A contemplação serena da harmonia universal, que conforta e robustece Boécio na prisão em Pavia, enquanto aguarda a sua execução, escrevendo essa obra extraordinária que é a Consolatio Philosophiae, fundamenta-se numa visão do mundo cuja base se encontra nos estudos que o autor desenvolveu ao longo da sua vida, e é de cariz matemático e musical.

Boécio, que estudou as artes matemáticas profundamente, deu-lhes o nome de Quadriuium, no prólogo da sua obra De Arithmetica, designação que passou para a toda a Idade Média, e fez um esforço por proporcionar aos Romanos textos sobre uma área que era menos familiar em Itália. Na dedicatória desta obra, ao seu sogro Símaco, dá a entender que tencionava elaborar um esquema de instrução para as quatro artes liberais matemáticas, mas há poucos indícios de que  tenha levado a  cabo o projecto. Do De Arithmetica temos dois livros completos, temos os cinco livros do De Musica, sobre Geometria vários fragmentos de autenticidade duvidosa, em dois ou três livros. Há várias referências medievais a uma Astronomia ou Astrologia de Boécio, mas não são facilmente verificáveis: essas obras perderam-se, se existiram. Cassiodoro, no De artibus ac disciplinis liberalium litterarum, menciona a Arithmetica e a Geometria, mas não o De Musica nem a Astronomia, embora numa carta diga que Boécio traduziu obras sobre as quatro disciplinas. A omissão do De Musica por Cassiodoro deve-se certamente ao seu inacabamento, pois a sua autenticidade nunca foi posta em causa.[1]

A Música para Boécio — e a para a vasta tradição que este recolhe e transmite à Europa medieval — ultrapassa largamente o conceito que a palavra Música encerra para um leitor moderno. A Música não é apenas som. Para entendermos a vastidão deste conceito de música, seja-me permitido iniciar este trabalho citando o metro 8 da Consolatio Philosophiae:

Em regular harmonia se move o mundo, com suas variações.
Guardam os elementos discordantes duradouro pacto,
Traz Febo o róseo dia com seu carro dourado,
De forma que Febe governe as noites por Héspero trazidas,
E o ávido mar mantenha as suas ondas por um limite preciso confinadas,
De modo que não seja permitido às terras vaguear e expandir os seus vastos confins.
Tudo isto une o Amor, governando terras e mares, regendo o céu.
Se este as rédeas soltasse, todas as coisas que agora se amam entre si de imediato se combateriam, tentando destruir a máquina do mundo, que agora com mútua confiança fazem mover
em graciosos movimentos.
É ele que une os povos aliados num sagrado pacto.
É ele que o sagrado laço do matrimónio fundamenta.
Liga os mortais com castos amores e dita a sua lei aos companheiros leais.
Feliz raça humana, se vossos espíritos reger o Amor que rege os céus![2] 

Neste poema encontra-se a essência do conceito de Música em Boécio, que seguidamente explicitaremos. Será ainda a partir deste texto que tentaremos definir os contornos da tradição em que radica o entendimento da Música que nos é apresentado no tratado boeciano sobre a Música e a visão do mundo na Consolatio.

Nesta visão do Universo, o Amor é uma força organizadora que regula a máquina do mundo, as coisas e os homens. Ao homem que conseguir orientar a sua vida de acordo com esta força é prometida a felicidade.

Vogel[3] procurou estabelecer as origens desta visão do mundo e outorga a Boécio o mérito de uma certa originalidade, fazendo depender de Proclo o fundamental da tradição utilizada. Mas confunde os avatares tardios de uma tradição com essa tradição. O amor enquanto força organizadora do mundo remonta pelo menos a Hesíodo,[4] embora ainda na bruteza da metáfora sexual, perpassa no Orfismo[5] e é no Pitagorismo que vai tomar a forma que está na base do texto de Boécio. Confrontemos o poema do nosso autor com um texto de Jâmblico[6]:

Pitágoras ensinou com a maior clareza a amizade de tudo relativamente a tudo, a dos deuses para com os homens, pela piedade e através de um culto esclarecido pela ciência; a dos conhecimentos uns relativamente aos outros e, de um modo geral, da alma em relação ao corpo e da sua parte racional relativamente às partes irracionais através da Filosofia e da contemplação que lhe é própria; a dos homens uns para com os outros, através de um são respeito das leis, se forem concidadãos, através de um correcto conhecimento da natureza, se forem de países estrangeiros; a do homem para com a sua mulher, os seus filhos, irmãos ou próximos através de uma comunidade sem perversão; numa palavra, de todos para com todos, e ainda para com certos animais irracionais, através da justiça, os laços naturais e a comunidade; do corpo mortal em si mesmo, e trata-se então de uma pacificação e de uma conciliação das faculdades contrárias que estão escondidas em si, através da saúde, de um regime ou da temperança que conduzem a esta, à imitação do fecundo equilíbrio que reina nos elementos cósmicos.

              Para todas estas coisas, a fim de as reunir numa designação única, há consenso em dizer que foi Pitágoras o inventor da designação de amizade e que estabeleceu as suas leis. E ensinou aos seus discípulos uma amizade tão maravilhosa que ainda agora, para designar aqueles que estão animados da maior benevolência uns para com os outros, se diz habitualmente que são Pitagóricos.

