Originalmente publicada na Feminist Wire

Kristie Dotson é uma filósofa cuja investigação incide nas áreas da epistemologia, metafilosofia, filosofia feminista (com particular foco no pensamento feminista negro) e filosofia crítica da raça. Mestre e Doutora em Filosofia pela Universidade de Memphis, e com formação anterior em Literatura e Estudos Afro-Americanos, Dotson é atualmente Professora no Departamento de Filosofia e no Departamento de Estudos Afro-Americanos e Africanos na Universidade do Michigan.

Esta entrevista foi conduzida por Heidi R. Lewis para a Feminist Wire, onde foi publicada em janeiro de 2015 como parte da rubrica Feminists We Love. Nesse contexto, Lewis apresentava deste modo a entrevistada: «Pelo seu compromisso inabalável para com o desenvolvimento intelectual da teoria, metodologia e prática do feminismo negro, Kristie Dotson é certamente uma feminista que adoramos».

Heidi R. Lewis: No seu artigo revolucionário, «Tracking Epistemic Violence, Tracking Practices of Silence», publicado na revista Hypatia, cunhou o termo «silenciamento testemunhal» para teorizar sobre aquilo que ocorre «quando determinada audiência não é capaz de identificar um falante como um sujeito de conhecimento». Adicionalmente, cunhou o termo «sufocamento testemunhal» para designar o fenómeno em que alguém «mutila o seu próprio testemunho de modo a garantir que este contenha apenas conteúdo para o qual a sua audiência demonstra competência testemunhal». Desenvolveu estas teorias para melhorar a nossa capacidade de identificar práticas de silenciamento. Pode falar um pouco sobre a importância deste processo?

Kristie Dotson: Essa é uma pergunta difícil. E a minha resposta não terá muito sentido sem que dê um pouco de contexto sobre a minha vida. Cresci numa família monoparental que, como acontece com tantas outras famílias nessas circunstâncias, estava sempre a um salário de distância de ficar numa situação de sem-abrigo e de ser separada. Um dia, por várias razões, eu e a minha família ficámos sem abrigo. Não tardou muito a que fôssemos separadas.

Na altura eu tinha quinze anos, pelo que peço desde já desculpa se as minhas memórias são as de uma miúda de quinze anos. Recordo este período de instabilidade financeira e de fome sobretudo à luz do medo de ser afastada da minha mãe, a única cuidadora consistente que alguma vez havia conhecido. Tudo me parecia tolerável desde que a minha mãe estivesse lá. E, de facto, foi tolerável. A minha família é uma das famílias mais bem-dispostas que há. Aproveitamos a vida mesmo quando a vida é francamente má. Mas eventualmente tivemos de nos separar para sobreviver. A minha irmã mais velha foi para casa da minha avó, eu fui para casa do meu pai, e a minha mãe vivia no carro com a minha irmã mais nova, que na altura era muito pequena.

Por mais terrível que tudo isso tenha sido, e foi de facto terrível, recordo o facto de não poder comunicar as minhas circunstâncias e necessidades como algo que tornava a situação ainda pior. De não poder comunicar aquilo de que eu e a minha família precisávamos. Até mesmo as pessoas que tinham vontade e capacidade de ajudar não conseguiam realmente fazê-lo. Não percebiam em que é que consistia essa «ajuda» e eu não lhes conseguia dizer. Não me interprete mal: eu tentei dizer-lhes. Mas elas não sabiam ouvir.

Por isso, sofri a separação da minha família e essa sensação de incerteza extrema em silêncio. Por vezes esse silêncio era forçado. Por vezes era coagido. Outras vezes era simplesmente a melhor opção. Porque mesmo quando eu encontrava alguém com boas intenções, que tinha a disponibilidade para me ouvir e a capacidade de transformar a minha situação (e isto era um grande «se»), em breve se tornava óbvio que o mais provável era essa pessoa não compreender. A certo ponto, simplesmente deixei de falar.

