades, fazer um salto válido de sessenta metros, qualificando-se gloriosamente para Calgary. Um leitor mais carrancudo argumentaria agora que provavelmente sessenta metros será pouco mais do que a distância que um corpo percorreria de qualquer forma se lançado a cem quilómetros à hora de uma plataforma a setenta metros de altura. Talvez. No entanto, Eddie teve a extraordinária coragem de oferecer o seu corpo a essa experiência desumana a que só atletas profissionais se sujeitam voluntariamente.  Eddie decidiu que aquilo que queria fazer durante um ano era lançar-se todos os dias, várias vezes ao dia, de uma rampa de onde inevitavelmente cairia num monte de gelo à velocidade a que um carro circula na auto-estrada. Não estou certo de que heroísmo seja a palavra adequada para descrever esta decisão, mas ainda assim curvo-me em admiração.

Já foi dito que Eddie Edwards só se teria tornado um herói no Reino Unido, e a verdade é que é necessário um sentido de humor bastante peculiar  para se idolatrar aquele que foi possivelmente o pior desportista olímpico de uma modalidade sem grande visibilidade, um herói a quem ainda para mais falta o exotismo, digamos, da equipa de Bobsleigh[1] da Jamaica que, também em Calgary, representou pela primeira vez o país nos Jogos de Inverno e se despistou a alta velocidade numa das primeiras curvas das voltas de qualificação. No entanto, não me parece que tenha sido o fracasso de Eddie a conferir-lhe o estrelato, não me parece que tenha sido a sua nacionalidade a torná-lo numa lenda e, acima de tudo, acredito que, como o próprio afirma, a história do mítico Eddie The Eagle não é uma comédia, mas uma epopeia. Vamos por partes.

A história de Eddie não pode ser lida como a de uma lenda britânica: Eddie nunca teve qualquer apoio do seu país antes dos Jogos Olímpicos e mesmo durante os Jogos teve de saltar com um capacete italiano e com skis austríacos. Quando chegou a Calgary, Eddie era já uma celebridade não só em Inglaterra, mas em todo o mundo, sendo que as suas conferências de imprensa foram as mais concorridas dos Jogos e que, além disso, foi o único atleta a ser referido explicitamente no discurso de encerramento do evento, para gáudio da multidão que gritou o seu nome.

Eddie não deve também a sua popularidade ao fracasso da sua missão porque não falhou. Não só cumpriu o seu sonho de chegar à maior competição mundial de desporto, como conseguiu não cair em nenhum dos saltos da plataforma dos setenta metros, o que lhe permitiu, de acordo com as regras dos Jogos, competir também na rampa dos noventa metros, ainda que nunca antes na sua vida tivesse saltado de tão alto. Quando todos esperavam que desistisse, o intrépido prognata trepou ao topo da rampa, lançou-se sem temer e, por duas vezes, sobreviveu à queda em pé. Por duas vezes, como famosamente foi dito por um dos comentadores em directo, the Eagle has landed. E este improvável e extraordinário sucesso, em vez de o afastar da ribalta, só lhe trouxe mais admiração.

Provar que a história de Eddie não é uma comédia talvez seja mais difícil, particularmente se tomarmos como ponto de partida uma das histórias mais divertidas da sua aventura. Ao chegar a Calgary, o dedicado atleta abriu involuntariamente a mala ainda em cima do tapete de recolha de bagagem, espalhando-a. Incapaz de virar a cara à luta, Eddie trepou para o tapete e apanhou as cuecas e meias que já circulavam por entre a bagagem dos outros passageiros. Mas o melhor ainda estava para vir. À saída do aeroporto esperavam-no uma televisão canadiana e um grupo de fãs (curiosamente canadianos e não britânicos), com uma tarja onde constava pela primeira vez a alcunha que o imortalizaria: Welcome to Calgary, Eddie The Eagle. Entusiasmado pela recepção, apressou-se a caminhar para a tarja, sem reparar que as portas automáticas estavam avariadas. Ainda o talentoso míope mal tinha aterrado na terra que o consagraria e já tinha arejado a roupa interior, rebentado com uma porta de vidro e, com isso, partido os skis que trazia aos ombros. Desta história, mais do que a comicidade, retira-se um outro aspecto, muito mais relevante. Eddie não representa o homem comum, representa ainda menos do que isso. Eddie é um pobre rapaz, incapaz sequer de atravessar com sucesso uma porta ou de manter umas peúgas dentro de uma mala. Ainda assim, essa inaptidão para a travessia de portadas não o impediu de competir com os maiores de entre os grandes, não o impediu de alcançar o seu altamente improvável sonho, tal como não o impediu de se lançar do alto de uma montanha para a morte certa, quando nem sequer era capaz de ver um palmo à frente dos olhos, uma vez que os seus icónicos óculos de massa embaciavam no topo das rampas.

Quando eu era novo, o meu maior sonho era tornar-me capitão do Benfica e vir a levantar uma Liga dos Campeões como via nas imagens do José Águas. A cruel e injusta realidade foi inserindo alíneas e alíneas a este sonho e hoje já só ambiciono que, um dia, uma indisposição passageira afecte parte do plantel e o Benfica se veja forçado a sortear à pressa um adepto para entrar em campo. De protagonista, passei a querer apenas ser o infiltrado sortudo. Eddie The Eagle é o infiltrado que eu sonho ser, mas o meu herói não ficou sentado à espera de que um azar acontecesse. Ainda mais inapto do que eu para a prática do desporto, Eddie saiu de casa, foi para outro continente, partiu dois ossos da cara e, sem dinheiro para ir ao hospital, atou um lenço à volta da cabeça e continuou a tentar. Eddie The Eagle é grande porque andou entre gigantes e não teve vergonha da sua pequenez; é um herói porque não teve medo de deixar tudo para ter a oportunidade de ficar em último numa modalidade da qual nenhum de nós conhece nem os maiores vencedores. Podemos olhar para Eddie Edwards como uma fraude e uma afronta ao desporto. Eu prefiro vê-lo como o tributo dos humanos aos deuses, como uma demonstração da infinita pequenez dos atletas amadores diante dos que dedicam a vida inteira a correr mais rápido, a saltar mais alto, a chegar mais longe. Podemos olhar para Eddie como o pior atleta da história a competir nos Jogos Olímpicos. Para mim, ele será sempre o mais extraordinário saltador de ski britânico de todos os tempos.

[1] Bobsleigh é um desporto colectivo (com equipas de dois ou quatro elementos) que consiste em descidas cronometradas de uma pista de gelo dentro de um trenó.

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