As semelhanças desta Philia pitagórica com o Amor de Boécio ressaltam claramente. Segundo os autores antigos teria sido Pitágoras o primeiro a utilizar a palavra Cosmos com o sentido de Mundo, Universo.[7]

O Platonismo recolheu a tradição pitagórica, sobretudo a vertente mística do pensamento matemático e musical de Pitágoras.[8] Referindo-se aos Pitagóricos, diz-nos Platão que «os sábios ensinam encontrarem-se o céu e a terra, os deuses e os homens ligados pela afinidade e pelo amor, pela ordem e pela justiça; e por essa razão eles dão ao todo o nome de Cosmos, não um nome implicando desordem ou licenciosidade.»[9]

Estes sábios são habitualmente identificados com os Pitagóricos. Um argumento a aduzir é um passo do De Rep. de Cícero, paralelo ao do seu modelo confessado, em que os docti são inequivocamente Pitagóricos.[10]

Consolidemos o pitagorismo desta ideia do mundo, enquanto Cosmos congregado pelo Amor, através dos fragmentos do pitagórico Empédocles, em cuja obra é Philia e Afrodite que unem os elementos.[11] É aliás nos vários tipos de amor que Empédocles refere no seu célebre ciclo cósmico que se deve procurar a origem dos vários tipos de amor referidos por Proclo,[12] que Vogel considera ser a fonte donde mana em primeira mão o Amor boeciano.

Ora existe um fragmento do mesmo Empédocles em que Harmonia aparece como sinónimo de Amor.[13] Esta ideia encontra-se também em fragmentos atribuídos a Pitágoras ou em textos que lha atribuem. Citamos apenas um texto de Diógenes Laércio, que corrobora a tradição mais vetusta: «(segundo Pitágoras) a virtude é uma harmonia, tal como a saúde, o bem tomado na sua totalidade e a divindade. É por isso que o conjunto dos seres está organizado segundo uma harmonia. E a amizade é uma igualdade harmoniosa.»[14]

Mas o testemunho mais significativo é-nos apresentado pelo pitagórico Filolau, segundo o qual há dois princípios cósmicos de cuja união o mundo se forma e torna inteligível. Esta união é feita sob os auspícios de uma força chamada Harmonia, termo que no mesmo fragmento, imediatamente após ser utilizado com o sentido que acabamos de referir, é utilizado com sentido musical.[15]

O Mundo enquanto Cosmos, entidade dinâmica cuja coerência e ordem estão dependentes de uma força chamada Harmonia ou Amor, é, por conseguinte, um conceito que a tradição antiga e tardia permite radicar no Pitagorismo. Recentemente tem-se dado mais algum crédito à literatura tardia sobre Pitágoras, depois do descrédito quase total a que esteve sujeita.[16] No caso concreto desta concepção verifica-se de facto a continuidade de uma tradição que dá autenticidade ao texto de Jâmblico que citámos.

Os filósofos do séc.IV recusam a aplicação do conceito de Philia ao Cosmos,[17] sendo necessário remontar ao Pitagorismo para atingir este Amor que se aproxima da gravidade newtoniana. Ora se a tradição pitagórica identifica Amor com Harmonia, outro tanto faz Boécio. O Amor de que nos fala é implicitamente de carácter musical, como é evidente quando confrontamos este poema com os passos do De Musica em que nos fala da música do mundo, no capítulo I, 2, música esta «perfeitamente observável naquilo que contemplamos quer no próprio céu quer na união dos elementos quer na alternância das estações»[18]: «os cursos das estrelas são de tal forma coerentes e harmoniosos  que deles não pode estar ausente uma ordem ponderada de modulação» (ratus ordo modulationis); «se as diferenças dos quatro elementos não fossem unidas por uma determinada harmonia, como poderiam reunir-se num só corpo e máquina?»; «nada na música do mundo, como na musica instrumentalis é desmesurado — o que o Inverno constrange, liberta-o a Primavera, queima-o o Verão, amadurece-o o Outono.»[19]

Note-se que os efeitos da música do mundo são os mesmos do poema em epígrafe: a sucessão das estações, a concórdia dos elementos. A harmonia é o amor quo caelum regitur, conforme patenteiam estes passos. Harmonia é uma palavra cujo significado se reveste de especial importância: inicialmente tem um sentido que é juntar ou colocar coisas juntas, sentido em que aparece em Homero, Od., V, 248, depois uma forma de afinação da lira e, por conseguinte, uma escala musical. O seu sentido musical estava estabelecido no séc.V a.C.[20]

A harmonia que os Pitagóricos ligavam ao número era musical, conforme se vê a partir da explicação aristotélica da sua teoria da música das esferas.[21]

Como se chegou a esta concepção de um universo musical? É o que passamos a explicar. Teria sido Pitágoras[22] o primeiro a estabelecer as proporções matemáticas que subjazem às consonâncias musicais, embora a historieta contada por Boécio no livro I, 10 do De Musica não possa corresponder de facto com exactidão ao processo que conduziu a esta descoberta. Ao passar por uma oficina de ferreiros teria ouvido o som dos martelos, que lhe soou extremamente harmonioso. Entrou e mediu, foi para casa e fez experiências com cordas tensas, com recipientes com água, com varas metálicas. Ao descobrir que a oitava musical, diapasão, corresponde a uma proporção 2/1, a quinta, diapente, a uma 3/2, a quarta, diatessaron, a 4/3, e que estas proporções se obtêm a partir da célebre tetractys, 1+2+3+4=10, relacionando cada um destes termos com o que imediatamente o antecede, Pitágoras fez uma descoberta importante em termos práticos, mas viu nela mais do que isso: nestas fórmulas matemáticas descortinou a chave para penetrar na ordem do Cosmos.

O número é o princípio de todas as coisas e a harmonia universal deriva do sentido musical da palavra, a ordem do mundo é musical. Cada planeta produz um som, ao mover-se, e, devido às proporções matemáticas, o conjunto soa agradavelmente, como o som dos martelos de Pitágoras.

Estabelece-se inclusivamente uma relação concreta entre a prática musical, de que arranca o conceito, e o Universo astral, admitindo-se uma correlação entre os sons e os planetas, a celebérrima música das esferas.[23] O Universo é uma caixinha de música.