Até mesmo aos quinze anos, eu sabia que havia algo de errado com esse tipo de silêncio. Nessa altura, experienciei o silêncio e o silenciamento tantas vezes, de tantas formas, que não seria capaz de as descrever a todas. [Risos]. Mas foi então que algo insólito aconteceu. Comecei a ver silêncio e silenciamento em todo lado. Via a frustração a acumular-se nos meus colegas de escola. Frequentemente, a sua falta de capacidade de articulação era a consequência direta de um sistema escolar construído sobre uma desconsideração sistémica dos jovens racializados que era verdadeiramente debilitante. Gradualmente, apercebi-me também de que o silenciamento forçado e coagido vitimizava a maior parte, senão a totalidade, das pessoas com um historial de grande sofrimento pessoal. Esse tipo de silêncio e de silenciamento agravava muitíssimo uma situação que já era de si má. Pelo menos, eram estas as minhas conclusões aos quinze anos.

Hoje, com quarenta anos, diria que essas formas incapacitantes de silêncio e de silenciamento constituíram camadas adicionais de opressão que simultaneamente exacerbavam uma situação terrível e que a prolongavam muito para lá do razoável. Por outras palavras, vinte e cinco anos mais tarde, com dois mestrados, um doutoramento e vários anos de luta para sair de uma situação de pobreza, continuo a concordar com o meu eu de quinze anos (só que agora uso palavras mais caras). O silêncio importa. Ser escutada importa. Importam se quisermos encontrar soluções. Importam para a recuperação. Importam para viver. Importam para o bem-estar.

Portanto, há todos esses anos atrás, tornei-me obcecada pela ideia de identificar e de investigar práticas de silenciamento. Em primeiro lugar, essa foi uma forma de me focar em algo que sentia que podia compreender acerca de uma situação que, ao mesmo tempo, estava para além da minha compreensão. Já não era propriamente uma criança, mas ainda era demasiado nova para entender a interseção de sistemas de opressão e o extraordinário nível de abandono que leva à separação de uma família. Ainda não fazia ideia da enorme sobrecarga experienciada por mães solteiras negras para quem simplesmente chegar ao fim do dia é uma luta, que travam pelos seus filhos, da natureza predatória do sistema de acolhimento familiar [foster care] sobre as mães negras, da viragem neoliberal que encontrou um dos seus maiores triunfos no reaganismo, que foi uma das causas primárias da nossa situação de sem-abrigo, e de uma série de outras questões de ordem pessoal, interpessoal, nacional e transnacional que contribuíram para criar a conjuntura da qual resultou a situação da minha família e o meu silêncio particular.

Ainda que o meu interesse na questão do silêncio e do silenciamento me consumisse absolutamente, comecei por dar passos pequenos. Mais especificamente, comecei por questionar porque é que as pessoas se sentem tão confortáveis com aquilo que pensam saber de modo a ignorarem alguém que lhes tenta dizer algo que, obviamente, elas não sabem. Porque é que as pessoas acham que sabem tanto? Em particular, porque é que, perante uma história que não lhes é familiar, a sua primeira reação é rejeitá-la, a segunda demonizá-la e a terceira é negar a sua possibilidade, transformando-a num problema que tem que ver com o falante, em vez de a tratar como algo «a saber» sobre o mundo?

As minhas experiências levaram-me ao que me pareciam ser pequenas questões. Porque é que as pessoas pensam que sabem o que sabem? Ao que parece, e para minha surpresa, uma pergunta como esta é, na realidade, uma grande questão. A epistemologia, subdisciplina da filosofia, passou séculos a tentar responder-lhe. Mas o meu foco foi sempre mais amplo do que esta questão. Continuo à procura de formas de compreender o papel específico que o conhecimento desempenha no processo que leva ao silêncio e ao silenciamento forçados, coagidos e injustos, para poder combatê-lo. O artigo «Tracking Epistemic Violence, Tracking Practices of Silencing» é um pequeno passo em direção a esse objetivo.

