Introdução

Uma boa parte do actual panorama da epistemologia feminista lida com injustiças hermenêuticas, após a publicação em 2007 de Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing, de Miranda Fricker, passou a ser dirigida uma especial atenção às lacunas conceptuais (injustiça hermenêutica) e à desvalorização e desconsideração de grupos oprimidos enquanto fontes de conhecimento (injustiça testemunhal).[1]

O discurso resultante centra-se em conhecimento teórico ou conceptual, a que podemos chamar, para simplificar, «saber que» (knowing that). Em contrapartida, é mais difícil filosofar em torno de conhecimento mais concreto, prático e até emocional―ou aquilo a que podemos chamar «saber como» (knowing how). Gostaria de analisar especificamente o fenómeno de conhecimento incorporado que Iris Marion Young explora no livro Throwing Like a Girl (1980). Nele, Young descreve aquilo a que gostaria de chamar desigualdade fenomenológica, segundo a qual as mulheres são socializadas de forma a experienciarem os seus corpos de um modo diferente dos homens, nomeadamente através de inibições físicas e psicológicas que, por sua vez, afectam a dinâmica entre a nossa existência física e agência. O resultado é uma dissonância entre aquilo que sabemos, isto é, que dispomos dos mesmos direitos, legitimidade e liberdades dos homens, e aquilo que sentimos: que não somos tratadas da mesma forma, nem nos sentimos seguras ou confiantes o suficiente para agir como deveríamos. Aqui encontramos um tipo de problema epistemológico diferente: sabemos que somos sujeitos, mas não sabemos necessariamente como pôr em prática esse conhecimento.

Este tipo de conhecimento prático, ou saber-fazer (know-how), não é algo que possa ser simplesmente tratado intelectualmente. Em vez disso, precisamos de intervenções práticas. E apesar de não haver um só ponto de partida, neste ensaio defendo que o cinema nos pode oferecer uma dessas possibilidades.[2]  Contrariando algumas das linhas de pensamento mais proeminentes da teoria fílmica feminista, Mad Max: Fury Road é um exemplo no qual não só as mulheres não são objectificadas, como são efectivamente tidas como agentes nas diferentes dimensões do filme: desde as personagens e enredo, até à imagética e fotografia.

A abordagem que adopto face à teoria fílmica é cavelliana; uma abordagem que entende que qualquer boa teorização sobre cinema deve corresponder às experiências do público real. Qualquer membro do público poderá invocar o estatuto de crítico e, ao sublinhar os aspectos mais importantes sobre um filme e a sua experiência do mesmo, está não só a falar por si próprio como a falar por nós. Aquilo que julga ser importante num filme é também o que é importante, ponto final. Desta forma, a crítica convida o leitor a entrar num diálogo sobre como compreendemos e experienciamos o cinema.[3]

A minha proposta está longe de ser exaustiva. Em vez disso, o meu objectivo, ao reflectir sobre a minha experiência de assistir a Fury Road é iniciar um diálogo filosófico sobre este filme, e propor uma conversa mais alargada sobre possibilidades representativas para mulheres.

 

Desigualdade Fenomenológica

É inegável que, nos últimos dois séculos, os movimentos feministas alcançaram uma quantidade significativa de conquistas objectivas na luta contra a opressão sistémica. Já não questionamos (pelo menos nos países ocidentais) se as mulheres têm direito à educação. Muitas mulheres no Canadá, o meu país de origem, usufruem do direito ao voto desde 1918 (o Quebeque só o adoptou nos anos 40)[4] e, tecnicamente, do direito à remuneração igual desde 1951.

Ainda assim, as mulheres são frequentemente mal remuneradas, não ocupam posições de liderança, são remetidas para trabalhos particularmente administrativos, entre muitas outras coisas. Tal como a epistemologia feminista clássica e outras disciplinas afirmam, grande parte destas desigualdades  nasce da miríade de maneiras como as mulheres são consideradas menos capazes. Esta disparidade entre géneros perpetua não só uma desigualdade material como uma desigualdade fenomenológica. Manifestamente, as mulheres são iguais e, em teoria, têm direito às mesmas coisas e ao mesmo tratamento que os homens. Mas isto não significa que saibamos como incorporar esse conhecimento.

Em Throwing Like a Girl (1980), Iris Marion Young defende que as formas como somos socializadas nos nossos corpos têm um impacto directo na maneira como experienciamos a nossa subjectividade. Nomeadamente, argumenta Young, o facto de as mulheres serem encorajadas desde a infância a ocupar menos espaço do que os homens é algo que, por sua vez, inibe o seu sentido de autonomia e agência.