Platão apresenta-nos dois passos que confirmam inequivocamente o pitagorismo da música das esferas: na Respublica afirma que a Música e a Astronomia são, segundo os Pitagóricos, ciências irmãs[24]; no Cratylus, Apolo é apresentado, no entender dos homens versados na Astronomia e na Música, como aquele que preside à música do Universo.[25] O pitagorismo desta doutrina é também atestado por Aristóteles.[26] Estes passos são corroborados por toda a literatura posterior.

O que nos parece importante frisar é, por um lado, a origem concreta do conceito; por outro a amplitude da noção de harmonia após o seu alargamento à totalidade do Universo.

O Universo tem uma alma, que é de natureza musical e assim é descrita no Timaeus, cujo pitagorismo tem sido reconhecido desde sempre pelos académicos.[27]

A teoria da alma individual como harmonia também é pitagórica. Aristóteles, embora a rejeite, transmite-nos esta doutrina: «Há outra teoria sobre a alma.... dizem que é uma espécie de harmonia, pois uma harmonia é a mistura e a composição de opostos, e o corpo é composto por contrários»[28]; «muitos homens sábios dizem que a alma é uma harmonia, outros que tem uma harmonia».[29] Temos também o testemunho de Platão no Phaedo: «as nossas almas são a mistura e a harmonia destas coisas (dos contrários), depois de misturadas num logos correcto».[30]

Aristóteles não explicita quem são os seus sábios, mas o discurso do Phaedo é feito por Símias e toda a discussão é referida por Equécrates, que diz expressamente que a teoria da harmonia lhe é familiar(88d). Ora Equécrates é contado entre os Pitagóricos por Jâmblico,[31] e Símias estudou com Filolau. A teoria da harmonia tem aliás um grande relevo na obra de Filolau.[32]

Além disso as fontes tardias atribuem explicitamente esta doutrina aos Pitagóricos: «Pitágoras e Filolau (dizem que a alma é) uma harmonia», diz-nos Macróbio.[33]

A teoria de que a alma é uma harmonia de três partes, epithymia, thymos e nous, parece ter sofrido a influência platónica, embora haja quem creia na origem pitagórica.[34]

Se a alma do Mundo é Música, se é Música a alma individual, não são todavia idênticas. A alma humana desafina, a do Universo não. A harmonia cósmica, com a sua função agregadora, causada pela omnipresença do número para os Pitagóricos, reflexo do inteligível para o Platonismo, revelação da bondade providencial para os Estóicos e para os exegetas judaico-cristãos, torna-se então um paradigma para a restauração ética da alma humana.

Esta catarse musical faz-se através do conhecimento, pelo estudo das proporções através do monocorde, que basicamente é uma corda tensa sobre uma tábua com divisões numericamente calculadas, e através da musica instrumentalis, que deve imitar a harmonia universal: é este critério que distingue a boa da má música, não o critério do prazer. Baseia-se a catarse musical no princípio segundo o qual o semelhante conhece o semelhante e no acto de conhecimento aquele que conhece torna-se semelhante ao que é conhecido.

O princípio da atracção dos semelhantes, referido por Boécio em De Musica, I, 1, encontra-se em Platão nas Leges, VII. Se é verdade, como viu Delatte, que o princípio do homoios é importante na obra de Demócrito,[35] é provável que a teoria tenha chegado a Platão de fonte pitagórica, pois como nota Boyancé, no Timaeus encontramos referência à harmonia cujos movimentos são da mesma espécie que as revoluções regulares das nossas almas.[36] Além disso encontramos a doutrina do homoios num fragmento do pitagórico Empédocles, que é mais uma vez o elo que completa a nossa corrente.[37]

A música universal, imitada através da música instrumental, tem por função sobrepor um movimento ordenado ao movimento desorganizado da alma humana. A alma como movimento é um conceito importante em Boécio: na Consolatio Philosophiae Boécio aplica 19 vezes à alma o substantivo motus e palavras derivadas.[38]

Sobre a catarse musical surgiu recentemente uma curiosa explicação, que a relaciona com prácticas mágicas de expulsão de demónios e formas de pensamento primitivo, e é nesse sentido que a encontramos na Medicina e nos Pitagóricos, que utilizavam a música com função catártica de manhã e ao anoitecer, conforme nos diz Boécio no De Musica, I, 1, corroborando os textos de Jâmblico, De Vita Pythagorica, 65.

Esta tese de Boyancé,[39] porém, peca por pôr de lado os testemunhos antigos e recorrer sobretudo a escritos antropológicos modernos. Mais perto da verdade nos parece Delatte,[40] que relaciona a catarse musical dos Pitagóricos com a especulação matemática, sendo a música uma forma de afinação com o diapasão cósmico cuja harmonia imita. Jâmblico apresenta-nos esta catarse musical como sendo Filosofia.[41]

A identificação pitagórica da catarse com a Filosofia encontra-se também em Platão, no Phaedo, 67a-d, diálogo em que Sócrates, instado em sonhos a dedicar-se à Música, crê que o sonho lhe ordena que continue a dedicar-se à Filosofia, «a mais elevada forma de Música».[42] Daí a importância da Música na educação do filósofo, salientada por Platão na Respublica, 530c-531c.    

A Música é o processo através do qual a alma põe as suas modulações de acordo com a ordem cósmica, como nos é dito no Timaeus, 90d, a base da virtude maior, a sophrosyne, como nos é dito na Respublica.[43] Permite ao Homem reconhecer e aperfeiçoar a sua harmonia, reproduzindo no microcosmos da musica humana a perfeição da musica mundana, permite-lhe aceder ao conhecimento dos segredos do Universo, em cuja harmonia se enquadra. Permite ao Homem ser feliz, conforme promete o poema de Boécio. Assim se explica a última recomendação de Pitágoras aos seus discípulos, segundo Aristides Quintiliano, cujo vasto alcance ultrapassa a simples paixão pela música: «praticai o monocorde»[44]).