Penso que muito está dependente da tentativa de pensar através do silêncio e do silenciamento. Parece-me que explorar as condições do silêncio coagido e do silenciamento forçado nos pode ajudar a imaginar as condições do bem-estar individual e comunitário e a capacidade de criar comunidades sustentáveis e alicerçadas no cuidado. Sei que isto é muito ambicioso, mas é a minha visão. É o que consigo ver a partir daqui. O silenciamento importa.

HRL: Em «Concrete Flowers: Contemplating the Profession of Philosophy», publicado nessa mesma edição da Hypatia, reconhece que o trabalho de filósofos canónicos, tais como Martin Heidegger, Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre, tem sido importante para «uma diversidade de pessoas interessadas em filosofia». E, no entanto, também afirma que, durante os seus anos de licenciatura, não conseguia perceber porque é que era esperado de si que tratasse esses filósofos com uma reverência que os tornasse «alicerces das [suas] próprias investigações filosóficas quando, na verdade, não [lhe] parecia possível sentir-se realizada através do estudo das suas obras». Que filósofas ― mulheres e queer ― e que tipo de «filosofia nascida da luta» têm tido mais influência no seu trabalho? Porque é que estas intelectuais são tão importantes para si?

KD: É difícil dizer que tenho uma figura de eleição no meu trabalho. Enquanto filósofa profissional, sou guiada por questões a que procuro dar resposta. Qualquer pessoa que me ofereça uma forma de compreender o silenciamento coagido e/ou forçado é para mim uma aliada teórica. Tenho, porém, amizades textuais e da vida real com quem converso frequentemente.

Audre Lorde mudou a minha vida na medida em que me afetou profundamente. Estudar o seu trabalho alterou a minha orientação epistemológica de forma significativa. Concretamente, aprendi novas formas de dizer que a posse de conhecimento não é a parte mais importante do saber. Kimberlé Crenshaw, com quem já trabalhei e que é minha amiga, revelou-me as possibilidades do trabalho académico. A ideia de intersecionalidade, o seu bebé, é uma intervenção epistemológica e teórica muito relevante e com um enorme valor para o trabalho de ativismo e de defesa dos direitos humanos. O trabalho de Hortense Spillers mostrou-me o que é a coragem. Os seu «Interstices: A Small Drama of Words» faz teoria feminista negra ao mais alto nível e sem prestar contas a ninguém. Apesar de nunca a ter conhecido, Spillers ensinou-me que quando se trata de teoria «a sério», temos simplesmente de a fazer. O trabalho de Patricia Hill Collins inspira-me. O seu questionamento constante acerca da relação entre o conhecimento e a opressão no caso das mulheres negras é um modelo. Apesar de não trabalharmos nas mesmas áreas, nem da mesma forma, o trabalho de Collins em epistemologia feminista negra deu-me uma vantagem enquanto epistemóloga feminista negra. Tomo o seu percurso, as ferramentas que construiu, e os projetos que dela herdo como parte do meu legado enquanto feminista negra que trabalha questões relacionadas com o conhecimento. Há tantas outras que podia (e deveria) mencionar, mas vocês não têm o dia todo.

HRL: No artigo «How is this Paper Philosophy?», publicado no Comparative Philosophy, escreveu sobre as suas reservas relativamente à possibilidade de a sua irmã vir a trabalhar em filosofia por esta ser, como um orientador lhe havia dito, «um jogo de homens brancos». Por causa do paradigma do homem branco que domina a filosofia enquanto disciplina, afirmou que tem frequentemente «uma sensação de incongruência» que lhe é imposta. Pode falar um pouco mais sobre os motivos pelos quais pensa que a filosofia tem sido tão hostil para com as mulheres negras? Para além disso, gostava que partilhasse algumas das estratégias que desenvolveu, ao longo dos anos, para lidar com esse tipo de dificuldades.

