O que leva um garoto de seis ou sete anos a decidir tornar-se «andrade», «lagarto» ou «lampião»? Normalmente o fator mais decisivo é a influência do pai, do avô, do irmão, do tio ou do melhor amigo — quem quer que ligue suficientemente à bola e tenha sobre aquele projeto de hooligan um ascendente mais pronunciado. A segunda variável, menos categórica mas ainda assim não despicienda, é o acumular de títulos que cada um dos três grandes consegue sazonalmente esfregar na cara dos adversários. Quando era miúdo, no rescaldo do grande jejum de 19 anos, seguramente metade dos meus colegas de escola eram benfiquistas; uns trinta anos depois o meu filho não tinha seguramente mais do que dois ou três na turma.

Não era fácil ser portista nos anos 70. Nem sequer no Porto. Mas, assim quis a fortuna, a minha história clubística foi feliz. E a fortuna começou por querer que os meus pais morassem num 3.º andar rigorosamente em frente ao antigo Campo da Constituição, que ainda hoje ostenta no frontispício um lindíssimo emblema em alto relevo, ladeado por enormes letras azuis que dizem Foot-ball Club do Porto. Assim mesmo, num inglês inusitado. Aquele símbolo e aquelas letras eram a primeira coisa que via todas as manhãs ao abrir a janela do meu quarto, e passei nesse campo muitas horas a jogar à bola e a ver jogos de hóquei em campo, das camadas jovens, dos torneios de reservas que nessa altura ainda havia, e até alguns treinos da equipa principal, que ali costumava treinar uma ou duas vezes antes de deslocações a campos pelados. Num desses treinos vi até, com muita emoção, o médio Celso Matos (um dos primeiros brasileiros a vestir a camisola da seleção portuguesa depois de naturalizado, e um dos heróis da campanha de 1977/78) lesionar-se com gravidade num joelho.

Não obstante tão ditosa circunstância geográfica, que dificilmente deixaria alguém indiferente, a verdade é que as coisas podiam ter seguido outro rumo. É que sou filho de um sportinguista que, apesar de nascido em Penafiel, escolheu o seu «grande» quando fez a tropa em Lisboa e frequentava o velho Estádio do Lumiar na companhia de um tio abastado, que o levava a desfrutar não apenas as emoções da bola, mas de alguns luxos e prazeres que lhe estavam associados — das lautas ceias pós-prélio ao convívio próximo com a gente chique que desde sempre trajou de verde e branco. Mas como o meu pai gostava bastante de ver futebol, e as transmissões na TV eram na altura um capricho raro e muitíssimo incerto, fez-se sócio do FCP quando aqui assentou arraiais e raramente falhava um jogo nas Antas.

Foi com ele que pela primeira vez, num 17 de abril de 1977, me sentei nas bancadas de cimento onde me sentaria para cima de duzentas vezes, até que, já nos anos 90, o cimento deu lugar às cadeiras de plástico — muito mais práticas, reconheçamo-lo, para incendiar ou arremessar para dentro do campo. Nesse dia, entrei no sítio que se viria a tornar no sucedâneo mais próximo, para um ateu, do local sagrado que um crente sente necessidade de frequentar regular e rotineiramente. Desgraçadamente, o espetáculo que nessa tarde me foi oferecido não fez justiça à solenidade da ocasião: empatámos a zero com o Estoril, dando sequência a mais uma época cinzento-escura em que seríamos terceiros, a 10 pontos do topo. Mas duas semanas depois pude festejar, e por três vezes. Foi num jogo com o Vitória de Setúbal, e o autor de 2/3 da cortesia foi um jovem chamado Fernando Gomes, que aos 20 anos cumpria já a terceira época a titular da equipa principal, e que nos anos seguintes conquistaria o direito inalienável e irrenunciável de ser tratado, para sempre, por «o bi-bota». Isto para além de ser, como é consabido, um dos primeiros futebolistas a batizar um corte de cabelo.