A musica mundana não é audível, mas visível. Das várias formas que pode apresentar (alternância das estações, harmonia dos elementos e das pessoas entre si), só a música das esferas se encontra ligada ao som na tradição boeciana, embora os mortais não possam ouvi-la, tendo sido alvitradas múltiplas razões para este facto, nomeadamente o carácter excessivo desta música, não apreensível pelos nossos sentidos, e a impossibilidade de nos apercebermos de um som que está continuamente presente.

Cremos, porém, que o significado da música das esferas é mais profundo do que parece: trata-se de uma alegoria da ordem universal, forma concreta de dizer uma realidade que não é necessariamente som.[45]

Acreditamos, assim, que Pitágoras a «ouvisse».

A evolução que se propõe é a seguinte:

mundo = cosmos                         mundo = harmonia

                   ↓

                                                ↑                            ↓

          a harmonia musical

          revela a fórmula matemática

          que subjaz a essa ordem                         homem=cosmos 

Começa assim a definir-se o significado do poema com que iniciámos este artigo. A Música identifica-se com o Amor que congrega o mundo e é posta a par da Filosofia, à qual é associada por Platão e Aristóteles,[46] revestindo-se da dignidade de uma forma de conhecimento do mundo e de aperfeiçoamento moral do indivíduo. Não é apenas uma ancilla philosophiae, mas uma parte da Filosofia, como notou Schrade.[47] No De Musica não tem apenas carácter exortativo no caminho para a Filosofia, é já Filosofia.

É à luz desta concepção que poderemos compreender a definição de Música dada por Boécio no De Musica e no De Arithmetica: toda a quantidade relacionada com outra quantidade.[48]

Esta concepção permite-nos também o entendimento da tipologia da música estabelecida por Boécio, que se tornou tão produtiva em épocas posteriores[49]: musica mundana, humana e instrumentalis.

A musica humana é movimento, mas não som, tal como acontece com a musica mundana. Consiste na harmonia entre as partes do corpo e entre o corpo e a alma. A origem desta divisão é o Timaeus de Platão, em que o tratamento do homem se processa pela mesma ordem apresentada na musica humana de Boécio (a alma, o corpo, a junção de ambos), e em que a música cósmica é claramente apresentada. Crêem alguns académicos[50] que teria sido através de Calcídico e do seu comentário ao Timaeus, ainda mais musical na linguagem, que Boécio teve a ideia da musica humana. Apesar das promessas feitas nenhuma destas duas categorias é tratada no De Musica — o capítulo I, 27, sobre as notas atribuídas aos astros, é apenas uma glosa sobre os tetracordes acabados de apresentar, não uma discussão sobre a música do mundo. Em sugestivo artigo, Chamberlain afirma que é na Consolatio que Boécio cumpre a promessa de falar da música do mundo e do homem.[51]

A musica instrumentalis (que engloba a música vocal, tratada implicitamente como parte desta no De Musica em I, 12-13) está intimamente ligada à musica mundana, que imita e procura compreender através da lucubração matemática, e à musica humana que corrige e equilibra através dos seus efeitos medicinais e éticos.

    

Conclusão:

É necessário recorrer ao conjunto do pensamento do autor para integrar e compreender individualmente não só o De Musica mas também a Consolatio, cuja contemplação da ordem universal se enquadra numa mundividência cristã profundamente marcada pela tradição pitagórica que esperamos ter patenteado.

É difícil dizer se o que há de mais grandioso nesta ideia de Música é a vetusta e multifacetada tradição que, basicamente oriunda do Pitagorismo do séc.VI a.C., vem desaguar numa obra escrita no séc. VI d.C., mil e duzentos anos depois, se a própria amplitude do conceito e a contemplação serena da harmonia do mundo que propicia a um homem que foi muito rico e poderoso e que se encontra agora despojado de tudo menos do seu vastíssimo saber, num cárcere sombrio, à espera da morte.

 

[1] Cassiodoro, Var., I, 45 (M. G. H., A. A., 12, p. 40): «Translationibus enim tuis Pythagoras musicus, Ptolemaeus astronomus leguntur Italis, Nichomachus arithmeticus, geometricus Euclides audiuntur Ausonii». Naturalmente a referência à tradução de textos de Pitágoras não deve ser tomada à letra, mas como um reconhecimento da filiação pitagórica do De Musica.

[2] Quod mundus stabili fide/ Concordes uariat uices,/ Quod pugnantia semina/ Foedus perpetuum tenent,/  Quod Phoebus roseum diem/ Curru prouehit aureo,/ Vt quas duxerit Hesperos/  Phoebe noctibus imperet,/ Vt fluctus auidum mare/ Certo fine coerceat,/   Ne terris liceat vagis/  Latos tendere terminos,/  Hanc rerum seriem ligat/ Terras ac pelagus regens/ Et caelo imperitans amor./  Hic si frena remiserit,/ Quidquid nunc amat inuicem/  Bellum continuo geret /   Et quam nunc socia fide /  Pulchris motibus  incitant,/ Certent soluere machinam./ Hic sancto populos quoque/ Iunctos foedere continet,/ Hic et coniugii sacrum./ Castis nectit amoribus,/  Hic fidis etiam sua /  Dictat iura sodalibus./ O felix hominum genus,/ Si uestros animos amor /  Quo coelum regitur regat.

[3] Vogel, “Amor quo coelum regitur”, Vivarium, I, 1963, p. 2‑34.

[4] Hesíodo, Theog., vv. 116‑138. Cf. Aristófanes, Au., 700‑704.

[5] O Fanes órfico é associado a Eros, cf. Kirk‑Raven, Os filósofos pré‑socráticos, Lx, 1979, p. 39.