KD: A filosofia académica nos Estados Unidos é hostil para com a maioria das mulheres negras. Caramba, é hostil para com muitas pessoas de cor. Pessoalmente, e aqui estou mesmo só a falar em nome próprio (não quero ofender ninguém… há muito desacordo acerca dos «problemas da filosofia académica enquanto profissão»), comecei por trabalhar um conjunto de questões sobre o conhecimento relativamente tradicional, i.e., «O que é o conhecimento?», «Porque é que as pessoas pensam que têm conhecimento», etc. e tive muitíssima sorte. Este tipo de questões tornaram o meu trabalho suficientemente mainstream, ou pelo menos mais do que muitos dos projetos nos quais vemos mulheres negras envolvidas no contexto da filosofia académica. A convergência fortuita entre os meus interesses e versões mais mainstream de epistemologia tornaram a possibilidade de o meu trabalho ser bem recebido na filosofia académica mais provável do que outros projetos igualmente importantes. Este privilégio que tenho sem qualquer tipo de mérito protegeu-me de muitas dinâmicas bizarras na minha área, ainda que não totalmente.

Por isso, quando escrevi «How is this Paper Philosophy?», encontrava-me no processo de pensar sobre a minha observação das coisas que tornavam a relação quotidiana com os outros colegas de filosofia particularmente onerosa. Parte do problema é o «ponto de interrogação» em desenho animado, como explica a Crenshaw, que temos sobre as nossas cabeças quando falamos sobre ou apresentamos o nosso trabalho. Esse ponto de interrogação, que pode tomar várias formas, resume-se a uma questão sobre a legitimidade dos nossos projetos e/ou sobre a nossa existência numa determinada profissão.

Foi este ponto de interrogação, cuja presença senti ao longo da minha licenciatura, bem como no início da minha carreira, que moldou a minha opinião sobre a área da filosofia em geral. Em muitos sentidos, «How is this Paper Philosophy?» foi uma tomada de posição sobre o meu desagrado para com a filosofia profissional e os pontos de interrogação que esta obriga algumas de nós a transportar. E se esses pontos de interrogação existem para mim, como de facto existiram (e continuam a existir), que sou uma filósofa profissional e feminista negra capaz de navegar relativamente bem na filosofia mainstream, como será para as pessoas cujos projetos não correspondem aos atuais padrões de respeitabilidade da disciplina? Por outras palavras, se alguém como eu, que frequentemente passa o teste de respeitabilidade da disciplina sem ser forçada a alterar os seus interesses e enfoques, sente o impacto desses pontos de interrogação, o que fará as outras pessoas?

O êxito de «How is this Paper Philosophy?» é uma surpresa para mim. Nesse artigo, escrevi o que queria ter lido, o que gostava de poder ter lido enquanto estudante de licenciatura (e talvez antes). Que mais alguém o queira ler ainda me surpreende. Por isso, quando me pergunta quais são as minhas estratégias, devo ser honesta: nenhuma que seja particularmente útil. A minha estratégia mais significativa foi escrever um artigo sobre a filosofia académica enquanto profissão e lutar pela sua publicação (uma jornada de quase cinco anos) para que aí pudesse regressar como forma de encorajamento pessoal, mas também para assinalar o «ponto de interrogação» em desenho animado por cima da minha cabeça. Publicar «How is this Paper Philosophy?», mesmo sem a sua atual receção, foi para mim um ponto de viragem. A mensagem central do artigo é que qualquer pessoa que pense que questionar a justificação para um determinado projeto filosófico é uma questão legítima sem clarificar a sua própria conceção de filosofia está a agir como um idiota. Não precisava que ninguém lesse o artigo para que a publicação fosse um momento verdadeiramente revitalizante para mim. Para alguém que trabalha sobre o silenciamento, a tentativa de falar pode fazer toda a diferença.