O momento em que pela primeira vez me senti como parte de uma equipa de super-heróis foi uma vitória por 8-0 sobre o Belenenses, ainda nesse final de época. Vejamos: estamos a falar de uma das quatro equipas que alguma vez tinha sido campeã nacional; e eu era um garoto de 7 anos que além de nunca ter visto o FCP ser campeão, nunca tinha sequer ido a Lisboa, cidade em relação à qual havia ainda uma subserviência saloia, herdeira de largas décadas de obscurantismo. Tudo somado, devo até ter tido dificuldade em perceber como é que um feito de tal forma gargantuesco não bastava, por si só, para coroar imediatamente aqueles jogadores imperadores de todo o mundo conhecido.

E agora passemos a coisas realmente importantes.

Esta minha iniciação ao desporto-rei coincidiu com o final da infame penúria que se arrastava deste 1959. É verdade que a minha tenra idade não me permitia ter uma noção de tempo tão alargada, e muito menos fazer ideia do que significavam 19 anos sem vencer. Mas, mesmo com os meus 7 ou 8 anos, ao longo dessa época fui-me apercebendo do nó na garganta daqueles milhares de pessoas com quem quinzenalmente compartilhava a arquibancada. Até para um miúdo era claro que estava ali em causa muito, mas muito mais do que onze pessoas crescidas a tentarem chutar uma bola para dentro de um retângulo com perto de 18 m2. E tudo foi amplificado pelo dramatismo da decisão desse Campeonato de 1977/78. Ainda hoje agradeço à providência, seja ela quem for, o ter-me permitido presenciar ao vivo aquele que foi porventura o momento mais decisivo do renascer do FCP, e sem o qual provavelmente não teria havido Vienas, Tóquios ou Gelsenkirchens, nem o único pentacampeonato na história do futebol português, nem nada do que se seguiu. O nosso 25 de abril, ironia do destino, foi a 28 de maio de 1978.

Depois de quinze vitórias consecutivas (inclusivamente em Alvalade, Bessa, Braga e Guimarães), empatámos em Portimão a quatro jornadas do fim e deixámos que o Benfica reduzisse para um ponto a diferença para o primeiro lugar. E como na antepenúltima jornada havia um FCP-Benfica, um descuido poderia deitar tudo a perder. Ora, logo aos três minutos houve descuido, e dos grandes: o nosso bom Simões, num alívio atabalhoado, fez um primoroso chapéu ao Fonseca e pôs-nos a perder o jogo e o campeonato. Seguiram-se oitenta minutos de tentativas infrutíferas até àquele momento mágico em que o Ademir, num pontapé de ressaca na sequência de um livre indireto, provocou uma das explosões mais intensas que alguma vez presenciaria num estádio de futebol — e já presenciei muitas. Mais do que fazer do FCP muito provável campeão, esse golo devolvia à cidade uma alegria que lhe escapava há quase 20 anos. E se, por absurdo, eu estivesse ainda hesitante quanto ao clube que seria o meu para toda a vida, a partir desse minuto 83 não havia retorno possível.

Aquilo que contei, e que resume em linhas grossas os condicionalismos da minha escolha, dá-se por certo todos os anos, de forma mais ou menos aproximada, com muitos adeptos de outros clubes. Quero eu dizer que o que nos diferencia enquanto adeptos não é a forma como escolhemos um clube, ou ele nos escolhe a nós, mas antes a forma como, após essa escolha, nos vemos quase obrigados a aculturarmo-nos ao que são, passe a expressão, os valores e a identidade do nosso emblema. E se tentar perceber seriamente os traços que distinguem as diferentes tribos é um exercício sociológico complexo, a verdade é que todos temos algumas ideias sobre o assunto, que normalmente enaltecem um estoicismo, resiliência, humildade e endurance próprios de um semi-deus. Eu também as tenho, naturalmente.