O ensaio de Young constitui uma resposta à análise do antropólogo Erwin Straus sobre os motivos pelos quais os rapazes de onze anos usam todos os movimentos corporais quando atiram uma bola, ao contrário das raparigas da mesma idade. Desprovido de provas biológicas que possam sustentar a sua observação ― afinal de contas, nesta idade, os dois géneros são fisicamente semelhantes ― Straus conclui de modo bastante insatisfatório que a causa está no «comportamento feminino» que informa a propriocepção das raparigas. Em suma, Straus, um cientista social prestigiado, admite prontamente como justificação algo tão metafisicamente inconsistente como a «essência feminina», em lugar de qualquer investigação aprofundada.

Como seria de esperar, Young considera esta explicação muito pouco convincente. E defende que examinar um aspecto tão básico da experiência do quotidiano como este poderá também ajudar a compreender outras experiências gerais e justapostas, do dia-a-dia de pessoas que se identificam como mulheres. Por outras palavras, o foco de Young é a construção material social, em vez de qualquer justificação biológica ou metafísica.[5]

Apesar de o objecto de estudo de Straus serem raparigas mais novas, Young sugere que este tipo de inibição se estende aos comportamentos adultos femininos: os nossos passos são mais curtos, sentamo-nos com as pernas mais fechadas e, ao contrário dos homens, que costumam estar de peito e braços abertos, as mulheres cruzam muitas vezes os braços sobre o corpo, num gesto de protecção, transportando objectos contra o peito, tais como livros, enquanto os homens os levam, balouçantes, na mão. Com frequência, não aplicamos todo o nosso esforço, amplitude de movimentos ou força para empurrar ou levantar pesos. Aliás, mesmo antes da acção ter lugar, as mulheres antecipam que serão mais fracas, frágeis e menos capazes do que os seus contrapartes masculinos. Sentimo-nos nervosas com os nossos próprios corpos e posicionamo-nos acima ou fora destes, como se se tratassem de uma ferramenta que não temos confiança para manejar.[6] Em suma, Young alega a existência de um círculo vicioso (feedback loop); uma associação entre a forma como nos sentimos acerca de nós próprias e das nossas capacidades, e a nossa habilidade para executar tarefas no espaço. E no entanto, quando as mulheres se libertam desta inibição, são muitas vezes surpreendidas pelas suas próprias capacidades.

De forma a organizar a sua análise, Young recorre a alguns dos princípios fundamentais da abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty. Segundo Merleau-Ponty, a agência é experienciada no corpo, não existindo de forma separada deste. A sensação de se mover através do próprio corpo, e não sobre o próprio corpo, é central na sua noção de subjectividade. No seu entender, os nossos corpos contêm sempre possibilidades de acção. Isto relaciona-se intimamente com aquilo a que chama «intencionalidade», uma noção de «eu consigo» face aos ambientes nos quais nos inserimos. Mesmo quando estamos parados temos uma noção de como nos podemos mover, e do que, movendo-nos, seríamos capazes de fazer. Além disto, não pensamos em movimento de forma desarticulada; aliás, quando agarramos qualquer coisa, fazemo-lo numa unidade de movimento. A noção que tenho de mim própria não é somente uma noção corporal, mas de um agente num espaço que me rodeia, um agente no mundo, que permite aquilo que Merleau-Ponty descreve como «transcendência». Por outras palavras, a minha agência não compreende somente os meus pensamentos, ou o meu corpo, estendendo-se desde o meu corpo até ao meu contexto.

Em contrapartida, as mulheres são ensinadas a estar permanentemente conscientes dos seus corpos, a ser cuidadosas e cautelosas com eles e a protegê-los. Isto, por sua vez, cria um obstáculo à consciência pré-reflexiva. Em vez de simplesmente nos experienciarmos enquanto agentes, experienciamo-nos (talvez mais veementemente) enquanto coisas sobre as quais se pode agir. Projectamos simultaneamente quer uma noção de «eu consigo» quer de «eu não consigo».