Ora, isto não são conselhos particularmente bons, dependendo da perspetiva. Vivi os meus anos de Professora Assistente como se não fosse receber tenure [estatuto reforçado de estabilidade no emprego no ensino superior]. Ou seja, eu não tinha medo de perder o meu emprego. Eu esforcei-me por conseguir o tenure, através da publicação e apresentação de artigos e tudo mais, mas não me passou pela cabeça envolver-me em todo o tipo de dinâmicas microagressivas, típicas da cultura profissional, em que as pessoas te dizem que tens de te envolver para alcançares esse estatuto. Portanto, publicar um artigo a dizer que a tua profissão está repleta de gente desagradável, enquanto professora assistente, provavelmente não é a melhor estratégia. Mas resultou para mim. [Risos].

HRL: Conclui «How is this Paper Philosophy?» sugerindo que «uma cultura de praxis na filosofia profissional seria capaz de apresentar um leque muito maior de opções dignas do que atualmente apresenta». Será que pode definir essa ideia de praxis filosófica e falar sobre o modo como o seu próprio trabalho apresenta a disciplina dessa forma?

KD: Pergunta difícil. Antes do mais, deixe-me dizer que a reflexão filosófica é uma atividade humana básica. Toda a gente o faz. A maior parte das pessoas não pensa que está a «filosofar» quando faz perguntas gerais sobre o estado das coisas, mas está. Qualquer pessoa que alguma vez tenha coçado a cabeça e perguntado, «O que é este mundo?» ou «Porque é que as coisas estão organizadas da forma que estão?» já começou a filosofar. As questões filosóficas podem ser mais amplas ou mais particulares, mas há muito poucas pessoas que nunca deram um passo atrás e perguntaram, «O que é se está mesmo a passar?» e depois tentaram imaginar respostas.

Enquanto filósofa feminista negra profissional, i.e., uma pessoa que ganha a vida através do seu conhecimento sobre filosofia e que se especializa em investigar as condições da opressão e da libertação das mulheres negras, eu tento responder à pergunta: «O que é que é que se está mesmo a passar?» a respeito das meninas e mulheres, cis e trans, negras, particularmente no contexto dos Estados Unidos. A minha esperança é que as respostas que apresento possam contribuir para um conjunto de trabalhos que também procuram respostas para esta questão de modo a que possamos pensar e procurar justiça no século XXI. Neste sentido, o meu trabalho está comprometido para com uma comunidade particular.

A praxis filosófica é, para mim, uma busca «comprometida» de respostas a grandes questões. A ênfase nesta ideia de «compromisso» pretende destacar uma filosofia que é feita em e para comunidades, onde essas comunidades não são consideradas monolíticas. Por exemplo, enquanto membro do núcleo duro da equipa do #WhyWeCantWait, que desafiava a natureza excludente relativamente ao género da iniciativa My Brother’s Keeper (MBK), lançada pelo Presidente Obama, participei numa série de ações com o objetivo de alargar uma medida que pretendia promover a «justiça racial» a toda a juventude racializada nas comunidades visadas. Por mais defeitos que a medida tivesse ― e era verdadeiramente insatisfatória, a começar pelo seu foco neoliberal nas conquistas individuais, em vez de priorizar soluções estruturais ―, o trabalho de defesa dos direitos de meninas racializadas ensinou-me algo que a mera produção teórica nunca me poderia ensinar. Permitiu-me testemunhar os modos específicos como o «conhecimento» funciona no mundo.

Os livros e as teorias, por mais fascinantes e instrutivos que possam ser, não seriam capazes de me ensinar algumas das coisas que aprendi quando coloquei a minha formação epistemológica em prática. Foi esse compromisso prático com a comunidade, um grupo de feministas negras com diferentes percursos, e a experiência de enfrentar as instituições vigentes que transformou a minha compreensão do meu trabalho e da forma como o meu trabalho pode contribuir para assegurar a justiça racial no século XXI.

