Em 1997, um ano após o maior sucesso comercial dos Bad Seeds até à data (Murder Ballads), Nick Cave lançava The Boatman’s Call.

The Boatman’s Call assinalaria uma viragem importante na discografia do músico australiano, não apenas por constituir o álbum mais melódico dos Bad Seeds até então, dando o tom para o seu sucessor (And No More Shall We Part), mas, acima de tudo, por criar uma disrupção no processo criativo de Nick Cave. Ao contrário do que acontecera até aí (e do padrão que se acentuaria com o protagonismo assumido por Warren Elis após a saída da banda de Mick Harvey e Blixa Bargeld), The Boatman’s Call seria composto quase exclusivamente por Nick Cave, sendo os Bad Seeds aqui apenas uma banda de apoio.

Além disso, o décimo álbum de estúdio da banda australiana constituiria também o momento em que as letras de Cave se afastavam de uma composição ficcional rumo a um processo crescentemente autobiográfico, que culminaria em Skeleton Tree (2016), onde a fina camada que separa o homem do artista parece colapsar, deixando um Nick Cave em ruínas a chorar de forma desamparada a trágica morte do seu filho, Arthur (veja-se, por exemplo, a canção «I Need You»). É, aliás, o próprio Nick Cave quem o afirma num dos Red Hand Files,[1] onde explica que The Boatman’s Call «was a record born of a personal misfortune that led to a departure from fictitious narrative songwriting into a kind of writing that was more autobiographical. Artistically, my hand was forced by a convergence of events that felt so calamitous at the time that I could not find a way to write about anything else».[2]

Contudo, a importância deste álbum vai bem para além das mudanças acima assinaladas, uma vez que em The Boatman’s Call Nick Cave parece aplicar na prática a definição de canção de amor que esboçaria dois anos mais tarde, quando convidado a dar uma palestra na Universidade de Viena acerca do seu processo criativo. Nesse texto repleto de alusões a músicas do álbum aqui em análise, Cave afirma que a sua arte se centrara, até então, numa tentativa de articular uma sensação quase palpável de perda que se apoderara de si.[3] Cave explica ainda que com a escrita de canções, em particular de canções de amor, mais do que aceder directamente a Deus, lhe era possível «write God into existence. Language became the blanket I threw over the invisible man, that gave him shape and form». Segundo Cave, a alegria do amor só seria verdadeira caso esta respirasse o mesmo ar que o mal (o que talvez justifique que The Boatman’s Call suceda a Murder Ballads), constituindo, portanto, uma espécie de exílio, metaforizado por Cave como o de uma Cinderela regressada à meia-noite às cinzas do seu mundo ou a dos cativos judeus que, junto aos rios da Babilónia, penduram as suas harpas e cantam cânticos de Sião.[4]

Antes de entrarmos, enfim, nas canções que compõem o álbum, seria importante explicar um pouco do seu contexto. Em 1996, Nick Cave divorciava-se da sua primeira mulher, a modelo brasileira Viviane Carneiro, com quem teve um filho, Luke. Pouco depois, começaria uma relação, pouco duradoura, com a cantora PJ Harvey, que participara numa das canções de Murder Ballads. Simultaneamente, Cave combatia o seu vício em heroína.

Parece-me que este prelúdio contém as chaves de leitura necessárias para compreender o que se passa em The Boatman’s Call, um álbum onde, como veremos, se vai contando uma história da primeira à antepenúltima faixa.

Na primeira e mais famosa canção do álbum, «Into My Arms», Cave apresenta-nos uma visão apoteótica da sua musa e do amor que une ambos. Ao longo da faixa, Cave elencará duas entidades em que assegura não acreditar («an interventionist God» e «the existence of angels»), pedindo-lhes, ainda assim, no primeiro caso, que não intervenha na sua musa e, no segundo, que a proteja e guie em direcção aos braços de Cave. No entanto, já nesta faixa é possível destrinçar pistas que apontam para a ruptura iminente, como sejam a insistência na ideia de um intervalo (que se acentuará ao longo do álbum), entre a musa e o autor, que nos permite inferir que a referida musa estaria, portanto, longe dos seus braços (e.g. «If He felt He had to direct you / Then direct you into my arms»). A música acaba com a evocação de uma terceira entidade, o Amor, em que, desta feita, Cave diz acreditar. Desenha-se aqui, portanto, um padrão que se acentuará ao longo de The Boatman’s Call: a equiparação entre Deus e a sua musa, neste caso consubstanciada na ideia de Amor.

Em «Lime Tree Arbour», somos em três momentos confrontados com a ideia de uma tragédia iminente, em primeiro lugar através da figura do boatman (uma alusão bastante explícita a Caronte); depois, através do momento em que este barqueiro e as mobelhas do lago buscam um refúgio («The boatman he has gone / and the loons have flown for cover») e, por fim, através da constante sobreposição das mãos dos amados, que, mais do que amor, parece indiciar um certo nervosismo diante de um fim iminente («I put my hand over hers»; «She put my hand over mine»). Além disso, importa relevar mais uma vez a aparente indistinção entre as figuras de Deus e da amada nos versos: «There is a hand that protects me / And I do love her so».