[6] Vita Pythagorica, 229‑230: Φιλίαν δὲ διαφανέστατα πάντων πρὸς ἄπαντας Πυθαγόρας παρέδωκε, θεω̃ν μὲν πρὸς α̉νθρώπους δι΄ ευ̉σεβείας καὶ ε̉πιστημονικη̃ς θεραπείας, δογμάτων δὲ πρὸς  ἄλληλα  κὰι  καθόλου ψυχη̃ς πρὸς σω̃ημα λογιστικου̃ τε πρὸς τὰ του̃ α̉λόγου εἴδη διὰ φιλοσοφίας καὶ τη̃ς κατ΄ αυ̉τὴν θεωρίας, α̉νθρώπων δὲ πρὸ̀ς α̉λλήλους πολιτω̃ν μὲν διὰ νομιμότητος ὑγιου̃ς, ἑτεροφύλων δὲ διὰ φυσιολογίας  ο̉ρθη̃ς, α̉νδρὸς δὲ̀  πρὸς γυναι̃κα  ἢ τέκνα ἢ α̉δελφοὺς  καὶ οι̉κείους διὰ κοινωνίας α̉διαστρόφου συλλήβδην δὲ πάντων πρὸς ἅπαντας καὶ προσέτι τω̃ν α̉λόγων ζῴων τινὰ διὰ δικαιοσύνης καὶ φυσικη̃ς ε̉πιπλοκη̃ς καὶ κοινότητος, σώματος δὲ καθ΄ ἑαυτὸ  θνητου̃ τω̃ν ε̉γκεκρυμμένων αυ̉τῷ  ε̉ναντίων δυνάμεων ει̉ρήνευσίν τε καὶ συμβιβασμὸν δι΄ ὑγιείας καὶ τη̃ς ει̉ς ταύτην διαίτης  καὶ σωφροσύνης κατὰ μίμησιν τη̃ς ε̉ν τοι̃ς κοσμικοι̃ς στοιχείοις ευ̉ετηρίας.  ε̉ν πα̃σι δὴ τούτοις ἑνὸς καὶ του̃ αυ̉του̃ κατὰ σύλληψιν του̃ τη̃ς φιλίας ο̉νόματος  ὄντος, εὑρετὴς καὶ νομοθέτης ὁμολογουμένως Πυθαγόρας ἐγένετο, καὶ οὔτω θαυμαστὴν φιλίαν παρέδωκε τοι̃ς χρωμένοις, ὤστε  ἔτι καὶ νυ̃ν τοὺς πολλοὺ̀ς λέγειν ε̉πι τω̃ν σφοδρότερον ευ̉νοούντων  ἑαυτοι̃ς  ὅτι τω̃ν Πυθαγορείων ει̉σί.

[7] Écio, II, 1, 1 (Doxographi Graeci, p. 327 : Πυθαγόρας πρω̃τος ω̉νόμασε  τὴν τω̃ν όλων περιοχὴν κόσμον  ε̉κ τη̃ς  ε̉ν αυ̉τω̃ τάξεως . Sobre esta atribuição cf. Guthrie, A History of Greek Philosophy, I, Cambridge, 1962, p.208, nota 1.

[8] Sobre as relações de Platão com o Pitagorismo vide van der Waerden, Die Pythagoreer, Religiose Bruderschaft und Schule der Wissenschaft, Munchen, 1979, p.24 ss. e McClain, The Pythagorean Plato, Prelude to song itself, New York, 1978, que se ocupa sobretudo da questão musical. Embora Platão só nomeie Pitágoras em Rep., 600b, muito deve ao Pitagorismo. Boécio tem consciência disso quando lhe chama studiosissimus Pythagorae, no De Arithm., II, 41.

[9] Gorg., 507e: φασὶ δ΄ οί σοφοί, ω̉̃ Καλλίκλεις, καὶ ου̉ρανὸν καὶ γη̃ν καὶ θεοὺ̀ς καὶ α̉νθρώπους τὴν κοινωνίαν συνέχειν καὶ φιλίαν καὶ κοσμιότητα καὶ σωφρoσύνην καὶ δικαιότητα, καὶ τὸ ὅλον του̃το διὰ ταυ̃τα κόσμον καλου̃σιν, ω̉̃ ἑται̃ρε, ου̉κ  α̉κοσμίαν ου̉δὲ  α̉κολασίαν.

[10] Cícero, De Rep., VI, 18, 18: septem...qui numerus rerum omnium fere nodus est quod docti homines neruis imitati atque cantibus aperuerunt sibi reditum in hunc locum.

[11] Diels‑Kranz, 31B17, B33, B73, B86, B87, B95.

[12] Sobre o ciclo cósmico de Empédocles, em cuja tipologia de Eros se fundamenta, em nossa opinião, o ἔρως προνοητικός de Proclo, vide O'Brien, Empedocles' Cosmic Cycle, Cambridge, 1969.

[13] Diels‑Kranz, 31B27: έ̉νθ΄οὔτ η̉ελίοιο διείδεται ω̉κέα γυι̃α ου̉δὲ μὲν ου̉δ΄ αἴης λάσιον μένος ου̉δὲ θάλασσα· ούτως Άρμονίης πυκινω̃ι κρύφωι̉ στίρικται Σφαι̃ρος κυκλοτερὴς  μονίηι περιηγέι γαίων.