Para mim, estar comprometida com algo significa trabalhar para alcançar determinado objetivo em colaboração com uma série de pessoas que estão interessadas em questões semelhantes, sobretudo quando o consenso não é um dado adquirido. A minha noção de praxis filosófica é o resultado de uma busca de respostas para perguntas complexas no seio de comunidades. E isto implica o reconhecimento de que até o trabalho filosófico mais abstrato é feito através de um compromisso para com uma comunidade de pessoas que estão a pensar no mesmo tipo de coisas. Estas comunidades não são mutuamente exclusivas, mas também não são equivalentes umas às outras. Por vezes são as investigações que motivam o seu próprio desenvolvimento, e não os padrões da disciplina.

 

HRL: Durante a Conferência para Mulheres Pré-Tenure na Universidade de Purdue em 2011, Caroline S. Turner disse, «As mulheres zangam-se e vão embora. Os homens zangam-se e ficam». Regresso a esta ideia quando penso nas decisões que as/os intelectuais provenientes de grupos marginalizados tomam relativamente ao momento de abandonar ou de permanecer em determinadas instituições na academia. Por exemplo, a Kristie abandonou o seu primeiro emprego conducente a tenure, depois de apenas um ano em funções, para aceitar uma posição no Departamento de Filosofia da Universidade Estatal do Michigan. Não pretendo perguntar-lhe qual a multiplicidade de razões que informaram a sua decisão, mas talvez possa partilhar algum conselho acerca de como efetivamente tomar uma decisão tão importante. Gostaria também de saber o que pensa sobre a teoria de Turner.

KD: A minha experiência mostrou-me que a afirmação «As mulheres zangam-se e vão embora. Os homens zangam-se e ficam» conta uma meia-verdade que pode levar a más interpretações, se não for contextualizada. É que, frequentemente, a verdade que aí está em causa pode ser explicada por uma estrutura de privilégio e de supremacia em determinados contextos institucionais. Devemos ter muito cuidado quando falamos de mulheres de cor na academia. Antes do mais, temos de considerar o quão rápido as académicas de cor morrem. Sim, eu disse «morrem», e quero mesmo dizer «morte», especialmente quando falamos de académicas feministas.

Eu participei num evento sobre mulheres de cor no campus da Universidade Estatal do Michigan, que muito apropriadamente começou com uma homenagem de Terrion L. Williamson às mulheres académicas e artistas de cor que morreram antes dos sessenta anos. Há simplesmente demasiadas de nós, sobretudo quando se tem em consideração a nossa presença relativamente pequena na academia. Uma hipótese, neste contexto, é simplesmente que as mulheres de cor morrem devido a um excesso de investidas emocionais negativas causadas, em parte, pelas circunstâncias das nossas vidas. Por isso, há que ter muito cuidado quando se fala destas emoções negativas. A sério. Estar zangada o tempo todo não é uma circunstância ideal para o bem-estar pessoal.

Por outro lado, o privilégio da vida académica pode, por vezes, possibilitar uma mobilidade que torna a mentalidade do «fica e luta» pura e simplesmente pateta. Existem outras lutas, sobretudo se és uma académica feminista negra. Algumas de nós vão escolher ficar e lutar e outras vão escolher batalhas absolutamente diferentes. Eu, pessoalmente, escolhi uma batalha diferente. Nada disto tem como objetivo defender que é possível evitar a ira no nosso local de trabalho. Qualquer mulher negra em qualquer tipo de profissão dirá que essa ideia é falsa. E a realidade é que alguma ira é produtiva. No entanto, é importante avaliar o nosso ambiente para perceber se a nossa ira está a ser realmente compreendida.

O que eu observava na minha instituição, e isto provavelmente mudou, era que o reconhecimento das situações que invocavam a minha ira não passava de uma fachada. Gradualmente, tornou-se claro para mim que estaria a dar o corpo às balas para conquistar o tenure, só para chegar a esse ponto e ter de processar essa instituição, quer conquistasse o tenure ou não (e tê-lo-ia conquistado). Ora, apesar de eu não ter alcançado esse estatuto no início da minha carreira no ensino superior, a minha mãe não educou tonta nenhuma. Eu não sou de lutar batalhas perdidas sem que haja uma boa razão para o fazer. Há outras frentes onde lutar.

