Sempre tive uma grande curiosidade, talvez não muito saudável, pelas pessoas que eu considerava não terem sentido de humor. Não estou a referir-me àquelas que não se exprimem por timidez ou às outras, verdadeira legião, que vivem na solenidade, desconfiadas do humor que insinua um desrespeito, uma irrisão desestabilizadora da interacção protocolar e mesmo da própria vida; também não me refiro às que riem para dentro, nessa intimidade insondável consigo mesmas, ou que de alguma maneira não toleram bem o prazer de partilhar uma situação caricata ou um dito de espírito. Em contrapartida, quem se ri, ri de alguma coisa, e esse alguma coisa tende a ser idiossincrático. Há quem goste de ver cair carteiros, há quem corra aflito a ajudá-los mas se delicie a ouvi-los gaguejar. A minha curiosidade dirige-se a quem não acha graça a nada e isto não por razões clínicas ou psicológicas extremas, mas por definição e condição. A verdade é que não conheci muitas, talvez em virtude da estreiteza do meu círculo de actividades e experiências, sendo verdade que é mais fácil encontrar palhaços no circo do que no Banco de Portugal. De qualquer maneira, uma pessoa sem sentido de humor é um desafio. Acaba por atacar os nervos de quem comica, provocando-lhe um incómodo porventura traduzido numa vertigem drolática que, no desespero, perde qualidade no que ganha em intensidade. Não parece haver uma explicação para o fenómeno. Há uma teoria multimilenar dos humores, mas o humor por antonomásia não aparece nesses compêndios.
Com a industrialização da comédia, por exemplo, parece-me que este microcosmos de gente que não tem sentido de humor terá uma vida cada vez mais difícil. Não será, com certeza, por acaso, que a Wikihow propõe uma entrada pragmática, que em brasileiro (o brasileiro já de si é um suplemento humorístico) se intitula «como ter senso de humor?» e elenca os comportamentos a ter para não ser ostracizado e, em suma, viver uma vida mais plena. Primeiro, propõe o autor anónimo, é necessário entender o humor, identificando os seus benefícios, reconhecendo as diferenças entre ser engraçado e ter «um senso de humor». Tudo isto é vão se o suplicante não conhecer o seu próprio senso de humor, o que será digamos «complicado», caso o não tenha. É aí que ele deve observar e aprender, com a família e com os amigos, a reacção humorosa aos acontecimentos do dia a dia. Lá vem, a certa altura, a dica simples de «aprender a sorrir», olhar sempre para o lado positivo da vida, e o imperativo de ser espontâneo que vai de mão dada com o «aprender a contar piadas».
O humor como complemento e como suplemento
Vem todo este arrazoado ao caso da minha perplexidade quando se me pergunta em entrevista «e o humor?». Depois da conversa informativa, o que escrevi e onde e quando, e a que horas e com que caneta, quem pergunta faz uma pausa reflexiva e avança: «… e depois tem aquele humor». A ideia que se vislumbra é a de que o humor é uma espécie de acrescento, um anexo de verão, um olho que se pode pôr e tirar, um complemento literário que opera uma espécie de suplementação vitamínica do texto. Tentei fazer este exercício da extracção do humor em poemas do O´Neill, usando o método do Rei Ubu, («torção do nariz, arrancanço dos cabelos, penetração do pauzinho nas onelhas»), mas não se mostrou eficaz. Vejamos o seguinte poema, «O Rato e o Anjo», que Tabucchi cita na introdução da edição da antologia Tomai Lá do O’Neill:
Cai ao anjo a pena,
ao rato o pelame.
Um regressa ao seu enxame,
o outro à sua cavernaE o português, desanjado,
Já se vê desratizado.
Chora.
Por onde começar a extracção? O tema, já de si, tem algo de cómico, começando por emparelhar anjos e ratos, que abandonam o português à mercê do seu próprio pranto. Percebe-se que não se irá longe na extracção do humor. Será possível um O’Neill desengraçado? Será possível um O’Neill sem a imaginação humorística (e política, já agora) de concluir que o português chora sem a companhia dos ratos que lhe calharam em sorte? Será justo considerá-lo como o grande poeta de «Um Adeus Português», poema hoje de carácter acentuadamente museológico e também autor de uns escritos facetos que trazem o país ao tribunal do humor? O que acontece, e será paradoxal, é que, na mesma medida em que aligeira, o humor vai menorizando o texto. Menorizar não é a palavra certa, porventura, mas a ideia é essa. Tudo o que tem o valor facial dramático, ou mesmo trágico, a angústia do cárcere em um adeus português, ou a pestilência da mosca Albertina, do seu insulto, por única companhia, parece perder grandeza e agudeza ― e embotar-se na maneira da sua expressão. Aquilo que está dito de uma forma radicalmente humorística, da escolha do tema à subversão das figuras, traz em si, pelos hábitos da recepção e do contexto cultural que subvaloriza o humor como algo suplementar, a sua própria destruição como expressão genuína do sofrimento. Não é amor que arde sem se ver, coisa legítima e eminentemente reconhecível com que todos podemos identificar-nos sem esforço, é um rato para cada português, um anjo da guarda, e a sua relação apocalíptica. Estabelecendo-se no reino da irrisão, o poema vai aparentemente fazendo uma invalidação dos problemas que põe. Como em «Rir, Roer», esse enigmático texto que à maneira de um cânone arraçado de manto de Penélope, faz e desfaz o que fez atirando de pergunta em pergunta o isco ao mistério.