As perguntas que mais desalentam os professores são aquelas cuja inquietação que as motiva não é de natureza intelectual ou existencial, mas apenas administrativa ou utilitária. Mostrar mais empenho em saber quais os textos que saem no teste do que em compreender os textos lidos e discutidos em aula é revelador, parece-nos, de um desacerto do que deveria ser a hierarquia dos anseios estudantis. Ao transformar os autores em nomes próprios, tomando assim os seus textos como algo meramente instrumental, o estudante desvaloriza-os da mesma forma que desvaloriza o tempo e o espaço em que os lê, porque restringe o interesse das aulas à matéria que nelas é dada.

A quem perguntava pela matéria que seria objecto de avaliação, o professor António Feijó costumava responder dizendo que para o teste saía «tudo». Ora, dada a extensão praticamente infinita deste «tudo» (que naturalmente extravasa a lista de autores que constam no programa de uma certa disciplina), esta resposta pouco elucidativa denota um certo entendimento da aula como unidade fundamental da universidade, onde nada do que é dito pode ser entendido como dispensável.

 

A ideia de que uma aula é um espaço onde nada é, à partida, dispensável dá lugar a duas posições intrínsecas, a nosso ver, aos professores mais interessantes. Chamemos-lhe «posição cocktail» e «posição moinho». Estas posições eram sintetizadas em duas frases que o professor Feijó tinha hábito de repetir em aula: «Somos todos cocktails de conhecimento e ignorância» e «tudo é grist to the mill» (tudo pode ser útil, logo nada deve ser descartado a priori).  À primeira vista, pareceria razoável classificar a primeira posição como moral e a segunda como intelectual. Estas posições estão, para nós, rodeadas por uma estranha forma de teatralidade. Interessa-nos perceber como ambas as posições se relacionam entre si e com a noção de teatralidade que tentaremos esboçar.

 

A garantia de que ainda não ter lido Balzac não é uma desgraça, mas uma sorte, ou de que um episódio biográfico trivial pode servir de exemplo para comprovar as dificuldades que existem no processo de interpretação literária, surgia no decorrer de um qualquer excurso, motivado metonimicamente. Os desvios e apartes, em vez de implicarem uma perda de direcção, tinham a grande virtude de acrescentar outros significados aos textos lidos, porque faziam deles o ponto de partida de uma reflexão sobre música, política, futebol ou literatura. Estas reflexões podem ser resumidas na sua forma de descrever a prosa do filósofo Norte-americano Stanley Cavell: «dirigir a educação em praça pública». Esta educação não era só a dele, mas dos que o ouviam. Parte da pressão moral que era exercida pelo seu método de ensino passava por não assumir que quem o ouvia tivesse a necessidade de ter conhecimento na área de conversa. Neste aspecto, assemelhava-se a Cavell:

I am not assuming in the present book a familiarity with their [Heidegger and Wittgenstein's] writing. I shall cite them from time to time to intrigue those who have not yet experienced them, and, for those who have, to suggest contexts of their pertinence that may not yet have dawned. (Cities of Words, p. 14)

Um dia, a propósito de um verso de Whitman, citou indirectamente Agostinho da Silva ao dizer que não tinha a certeza de que vai morrer. Isto tem piada, mas, apesar de tudo, achamos que foi teatro. Como foi teatro imitar uma dança do cantor David Byrne no videoclip da canção «Once in a Lifetime» para explicar um outro verso do poeta norte-americano. Descobrir ou apontar para outros significados de coisas já existentes pode exigir uma postura semelhante àquela que o narrador do romance Les Grands Chemins (1951), de Jean Giono, descreve quando fala de uma personagem, o artista:

Ele mente. Ele mantém firmemente a sua mentira. Ele adorna a sua mentira. Estou habituado a isto e continuo a sofrer. Ele mente com desplante, por assim dizer. Eu sei que ele mente, ele não esconde isso e eu sei que, tendo ouvido esta mentira, nunca saberei a verdade. Mesmo se outro me contar, mesmo que cem outros me contassem. Mesmo se tiver provas. Tenho demasiado a ganhar em acreditar no que ele diz. E que é tão convincente. (pp. 68-9)

Na verdade, qualquer obra ficcional demonstra que a importância do que é dito não depende necessariamente da sinceridade com que as coisas são ditas. Pelo contrário, exagerar, forçar uma comparação ou criar um contraste artificial pode ser produtivo na explicação de certas coisas que não se deixam descrever facilmente de outro modo. Tal como acontece numa metáfora, temos demasiado a ganhar em acreditar no que ela nos diz, mesmo sendo mentira. Aliás, parece-nos que é precisamente esse desvio que, paradoxalmente, permite uma aproximação mais completa àquilo que motiva esse mesmo desvio. O rigor filológico impediria, talvez, que os Talking Heads fossem usados para explicar um verso de Whitman, mas como qualquer objecto pode ser útil para explicar um outro, e como a rigidez da sinceridade nem sempre se mostra vantajosa nestas matérias, criar um vínculo entre a banda e o poeta pode ser a melhor forma de compreender o verso em questão, porque são colocadas lado a lado duas coisas que, à luz uma da outra, se iluminam mutuamente. Aí reside o ganho da falta de sinceridade.

 

Ora, se tudo é «grist to the mill», quanto mais grist, melhor. Ter conhecimento acerca da técnica agrícola da enxertia pode inclusivamente ser decisivo para a compreensão de um poema de John Donne e, por esse motivo, é necessário ter consciência do tal cocktail que nos define, que nunca deixará de ser uma combinação de opostos.  Ler, ir ao cinema, assistir a aulas na universidade, ouvir música ou ver televisão são ocasiões para o encontro de matéria-prima para pensar o que nos rodeia. Nesse sentido, a «posição moinho» e a «posição cocktail» constituem o início de uma garantia de movimento, que impede a estagnação. As aulas do professor António Feijó, no fundo, davam o tom para uma atitude ecológica de combate ao desperdício: nada é dispensável. Com alguma sorte, o que encontramos, muitas vezes por acaso, pode ser matéria-prima valiosa para fazer girar o moinho e produzir farinha do mesmo saco.



Obras citadas:

Cavell, Stanley, Cities of Words: Pedagogical Letters on a Register of the Moral Life. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 2004.

Giono, Jean, Les Grands Chemins. 1951. Paris: Gallimard, 1973.

 

 * Doutorando financiado pela FCT (2023.00613.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: jamesdias@campus.ul.pt.

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