[14] Diógenes Laécio, VIII, 33: Τήν τ΄ α̉ρετὴν ἁρμονίαν ε̉̃ιναι καὶ τὴν ὑγίειαν καὶ τὰ α̉γαθὸν ἅπαν καὶ τὸν θεόν· διὸ καὶ καθ΄ ἁρμονίαν συνεστάναι τὰ  ὄλα̣ φιλίαν τ΄ εἶναι  ε̉ναρμόνιον  ι̉σότητα̣

[15] Diels‑Kranz, 44B6: ε̉πεὶ δὲ ταὶ α̉ρχαὶ υπα̃ρχον ου̉̉χ ὁμοι̃αι ου̉δ΄ ὁμόφυλοι ἔσσαι, ή̉δη α̉δύνατον ή̉ς κα αυ̉ται̃ς κοσμηθη̃ναι ει̉ μὴ ἁρμονία ε̉πεγένετο ὡιτινω̃ν ἅδε τρόπωι ε̉γένετο. Τὰ μὲν ω̃ν ὁμοι̃α καὶ  ὁμόφυλοι ἁρμονίας ου̉δὲν ε̉πεδέοντο τὰ δὲ α̉νόμοια μηδε ̀ ὁμόφυλα μηδὲ ι̉σοταγη̃ α̉νάγκα ται̃ τοιαύται ἁρμονίαι συγκεκλει̃σθαι, οἵαι μέλλοντι ε̉ν κόσμωι κατέχεσται. ἁρμονίας δὲ μέγεθος ε̉στι συλλαβὰ καὶ δι΄ ο̉ξεια̃ν· τὸ δὲ δι΄ ο̉ξεια̃ν μει̃ζον τα̃ς συλλαβα̃̃ ε̉πογδόωι. Έ̉στι γὰρ α̉πὸ ὑπάτας  ε̉πὶ μέσσαν συλλαβά,  α̉πὸ δὲ μέσσας  ε̉πὶ νεάταν δι΄ ο̉ξεια̃ν α̉πὸ δε νεάτας  ε̉ς τρίταν συλλαβά,  α̉πὸ δὲ τρίτας ε̉ς  ὑπάταν δι΄ ο̉ξεια̃ν·

[16] Sobre o descrédito a que os historiadores da Filosofia votaram estes textos, desde o séc.XIX, cf Vogel, Pythagoras and early Pythagoreanism, Assen, 1966, p. 1‑19.

[17] Platão, Lys., 214a‑215b, Aristóteles, Eth. Nic., 155b.

[18] mundana in his maxime perspicienda est, quae in ipso coelo uel compage elementorum uel temporum uarietate uisuntur.

[19] De musica, I, 2: Sunt autem tria. Et prima quidem mundana est; secunda uero humana; tertia quae in quibusdam constituta est instrumentis, ut in cithara uel in tibiis, caeterisque quae cantilenae famulantur. Et primum ea quae est mundana in his maxime perspicienda est quae in ipso coelo, uel compage elementorum, uel temporum uarietate uisuntur. Qui enim fieri potest, ut tam uelox coeli machina tacito silentique cursu moueatur? Et si ad nostras aures sonus ille non peruenit, quod [1172] multis fieri de causis necesse est, non poterit tamen motus tam uelocissimus ita magnorum corporum, nullos omnino sonos ciere, cum praesertim tanta sint stellarum cursus coaptatione coniuncti, ut nihil aeque compaginatum, nihil ita commixtum possit intelligi. Namque alii excelsiores, alii inferiores feruntur, atque ita omnes aequali incitatione uoluuntur, ut per dispares inaequalitates ratus cursuum ordo ducatur. Unde non potest ab hac coelesti uertigine ratus ordo modulationis absistere. Iam uero quatuor elementorum diuersitates contrariasque potentias, nisi quaedam harmonia coniungeret, qui fieri posset, ut in unum corpus ac machinam conuenirent? Sed haec omnis diuersitas ita et temporum uarietatem parit et fructuum, ut tamen unum anni corpus efficiat. Unde si quid horum, quae tantam uarietatem rebus ministrant, animo et cogitatione discerpas, cuncta pereant, nec (ut ita dicam) quidquam consonum seruent.

[20] Cf. Píndaro, Nem. IV, 44 ss, e fragmentos de Pratinas (frag.712 de Page) e Laso (frag. 702 de Page). Sobre a história da palavra ''harmonia'' uide Meyer, APMONIA, Bedeutungsgeschichte des Wortes von Homer bis Aristoteles, diss., Zurich, 1932.

[21] Aristóteles, De Cael., 290b12.

[22] A posição dos académicos contemporâneos é de aceitação da atribuição desta descoberta a Pitágoras. Cf. Guthrie, op.laud., p. 221, sobre a opinião dos historiadores da Filosofia.

[23] Sobre a música das esferas, harmonia mundi, há uma literatura sem fim. Os passos antigos mais importantes são: Platão, Rep., 617 b, Aristóteles, De Cael., II, 290b‑291; Cícero, De Rep., IX, 5; Quintiliano, Inst. Orat., I, 10, 12.

[24] Rep., 530d: Κινδυνεύει, ἔφην, ὡς πρὸς α̉στρονομίαν ὄμματα πέπηγεν, ὣς πρὸς ε̉ναρμόνιον φορὰν ὦτα παγη̃ναι, καὶ αὖται α̉λλήλων α̉δελφαί τινες αι ε̉πιστη̃μαι ε̉̃ιναι, ως οί τε Πυθαγόρειοί φασι καὶ ημει̃ς ,  ὦ Γλαύκων,  συγχωρου̃μεν.

[25] Crat., 405c: ὅτι ταυ̃τα πάντα, ώς φασιν οι κομψοὶ περὶ̀ μουσικὴν καὶ α̉στρονομίαν, ἁρμονία τινὶ πολει̃ ἅμα πάντα∙ ε̉πιστατεῖ δὲ̀ οὗτος ὁ θεὸς  τῇ ἁρμονία ὁμπολω̃ν αυ̉τὰ πάντα καὶ κατὰ θεοὺς και ̀κατ΄ α̉νθρώπους·

[26] Metaph., A 5, 990a.