A meu ver, a particularidade mais característica de um portista é provavelmente o sentirmo-nos tão bem na pele do underdog. Gostamos de ser olhados de cima, com sobranceria, e de jogar contra as probabilidades, tal como os outros as avaliam. Gostamos de entrar em campo como um intruso indesejável, que nem convidado foi, e que só ali está para atrasar a festa. Foi assim que em 1978 pusemos fim aos 19 anos de «três para mim, um para ti» entre os dois grandes da capital. Foi assim que em 1987 ganhámos ao Bayern, quando, em todo o mundo, provavelmente só alguns portistas acreditavam seriamente que isso era possível. Foi assim que em 2010, depois de dois anos em que a imprensa desportiva e um órgão da Liga tentaram reduzir conquistas quase impossíveis a «fruta e café com leite», nos levantámos e tivemos uma das épocas mais memoráveis de sempre. Foi assim na maior parte dos nossos melhores dias.

Atenção: ser underdog não é ser Calimero; isso nunca fomos. É sentir-se confortável com o excesso de confiança dos outros, que tanta vez os faz baixar a guarda e os deixa mal preparados para quem é melhor do que parecia. Isto nota-se mais na nossa relação contra (não é com, é mesmo contra) os benfiquistas. Por serem, a uma grande distância, do clube português com mais adeptos, acreditam que gozam de vários direitos naturais (nomeadamente o de serem campeões), caindo, sem se aperceberem, numa bipolaridade muito divertida entre o orgulho em ser do «clube do povo» e a altivez senhorial de quem acredita, genuinamente, que por isso mesmo todos os outros lhes devem vassalagem. E porque representam muitos mais milhões de consumidores de jornais, rádio e TV do que os rivais, gozam permanentemente de um estatuto especial na imprensa (e de forma alguma apenas a desportiva), programas de opinião, blogues e redes sociais, em que tudo gira à sua volta. Para que fique claro o que quero dizer, vou citar aqui primeira página d’A Bola do dia 30 de agosto de 2003. O FCP tinha sido derrotado por 0-1 pelo AC Milan, na véspera, deixando fugir a Supertaça Europeia; e esse jornal, que jurei nunca mais comprar, colocou na capa uma fotografia de um vitorioso Rui Costa (na altura, jogador do Milan), com o título garrafal: «Super Rui!». Uma equipa portuguesa acabara de perder uma competição europeia, e o jornal desportivo português «de referência» fez a festa com o emigrante mais querido, vindo do clube do povo, precisamente porque sabia que era isso que o povo queria: a somar à alegria de o FCP ter perdido, esse venturoso desfecho deu-se às mãos (ou pés) de um «dos nossos».

Não me entendam mal: sempre tive por certo que a alegria com as derrotas dos rivais é parte essencial do ser adepto, e (salvo raríssimas exceções) não acredito na hipocrisia dos que dizem que «lá fora torcem sempre pelas equipas portuguesas». Mas aquilo que A Bola fez nesse dia, e em muitos outros, foi dizer bem alto que o país, e o povo, não queriam nada connosco nem com as nossas vitórias, usando uma arma que está vedada aos outros clubes: a de festejar publicamente a derrota alheia. Como termo de comparação, alguém imagina que, quando há uns anos o Benfica foi eliminado pelo Chelsea nos quartos de final da Champions, algum jornal se lembrasse de fazer uma manchete festiva com o golo do Raul Meireles? Claro que não. E é por isto, fundamentalmente, que o nosso discurso é tantas vezes um discurso de ataque. É que ninguém, além de nós próprios, valoriza os muitos títulos e troféus que ganhámos nas últimas três décadas. Para sermos ouvidos e sermos notícia, para sermos ouvidos e respeitados, temos de falar dos outros, normalmente atacando-os. Nem interessa que sejamos a única equipa europeia que em mais de 20 anos furou o monopólio dos big 4 na Champions, porque, «como toda a gente sabe», isso deve ter metido marosca.

Tudo isto me leva a um segundo ponto, próximo do anterior, mas que com ele não deve ser confundido.