O que Young procura defender é que as mulheres são «naturalmente» assim, em decorrência da biologia ou de uma «essência» misteriosa; a seu ver, é antes a nossa socialização que nos leva a estes modos de nos relacionarmos com os nossos corpos e com o nosso contexto. As mulheres não são tão encorajadas a praticar desportos, nem é esperado de nós que façamos trabalhos físicos exigentes. Aprendemos a sentar-nos de pernas cruzadas, a comportarmo-nos, a inclinar a cabeça para o lado e a fazer gestos de uma maneira feminina. Se não o fizermos, arriscamo-nos a ser alvo de críticas duras, assédio e até de agressão. Três décadas antes de Young, Simone de Beauvoir expressou a mesma frustração: «Tudo a incita a deixar-se investir, dominar por exigências estranhas […] Diga-se mais uma vez: para explicar as suas limitações, é portanto a sua situação que cabe invocar, e não uma essência misteriosa» (Beauvoir 2008 [1949], 570-571). Esta realidade corporal infiltra-se no nosso próprio sentido de auto-percepção, criando uma tensão entre imanência e transcendência. Para nossa segurança, é esperado que antecipemos o modo como somos vistas e, por isso, o modo como seremos tratadas. Na verdade, as mulheres são frequentemente feitas sentir-se responsáveis por evitar ataques que lhes são dirigidos ― facto pelo qual a polícia de Londres foi altamente criticada, depois de ter aconselhado as mulheres a «ficar em casa» depois do homicídio de Sarah Everard em 2021 (Goodwin 2021). Não podemos descontrair de forma a desenvolver uma maior noção de agência, para o caso de sermos atacadas e, mais tarde, culpadas pelo mesmo ataque que não fomos capazes de prevenir.

 

Opressão Representacional

Hoje em dia, é comum falar-se do «olhar masculino» (male gaze) nas discussões críticas sobre produção cultural, especialmente naquelas em torno do cinema. Originalmente cunhado por John Berger na sua série Ways of Seeing ― e, mais tarde, popularizado por Laura Mulvey no seu ensaio de 1975, «Visual Pleasure and Narrative Cinema» ― esta expressão refere-se à forma como os homens são encorajados a ser observadores activos, enquanto as mulheres são relegadas à condição de objectos para os quais se olha. Como resultado, qualquer membro do público, independentemente do seu género, é posicionado mediante o olhar masculino. Como tal, os filmes antecipam e atendem ao olhar masculino, normalizando as expectativas que lhe são inerentes.

A análise de Mulvey diz respeito ao cinema, mas o conceito é facilmente aplicável além dos cânones fílmicos. Esta noção oferece uma lente através da qual é possível compreender melhor as representações de mulheres que, apesar de nos encorajarem a internalizar o olhar masculino, não impedem que frequentemente nos sintamos à mercê dos homens, o que expõe a tensão entre aparência e realidade. No seu livro de 1972, Ways of Seeing, o crítico de arte e teórico John Berger alude às observações de Beauvoir para explicar a raiz cultural do conceito:

A presença de um homem é a sugestão do que ele pode fazer pelo outro ou ao outro. […] Em contraste, a presença da mulher expressa a atitude que ela toma para consigo mesma, esclarecendo desde logo o que pode ou não ser-lhe feito. […] A visibilidade social das mulheres foi sendo aprimorada como resultado da astúcia empregada para conseguirem viver sob essa tutela em espaços tão restritos. Tal foi possível a troco da cisão em duas partes da personalidade feminina. A mulher deve continuamente prestar atenção a si mesma. […] E é assim que ela é levada a considerar a escrutinadora e a escrutinada que traz dentro de si como as duas partes constitutivas, embora sempre distintas, da sua identidade como mulher. (Berger 2018, 60)

Esta consciência bipartida que Berger descreve foi chamada «dupla consciência» por W. E. B. DuBois no âmbito da Teoria Crítica da Raça, segundo a qual os oprimidos internalizam o olhar dos opressores. Os primeiros raramente, ou talvez nunca, se situam no seu corpo ou experiências sem uma consciência paralela de como podem ser vistos. O «olhar masculino» não é, por isso, uma força puramente exterior; é parte constitutiva da própria noção que as mulheres têm de si mesmas, e está no cerne da desigualdade fenomenológica que elas experienciam. Esta desigualdade fenomenológica produz resultados concretos: as mulheres inibem-se e autocensuram-se antes que qualquer outra pessoa tenha a oportunidade de o fazer.

Longe de oferecer representações neutras de como as mulheres «realmente são», as convenções sociais e os cânones cinematográficos naturalizam uma realidade de género socialmente construída. Olhemos, por exemplo, para a distinção que Berger faz entre a nudez e a primazia do «nu», argumentando que a maioria das representações de mulheres na arte Ocidental são nus: não são retratadas pela sua subjectividade, mas pela sua subserviência. São muitas vezes representadas a olhar para fora da tela, na direcção do espectador (normalmente o artista ou o proprietário da pintura), insinuando a sua submissão perante este.

