A MINHA TERRA

A casa onde moro entala-se entre duas auto-estradas que vão de Lisboa ao Porto. Dois terços do jardim, outrora um recanto de paz, deram lugar ao IC36 porque foi necessário ligar essas duas autoestradas, a A1 à A8. Mas os amigos que me visitam e chegam à cidade de Expresso (os comboios existem, mas são verdadeiros fantasmas) precisam que eu os recolha de carro porque não há transportes públicos entre estas aldeias que se estendem da serra ao mar.

A minha família materna, avó e mãe tremoceiras calcorreando caminhos serranos de festa em festa, sempre teve uma banca de frutos secos no mercado da cidade de Leiria. O Mercado de Santana foi na minha infância, e parte da juventude, o coração leiriense alimentado por vendedeiras vindas de toda a região, trazendo os legumes do Valado, as azeitonas e figos de Torres Novas, o peixe da Figueira e da Nazaré amanhado por peixeiras da Vieira onde nasceu meu pai. Foram as memórias intensas destas pessoas e da sua relação vital com o território que me levaram a deixar Lisboa onde vivi 15 anos para voltar a Leiria. Hoje a cidade tem um grande shopping, e dois outros estão quase a abrir. Os mercados morreram, como as mercearias de rua. Mas as tremoceiras não.

Descemos a serra de Santo António até ao Atlântico e somos acolhidos por um aromático pinhal histórico onde agora, em tempo de eleições, se apanham camarinhas. Neste pinhal do rei houve um festival de artes para bebés que morreu ainda criança, com sete edições de idade, porque o governo do país vende ilusões e pinheiros, aluga sombras, mas não compra arte, que desconhece, e os bebés ainda não votam. O investimento foi todo para o grande templo do futebol que agora definha ao lado do castelo, como definharão por muitos anos as contas públicas leirienses que pagam os juros da obra, e as gerações que deixam de ver, ouvir e ler. Ignorámos as prioridades e o essencial pelo capricho de receber dois jogos do Europeu. Não há mais futebol na cidade, mas os recordes de atletismo aumentaram.

Contudo, as intempéries forjam sempre pessoas novas, e com elas novas vontades. Cresceu o associativismo cultural e artístico e emergiram talentos e projectos que já são hoje alimento para outras gerações. Importa que governo central e autarquias dêem espaço à cidadania e partilhem recursos com as associações locais. O Instituto Politécnico de Leiria pode reforçar as suas estratégias de acção num envolvimento efectivo com a comunidade, oferecendo-se também como um espaço de reflexão e resposta aos problemas reais das pessoas e da região. Renovar e investir na linha férrea do Oeste, e promover uma rede articulada de transportes públicos, é essencial para uma região que precisa de se tocar. Estruturar o ordenamento do território em função dessa rede pública é resolver, a longo prazo é certo, mas resolver também de forma sustentada, as redes de ensino, de saúde e da justiça. Cuide-se das identidades das aldeias e cidades, e permita-se que se possa voltar a viver de novo na serra e no pinhal. Podem abrir mais shoppings, mas invista-se na renovação do comércio local. Tremoços, de conserva e sem gosto, compram-se nos shoppings, é certo — mas nunca vi uma tremoceira num desses lugares. É no encontro com a tremoceira que está a riqueza e o prazer de comer tremoços, enfiadas de pinhão e pevides de abóbora. Como o é no encontro com a peixeira que vende carapau seco à beira mar. É no encontro.

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