A par do Vitória de Guimarães, o FCP é o clube português em que mais se sente a ligação entre o ser da terra e o ser do clube, de tal forma que os nossos adversários nos chamam «tripeiros», confundido a alcunha do portista com a do portuense. Muitos acreditam até, sinceramente, que isso possa ser entendido como um insulto por algum portuense ou portista, aliando à falta de conhecimento histórico um total desconhecimento do inimigo — basta ouvir a canção que se canta no estádio, cujo nome se roubou para dar título a este texto. Nós, portistas, somos «andrades», epíteto que é até o único, entre os adeptos dos três grandes, que não se limita a ser uma laracha com o nome do estádio ou a cor das camisolas. A fazer fé no que dizem as fontes mais credíveis, tem origem no nome de um fanático portista dos anos 30 que era proprietário do Campo do Ameal, à época um dos melhores do país. Ora, conta-se que esse Sr. Andrade preferiu mandar destruir as bancadas do seu próprio estádio a permitir que o Sport Progresso, legítimo arrendatário do espaço, impedisse o FCP de lá jogar os jogos grandes, como pretendia. Um andrade é assim alguém que tolera melhor a perda de um bem valioso do que uma afronta ao seu clube do coração. Por outras palavras, um portista.

Voltando atrás: se é certo que há no Porto muitos lagartos e lampiões, como já vai havendo um número razoável de andrades em Lisboa, a verdade é que vão sendo cada vez menos. E, com todo o respeito que me merece, o Boavista não tem dimensão para contrariar esta enorme identificação entre a cidade e a sua segunda marca mais reconhecida no mundo, depois do vinho. O portuense, e sobretudo o portuense com menos de uns 40 anos, é portista por vocação. O que me leva a desconstruir a falácia, tantas vezes repetida, de o FCP ser um clube «regional». Nada mais errado. Não sei exatamente o que é ou quais são os limites da «região Norte»; mas sei, de ciência certa, que não é maioritariamente portista. Basta falar com uma pequena amostra das gentes de Braga, de Famalicão, de Penafiel, de Vila Real ou de Bragança para que esse facto se torne evidente. Mais: duvido até que se encontre alguma zona maioritariamente portista fora de um perímetro de, digamos, uns 50 kms. à volta do Grande Porto. O FCP passa diretamente da dimensão local para a dimensão internacional: é popular na cidade e, à sua medida, no estrangeiro, e desprezado na «região» e no país.

Obviamente que este bizarro estado de coisas é, em boa medida, consequência da estratégia de confronto adotada nos anos 70 e 80 para contrariar o poder instalado nos dois grandes da capital. Retomando o que disse atrás, se só nos ouviam quando falávamos dos outros, não tivemos alternativa senão fazê-lo, hostilizando-os de forma acintosa, alternada e estrategicamente, e hostilizando os clubes de menor dimensão que com eles se aliavam. Mais, utilizando muitas vezes (algumas delas a despropósito e com fracos resultados) a cartada política da sublevação popular contra o centralismo de Lisboa.

Foi uma estratégia que inegavelmente deu frutos, sob a forma de títulos e projeção, mas que provocou uma generalizada antipatia exterior a título de dano colateral. Não tenho quaisquer dúvidas de que Pinto da Costa foi, durante largos anos, a personalidade mais odiada em Portugal, e isso decerto não ajudou a que o clube que ele transformou em porta-bandeira da cidade fosse estimado fora dessa mesma cidade. Mas a verdade, como tão bem disse o Mestre José Maria Pedroto, é que «enquanto fomos bons rapazes fomos sempre comidos». E não conheço nenhum adepto de bola que consiga dizer, com sinceridade, que prefere ser comido enquanto bom rapaz a ganhar com as mesmas armas dos outros, ainda que essas armas se situem na fronteira do ética e legalmente admissível.

Tentando sintetizar o que ficou dito, a essência do «ser andrade» é sentir que estamos sempre sozinhos contra um país futebolístico que nos olha com desdém e que não nos reconhece o mérito devido. Sei perfeitamente que os nossos adversários veem aqui mais um sinal de pequenez, tacanhez ou mesmo parolice; mas não duvidem que é esta a argamassa que nos une enquanto tribo, e a lata de espinafres onde desde há 40 anos vamos buscar forças.

Por isso, e por favor, continuem a olhar-nos de cima.

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