Demasiadas mulheres de cor que se zangam e ficam em condições semelhantes são forçadas a abandonar a instituição com candidaturas a tenure falhadas. Compreende o que quero dizer? Elas são forçadas a ir embora de qualquer forma. Por isso, poderíamos interpretar a observação de que «as mulheres se zangam e vão embora» como: muitas mulheres leem os sinais a tempo e põem-se a milhas. Também poderíamos dizer que os «homens» ficam e lutam porque os contextos institucionais estão preparados para reconhecer as suas reivindicações por justiça no trabalho como algo de razoável. A maioria das mulheres de cor, especificamente, não pode contar com as instituições para as proteger e às suas reivindicações. O melhor é mesmo encontrar condições de trabalho mais favoráveis.

Esta foi a minha resposta longa. [Risos]. A resposta curta é: «as mulheres zangam-se e vão embora» porque são espertas. Uma vez que já se encontram em tamanha desvantagem, a ira e o modo como essa ira é acolhida são sinais que antecipam desilusão e injustiça futuras. Quem tem opções raramente opta por sofrer só para «levar até ao fim» o seu trabalho numa instituição qualquer. E se o faz, é porque considera que essa luta institucional vale a pena e justifica o risco de vir a enfrentar desilusões e injustiças exacerbadas no futuro. Eu aplaudo essas mulheres pelo seu serviço uma vez que as que virão depois irão usufruir dele. Mas há outras de nós que pensam que, se é para lutar, então há simplesmente outras batalhas a que dar prioridade.

HRL: Não podia terminar esta entrevista consigo sem uma questão sobre pedagogia feminista. Lembro-me como se fosse ontem de ser sua aluna na cadeira de Teoria Feminista e Metodologia em Purdue, há seis anos atrás, e devo dizer que essa foi uma grande inspiração para a minha própria experiência de ensino, em particular para a disciplina de Teoria Feminista que leciono. Gostaria que partilhasse algumas observações acerca de estratégias que possa ter desenvolvido ao longo dos anos para ensinar teoria feminista. Mais especificamente, que tipos de desafios é que enfrenta ao lecionar essas disciplinas e como foi capaz de os superar ou, pelo menos, de mitigar os seus efeitos?

KD: Eis o que eu aprendi: para teres alguma coisa de jeito para dizer, tens de ter visto um pouco do mundo. Algumas pessoas dizem-me que sou demasiado intransigente neste ponto. Mas eu quero que toda a gente perceba que eu aprendi a ser uma feminista negra ao colo da minha mãe e da minha avó. E nessa altura era, e continua a ser, inaceitável falar com autoridade sobre algo que não estamos dispostas a fazer, a tentar ou a investigar com seriedade.

Se não estás disposta a interpretar as nuances da teoria social feita por mulheres negras fora do enquadramento que um filósofo europeu qualquer te deu, o que estás a fazer é recolonização com o privilégio para o fazer. Se queres trabalhar academicamente sobre questões relacionadas com «trabalho sexual», mas nunca fizeste ou conheceste alguém que fez esse tipo de trabalho, o que estás a fazer é recolonização com o privilégio para o fazer. Se queres trabalhar sobre tópicos e questões num contexto africano enquanto cidadã dos Estados Unidos e só estiveste nesse contexto um par de vezes, ou nunca sequer lá estiveste e, no entanto, queres falar com um tipo de autoridade que não mereceste, o que estás a fazer é recolonização com o privilégio para o fazer.

Há tanta pressão para fazer trabalho académico alinhado com intuitos colonizadores. Esse trabalho é frequentemente apresentado como investigação académica rigorosa. Mas a mim parece-me apenas recolonização. Desde o desejo constante de criar uma «marca» ou de apresentar algo de «novo», ou de criticar em vez de criar, ou de falar com uma autoridade indevida, tudo isto (e muito mais) se presta às maquinações da recolonização que prevalece nas esferas académicas.