[27] Cf. Kayas, G., «L’âme de l'univers et la musique dans le Timée de Platon», Bulletin de l'Association Guillaume Budé, Octobre, 1974, p. 287‑322. Taylor, em A Commentary on Plato's Timaeus, Oxford, 1928, defendeu mesmo a tese de que todo o texto do Tim.  era um documento do Pitagorismo do séc. V. Cf. Guthrie, op. laud., p. 214, nota 1.

[28] De An., 407b27‑32 (= Diels‑Kranz, 44A23): Καὶ̀̀ ἄλλη δὲ τις δόξα παραδέδοται περὶ ψυχη̃ς (...) ἁρμονία γάρ τινα αυ̉τὴν  λέγουσι . καὶ γὰρ τὴν ἁρμονίαν κρα̃σιν καὶ σύνθεσιν ε̉ναντίων εἶναι καὶ τὸ σω̃μα συγκει̃σται ε̉ξ ε̉ναντίων.

[29] Pol., 1340b18 (= Diels‑Kranz, 58B41): διὸ πολλοί φασι τω̃ν σοφω̃ν οἱ μὲν ἁρμονίαν εἶναι τὴν ψυχήν, οἱ δ΄ ἔχειν ἁρμονίαν.

[30] Phd., 86b: κρα̃σιν εἶναι καὶ ἁρμονίαν αυ̉τω̃ν τούτων τὴν ψυχὴν ἡμω̃ν, ε̉πειδὰν ταυ̃τα καλω̃ς καὶ μετρίως κραθη̃ πρὸς  ἄλληλα.

[31] V.P., 53a2.

[32] Cf. Diels‑Kranz, 44B6.

[33] Macróbio, Comm. S. Scp., I, 14, 19 (= Diels‑Kranz, 44A23): Pythagoras et Philolaus harmoniam (animam esse dixerunt). Contra a ideia de que a alma individual como harmonia seja pitagórica vide Frank, Plato und die sogennante Pythagoreer, Halle, 1923, p.10ss, que defende que os Pitagóricos conhecidos por Platão foram beber esta ideia a Demócrito. No entanto Jaeger, partindo de um passo de Aristóteles, Metaph., A 5, 985b23, chama a atenção para o facto de estes Pitagóricos serem contemporâneos ou anteriores a Leucipo, Demócrito e Anaxágoras, o que os coloca practicamente na época de Pitágoras, no séc.VI. Cf. Paideia, Lisboa, s/d, p. 190, nota 20.

[34] Cornford, «Mysticism and Science im the Pythagorean tradition», The Classical Quaterly, 16, 1922, p.146 e Eisler, Orphisch‑dionysischen Mysteriengedanken in der  chistlichen Antike, Leipzig, 1925, p. 65, nota 6.

[35] Delatte, Les conceptions de l'enthousiasme chez les philosophes présocratiques, Paris, 1935, p.43 ss.

[36] Boyancé, Le culte des Muses chez les philosophes grecs, p.178‑ ‑179.

[37] Diels‑Kranz, 31A86.

[38] Chamberlain, «The Philosophy of Music in the Consolatio of Boethius», Speculum, 16, 1970, p. 92, nota 69.

[39] Boyancé, op.laud., p.104 ss.

[40] Delatte, Etudes sur la littérature pythagoricienne, Paris, 1915, p. 262. Sobre a catarse vide Eisler, op. laud., p. 68ss  e Schul, Essai sur la formation de la pensée grecque, Paris, 1934, p.251.

[41] V.P., 137: καὶ́ ὁ λόγος οὗ̃τος ταύτης ε̉στὶ τη̃ς φιλοσοφίας.

[42] Phd., 61a: ὡς φιλοσοφίας μὲν οὔσης μεγίστης μουσικη̃ς.

[43] Rep., 431e: Ὁρᾷς οὖν,  ἦν δ΄ ε̉γώ́ , ὁτι ε̉πιεικω̃ς  ε̉μαντευόμεθα ἄρτι ὡς  ἁρμονία τινὶ ἡ σωφροσύνη ὡμοίωται; Cf. Ainda Rep., 432a.

[44] Meibom, p.116.

[45] Aristóteles refuta a teoria pitagórica da música dos planetas no De Cael., 290b‑291a, embora a ache interessante e não ponha em dúvida que as distâncias interplanetárias encerram proporções numéricas. Segundo ele não é o movimento que produz o som, mas a fricção, rebatendo o principal argumento da tradição pitagórica e boeciana. Durante a Idade Média far‑se‑á sentir a influência de Boécio, tendo a música das esferas sido entendida como som até à difusão do aristotelismo graças aos tradutores árabes. Em Bacon, Odington, Grocheo e Jacob de Liège vamos encontrar já a interpretação alegórica que nós próprios fazemos, ou seja, uma música dos planetas entendida como puramente intelectual, uma metaphorica locutio .Cf. Bufkozer, «Speculative thinking in mediaeval Music», Speculum, 17, 1942, p.166.

[46] Aristóteles debruça‑se sobre as funções da Música e o seu valor educativo sobretudo no Pol., VII e VIII. Recusando a ideia do mundo (cf. nota anterior) e da alma enquanto harmonia (De An., 408a5‑10), atém‑se à sensação e à música prática, que preenche várias funções. A sua função educativa consiste em proporcionar uma via para a excelência intelectual e moral. Nós temos uma certa afinidade com os modos e os ritmos (Pol., 1340b), os quais podem conduzir o indivíduo a uma evolução moral, se for posto em contacto com música adequada para este fim, pois as melodias são imitações dos caracteres (ibid., 1340a); por outro lado a Música conduz‑nos a discernir a excelência e a obter prazer correctamente (ibid., 1340a), as duas formas da racionalidade e inteligência que são o objectivo do nosso ser (ibid., 1334b). O caminho para esta excelência intelectual ligada ao lazer é denominado philosophia (ibid., 1334a), no sentido de uirtus intellectualis. A Música é, portanto, uma forma de Filosofia.