Segue-se «People Ain’t No Good», onde a alegada maldade intrínseca às pessoas parece apenas derivar de uma ruptura conjugal e da consequente queda da figura crística da amada, que na quinta estrofe é substituída por uma nova musa (isto é, PJ Harvey) («A different tree now lines the streets»). O mote para a canção é, evidentemente, o fim do casamento com Viviane Carneiro, surgindo o véu de noiva aqui metamorfoseado em cortinas, sacudidas pela tempestade («The windows rattling in the gales / To which she drew the curtains / Made of her wedding veils»). Importa ainda destacar os versos «The sun would stream on the sheets / Awoken by the morning bird»,[5] uma vez que este é o movimento poético que percorre todo o álbum: Cave não canta estas relações acompanhando-as desde o princípio, mas antes a partir do fim, rebobinando-as, o que faz desse fim uma consequência inevitável de um princípio auspicioso. Assim, não causa espanto que, como aqui acontece, a ordem dos acontecimentos seja invertida ou que, por exemplo, seja conferido às personagens o poder de condicionar até o surgimento e desaparecimento de um astro, dada a força do seu destino, como vemos nestes versos ou, mais explicitamente, em «Where Do We Go Now But Nowhere»: «In a colonial hotel, we fucked up the sun / And then we fucked it down again».

Em «Brompton Oratory», ao cantar que «No God up in the sky / No devil beneath the sea / Could do the job that you did / Of bringing me to my knees», Cave parece aludir a um hábito descrito em 20,000 Days on Earth: nos anos 90, antes de ir a Portobello Road comprar heroína, Cave passava pela igreja para assistir à missa, de maneira a acreditar que o mal e o bem se encontravam, de algum modo, em equilíbrio na sua vida. No entanto, parece de maneira mais explícita aludir novamente à equiparação entre Deus e a sua musa, que permeia o álbum e que atinge a apoteose nos versos: «The blood imparted in little sips / The smell of you still on my hands / As I bring the cup to my lips», onde carnalidade e espiritualidade se fundem, criando a «theology of the fleshed sacred» descrita por Lyn McCredden.[6] No entanto, o que acaba por resultar disto tudo é, novamente, apenas o cansaço provocado pela «absence of you».

Em «There is a Kingdom», Cave cita por duas vezes a Crítica da Razão Prática, de Kant, iniciando-se aqui, a meio de The Boatman’s Call, o único momento de esperança pura ao longo do álbum, que prosseguiria em «(Are You) The One That I’ve Been Waiting For?», onde a espera por uma nova amada é equiparada à espera da tribo de Israel pela chegada do Messias, deixando Cave a ansiar pelo cumprimento de profecias que parece reconhecer como apoteóticas e infantis («The stars will explode in the sky / O but they don’t, do they?»).

Como seria expectável, na canção seguinte esta esperança volta a ser estilhaçada. Em «Where Do We Go Now But Nowhere», encontramos Cave num banco de uma clínica de reabilitação a temer que a sua musa, agora grotescamente metamorfoseada num monstro delicado, o conduza a uma recaída e, em última análise, à morte («The kitten that padded and purred on my lap / Now swipes at my face with the paw of a bear»; «You come for me now with a cake that you’ve made / Ravaged avenger with a clip in your hair / Full of glass and bleach and my old razor blades / O where do we go now but nowhere?»). Esta representação da figura amada permite-nos recordar a característica central desta «theology of the fleshed sacred», deste Deus a que Cave procura dar forma: a entidade divina é, então, simultaneamente carne e espírito, mas, mais importante do que isso, respira o mesmo ar do que o mal.[7] Ainda assim, no final, o refrão em que Cave suplica à amada que desperte, possivelmente de uma overdose («O wake up, my love, my lover, wake up») transforma-se num subtil pedido de reconciliação («O wake up my love, my lover, make up»).

Nas duas canções seguintes («West Country Girl» e «Black Hair»), começamos por ser introduzidos à descrição de uma nova musa[8] para de seguida vermos essa mesma descrição transformar-se num pesadelo hediondo em que Nick Cave, depois de nos informar de que «all her mystery dwelled within her black hair», vê esse cabelo crescer infinitamente, sufocando-o e criando uma barreira inultrapassável entre Cave e a amada («to kiss her milk-white throat ,/ a dark curtain of black hair / Smothered me»), até que, por fim, esta o abandona («Today she took a train to the West»), encerrando assim a secção de The Boatman’s Call alusiva de maneira mais explícita a PJ Harvey.