O maior desafio que enfrentei foi observar estas práticas de recolonização na academia, ser avaliada em função dos seus indicadores de sucesso e, ainda assim, continuar a ser a feminista negra que a minha mãe me educou para ser. O tipo de feminista negra que compreende que é herdeira de mundos que lhe foram legados e que o seu trabalho pode simplesmente passar por «fazer com que ideias antigas» tomem novas formas (Audre Lorde); que vê a crítica como um privilégio conquistado por quem dispôs do tempo necessário para chegar a uma verdadeira compreensão; o tipo de feminista negra que olha para si mesma como parte do mundo e que não vê o mundo como um produto da sua imaginação.

É que eu não estou à procura da próxima novidade. Não estou a tentar produzir o próximo pensamento original. Eu mal acredito que isso seja possível. Eu quero, sim, manter aquilo que temos disponível para compreender o mundo e atualizá-lo para os tempos de hoje, com amor. Sempre com amor. Deixo aquilo que não posso amar àqueles que o possam valorizar e atualizar ou deixo que simplesmente desvaneça. Por isso, o maior desafio para mim na academia é a identificação e erradicação do tipo de valores profissionais que exigem o meu envolvimento em práticas de recolonização e o ódio por mim mesma. É isso que a academia, e a maioria dos contextos profissionais, pede a muitas de nós. «Dedica-lhe o teu amor e odeia-te a ti mesma». É para mim uma batalha diária dizer, «Eu não. Hoje não». Em alguns dias sou bem-sucedida, noutros não. Mas sou capaz de lutar porque sou consciente de que tal luta existe.

HRL: Para terminar, pergunto-lhe sobre projetos futuros. O que podemos esperar da Kristie Dotson nos próximos meses?

KD: Em termos de escrita académica, estou a trabalhar num par de livros. O primeiro é um projeto sobre alguns dos modos como o conhecimento é usado para perpetuar a opressão, e que poderá chamar-se «Como Fazer Coisas com o Conhecimento». Trata-se de um livro que tem como base epistemologias feministas negras, a epistemologia analítica e epistemologias liberatórias. O segundo é um ensaio longo sobre epistemologia feminista negra. Os dois projetos estão relacionados: um livro sobre o modo como o conhecimento opera nos nossos ambientes quotidianos é necessário, na minha opinião, para compreender a epistemologia feminista negra.

Ao nível do trabalho de organização política, quero formar uma Cooperativa Feminista Negra que funcione como uma plataforma de cooperação entre contextos nacionais e globais para a produção de trabalho liberatório realizado por, com ou para mulheres e meninas negras, cis e trans, bem como para pessoas não-binárias. Por mais sofisticado que isto possa soar, o que tenho em mente é criar uma rede para o ativismo, a política, a arte e/ou o trabalho académico extraordinário que está a ser feito por feministas negras hoje em dia. Isto poder-se-á traduzir na criação de um website que apoie esforços de comunicação e de coordenação, num programa de bolsas destinadas a financiar o incrível trabalho que está a ser feito, na produção de podcasts sobre o feminismo negro atual, ou até mesmo, um dia, na organização de residências para artistas, ativistas e/ou investigadoras.

Frequentemente assume-se que as académicas e académicos não têm muito a oferecer no sentido de encorajar a construção de movimentos políticos a partir dos nossos contextos. E o mais provável é que isso seja verdade. [Risos]. Mas eu tenho recursos institucionais que, obviamente, não podem (nem devem) liderar um movimento, mas podem oferecer apoio. Neste momento, posso fazer alguma coisa com o pouco que tenho, e tenho procurado aconselhar-me junto de feministas negras provenientes de diferentes contextos e com vários percursos para perceber qual será a melhor forma de utilizar esses recursos. Em todo o caso, qualquer coisa que faça terá de começar em pequena escala. Tenho grandes ambições para quem não tem uma abundância de recursos, mas estou a trabalhar nisso. [Risos]

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