[47] Schrade, «Music in the Philosophy of Boethius», The Musical Quarterly, 32, 1947, p. 194‑195. Segundo Schrade a música é apresentada no De Mus. como um instrumento, uma preparação para a Filosofia, seguindo a tradição platónica, mas que nos tratados lógicos e teológicos Boécio segue a tradição aristotélica, apresentando‑a como uma parte da Filosofia.

[48] De Mus., II, 3: quantitatis ad aliquid uero relatae musica probatur obtinere peritiam; De Arithm., I, 1: Musica uero quam prior sit numerorum uis, hinc maxime probari potest, quod non modo illa natura priora sunt, quae per se constant, quam illa, quae ad aliquid referuntur.

[49] Cf. Pietzsch, Die Klassifikation der Musik von Boethius bis Ugolino, Studien zur Geschichte der Musik‑Theorie em Mittelalter, Halle, 1929.

[50] Bieler, Consolatio Philosophiae, Turnhout, 1984, p. 112 e Sulowski, «Les sources du De consolatione», Sophia, 24, 1957, p. 76‑85.

[51] Chamberlain, op. laud., p. 80‑88.

 

Bibliografia

 

ARISTÓTELES, De Anima, ed. W.Ross, Oxford, 1957.

____________, De Caelo, ed. D. Allan, Oxford,1955.

____________, Ethica Nicomachea, ed. I. Bywater, Oxford, 1959.

____________, Metaphysica, ed. W. Jaeger, Oxford,1960.

____________,  Politica, ed.Ross, Oxford, 1957.    

____________, Problemata, ed. C. Ruelle, Leipzig, 1922.

BOÉCIO, De Institutione Musica, ed. G. Friedlein, Leipzig, 1867.

____________, De Consolatione Philosophiae, ed. C. Moreschini, Leipzig, 2005.

____________, Consolatio Philosophiae, ed. L. Bieler, Turnhout, 1984.

BUFKOZER, M.F., «Speculative thinking in Mediaeval Music»,  Speculum, 17, 1942, p. 165-180.

CHAMBERLAIN, D. S., «Philosophy of Music in the Consolatio of Boethius», Speculum, 14, 1970, p. 80 -97.

CICERO, De Republica, ed. K. Ziegler, Leipzig, 1969.

____________, De Legibus, ed. C. Keyes, London, 1970.

CORNFORD, F. M., «Mysticism and Science in the Pythagorean Tradition», The Classical Quarterly, 1922, p.137-150 e 1923, p. 1-12.

CORNFORD, F. M., Plato’s Cosmology, London, 1937.

DELATTE, A., Etudes sur la littérature  pythagoricienne, Paris, 1915.

____________, Les conceptions de l'enthousiasme chez les philosophes présocratiques, Paris, 1935.

DIELS, H.,(ed.) Doxographi Graeci, Berlin, 1958.

DIELS, H. e KRANZ (ed.), W., Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin, 1956 (8ªed.).

DIOGENES LAÉRCIO, Vitae Philosophorum, ed. H. Long, Oxford, 1964.    

HESIODO, Theogonia, ed. F. Solmsen, Oxford, 1970.

HOMERO, Odyssea, ed. P. Muhll, Stuttgart, 1984.

EISLER, R., Orphisch dionysichen Mysteriengedanken in der christlichen Antike, Leipzig, 1925.

FRANK, E., Plato un die sogennanten Pythagoreer, Halle, 1923.

GUTHRIE, W. K. C., A History of Greek Philosophy, vol.I,   Cambridge, 1967.

JAEGER, W., Paideia, Berlin, 1936.

JAMBLICO, De Vita Pythagorica, ed. L. Dubner, Leipzig, 1985.

KIRK, G. e RAVEN, J., The Presocratic Philosophers, Cambridge, 1966.

MACROBIO, Commentarii in Somnium Scipionis, ed. Jacob Willis, Leipzig, 1963.

MCCLAIN, E. G., The Pythagorean Plato. Prelude to song itself, New York, 1978.

MEIBOM, M., Antiquae Musicae Auctores Septem, Graece et Latine, Amsterdam, 1652.

MEYER, P. B., APMONIA, Bedeutungsgeschichte des Wortes von Homer bis Aristoteles, diss. Zurich, 1932.

MOMMSEN, T. (ed.), Monumenta Germaniae Historica, A. A., München, 1978 -1984.

O'BRIEN, D., Empedocles’ Cosmic Cycle, Cambridge, 1969.

PAGE, D. L., Poetae Melici Graeci, Oxford, 1967.

PlATAO, Cratylus, ed. J. Burnet, 1958.

____________, Gorgias, ed. Burnet, Oxford, 1957.

____________, Leges, ed. Burnet, Oxford, 1959.

____________, Lysis, ed. Burnet, Oxford, 1957.

____________, Phaedo, ed. Burnet, Oxford, 1958.

____________, Respublica, ed. Burnet,Oxford, 1957.

____________, Timaeus, ed.Burnet, Oxford, 1957.

PINDARO, Nemea, ed. B. Snell e H. Maelher, Leipzig, 1971.

SCHRADE, L., «Music in Philosophy of Boethius», The Musical Quarterly, 33, 1947, p.188-200.

____________, «Das Propadeutische Ethos in der Musikanschauung des Boethius», Zeitschrift für Geschichte der Erziehung  und des Unterrichts, 30, 1930, p. 179 215.

SULOWSKI, J.F., «Les sources du De Consolatione Philosophiae de Boèce», Sophia, 24, 1957, p. 76-85.

VOGEL, C. J., Pythagoras and early Pythagoreanism, Assen, 1966.

WAERDEN, B. L. van der, «Die Harmonielehre der Pythagoreer»,  Hermes, 78, 1943, p. 163-199.

Partilhe:
Facebook, Twitter.
Leia depois:
Kindle