No entanto, a narrativa do álbum só se concluirá na antepenúltima canção, «Idiot Prayer», onde Cave se despede do mundo dos vivos, imaginando-se a caminho do céu («They’re gonna pass me to that house above»). À medida que a canção progride, descobriremos que a sua musa está também ela morta, o que, a princípio, parece gerar a expectativa de um reencontro. Contudo, os termos carinhosos «my dove», «my love» e «dear» vão adquirindo um tom marcadamente irónico, acentuando a desilusão e o rancor relativos ao comportamento da amada («If you’re in Hell, then what can I say / You probably deserved it anyway») concluindo a canção com uma espécie de ameaça («We each get what we deserve / My little snow white dove / Rest assured). A morte da amada sublinha, então, o carácter imperfeito e provisório do Deus de Nick Cave.

Já na penúltima canção, «Far From Me», Cave reproduz o arco narrativo de todo o álbum. Começa pelo entusiasmo transcendental de «Into My Arms» («For you, dear, I was born»), passa pelo diagnóstico da bondade das pessoas que encontramos em «People Ain’t No Good» («In a world where everybody fucks everybody else over») e acaba nas acusações que ocupam as canções finais. Em The Secret Life of the Love Song, Nick Cave explicou que demorara quatro meses a escrever «Far From Me», correspondendo esse tempo à duração da relação com PJ Harvey descrita nessa música.[9] Ainda assim, «Far From Me» não é apenas um resumo de The Boatman’s Call, uma vez que a escolha do adjectivo neurotic em «You who are so far from me / (…) / Way across some cold neurotic sea» nos mostra, evocando a imagem aquática que percorre o álbum, que até o intervalo que separa a amada dos braços de Nick Cave faz parte do próprio compositor.

Por fim, na faixa final, «Green Eyes», vemos Cave nos braços de uma outra mulher, já sem a esperança de que esta seja «the one that I’ve been waiting for», mas apenas alguém que lhe permita esquecer o sofrimento causado pelas relações aqui descritas, mostrando-se um crente nu (talvez apenas coberto pelo tal «blanket» com que durante o álbum procurara cobrir a figura de Deus), «forlorn and exhausted, baby, by the absence of you»[10]

So hold me and hold me, don’t tell me your name
This morning will be wiser than this evening is
Then leave me to my enemied dreams
And be quiet as you are leaving, Miss.

[1] Newsletter criada em 2018 onde Cave vai respondendo a perguntas dos seus fãs.

[2] https://www.theredhandfiles.com/what-were-you-disgusted-by/. Red Hand File #132, Janeiro de 2021.

[3] Cf. The Secret Life of the Love Song (1999). Depois da morte do seu filho Arthur (e antes ainda da morte do seu filho Luke), Cave viria a repudiar parte do conteúdo desta palestra, nomeadamente as referências à necessidade de sofrer para compor, descrevendo-as como «the indulgent posturing of a man yet to discover the devastating effect true suffering can have on our ability to function, let alone to create». O sofrimento por que Cave passaria parece, contudo, torná-lo injusto para consigo próprio se considerarmos a quantidade assinalável de tragédias pelas quais já passara, entre as quais se destaca a morte do pai no dia em que a mãe o fora tirar da prisão, onde se encontrava momentaneamente detido por um pequeno delito.

[4] Cf. Livro de Salmos, Salmo 137.

[5] Em «There is a Kingdom», ouvimos que «Just like a bird that sings up the sun / In a dawn so very dark / Such is my faith for you», o que permite inferir que este pássaro representaria o próprio Cave e o seu poder impositivo, enquanto criador, perante o mundo. Não será despiciente recordar que, no filme 20,000 Days on Earth, Cave conta que superara o incómodo provocado pelo mau tempo de Brighton ao passar a escrever um diário onde anotava a meteorologia brightoniana, tornando-se assim criador do que o atormentava.

[6] Em «Fleshed Sacred, The Carnal Theologies of Nick Cave», p. 84 (extraído de Lovely Creatures, The Best of Nick Cave And The Bad Seeds (1984−2014).

[7] Não espanta, por isso, que uma das mais célebres lições de Cristo («A quem te bater numa das faces, oferece-lhe também a outra» (Lucas, 6;29) seja seguida por Cave, levando-o a sofrer às mãos da sua musa («I turn the other cheek and you lay into that»).

[8] Parece evidente tratar-se de PJ Harvey, pelas alusões à «heart-shaped face» (referida também em «Black Hair»), ao seu «widow’s peak» e, acima de tudo, por ser apresentada como «West Country Girl», dado a cantora ser precisamente de Dorset, situada na região de West Country, em Inglaterra.

[9] Cave confere uma agência à música, afirmando que esta se recusava a ficar concluída antes do fim da relação («Strangely, though, the song, as if awaiting the “traumatic experience” that I spoke of earlier to happen, would not allow itself to be completed until the catastrophe had occurred»).

[10] Versos de «Brompton Oratory».

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