Estas mulheres são valorizadas em função do estatuto que concedem ao observador e pela capacidade que têm de o seduzir, não por serem indivíduos com algum tipo de subjectividade relevante. Estar nu é «ser quem se é», ao passo que ser um nu «é deixar-se ver desnudado e, ainda assim, não ser reconhecido por aquilo que se é» (Berger 2018, 69). Em contrapartida, ao representarmos as mulheres como seres imperfeitos ― leia-se, seres humanos ― estamos a subverter uma longa tradição daquilo a que podemos chamar «opressão representacional».

A pertinência das observações de Berger e Mulvey veio influenciar inúmeras outras formas de análise fílmica. A objectificação da mulher foi amplamente exposta através do teste Bechdel-Wallace, originalmente ilustrado na banda desenhada de Alison Bechdel, Dykes to Watch Out For, numa tira de 1985 intitulada «The Rule» (Hooton 2015). O teste funciona como um barómetro simples das formas como as mulheres são retratadas nos meios de comunicação mainstream. Para que um filme ou uma série «passem» o teste, é necessário que incluam duas personagens femininas, com nomes, que falem uma com a outra, pelo menos uma vez ao longo da história, sobre outra coisa que não um homem. E mesmo com esta fasquia tão baixa, a maioria dos filmes não passa o teste. A conclusão é clara: o papel das mulheres no cinema é quase sempre decorrente ou subordinado ao dos protagonistas masculinos.

A preocupação de Mulvey prende-se com o facto de, ao nos identificarmos com a perspectiva da câmara, sermos inevitavelmente levadas a objectificar as personagens femininas, comprazendo-nos também com os corpos das mulheres enquanto objectos. E apesar de Mulvey não defender que seja impossível reverter esta objectificação aparentemente inevitável, a implicação subjacente no seu trabalho é algo fatalista.[7] O teste de Alison Bechdel vem reforçar a ubiquidade desta objectificação. E a pergunta que me parece premente é: será que nos conseguimos libertar deste círculo vicioso, e, se sim, como?

Mad Max: Fury Road é um filme que recusa moldar-se pelo olhar masculino. E, ao fazê-lo, não só liberta as suas personagens do estatuto de objectos, como exemplifica uma medida de intervenção no círculo vicioso que define a desigualdade fenomenológica das mulheres.

 

Libertação Representacional

As observações que se seguem constituem uma reflexão, não só sobre aquilo que considero importante para o filme, mas também sobre a experiência de o ter visto. Além de retratar, de facto, as mulheres enquanto sujeitos, e não enquanto objectos, Fury Road ilustra também como é que as mulheres podem ser sujeitos capacitados. E fá-lo, não só através do seu conteúdo ― no qual se incluem tanto as personagens como a construção do enredo ― mas também, e principalmente, pela sua forma narrativa, uso de imagética e técnicas cinematográficas. O filme está deliberadamente em diálogo com a representação histórica das mulheres, ao mesmo tempo que convida o público a olhar de forma diferente para esses tropos.

A acção passa-se vários anos após a queda da civilização. O mundo ficou reduzido a condições desérticas e hostis à vida, principalmente graças a Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), o déspota tirânico da fortaleza Citadel que controla todos os recursos, incluindo o acesso à água. «Aquacola», como ele lhe passa a chamar, é transformada num produto que é só seu e que só ele distribui. A aparente simplicidade do argumento é satisfatória: Imperator Furiosa (Charlize Theron), um dos tenentes de Immortan Joe, é enviada no seu camião blindado numa missão de recolha de gasolina e munições, até às localidades próximas de Gas Town e Bullet Farm. Sem Joe saber, Furiosa leva cinco das suas mulheres (escravizadas) dentro do camião, o «War Rig», sendo a sua verdadeira missão levá-las até ao seu lar ancestral, uma utopia matriarcal chamada «The Green Place». Ao descobrir o plano, Joe forma um exército, convocando outros déspotas e os seus exércitos de War Boys, para irem no seu encalço.

A construção deste universo é feita de forma elegante e indirecta, sendo a situação e os riscos ilustrados através de cenários e personagens. Existem poucos diálogos ao longo desta aventura de duas horas. No fundo, a maior parte do drama resume-se a uma boa perseguição de carros à moda antiga.

A minha experiência com o filme também é relevante pela forma como contrastou com o que estava a sentir antes de o ir ver. A caminho do cinema, sentia-me rabugenta. Nesse mesmo verão viria a descobrir que os meus níveis de ferro tinham caído ao ponto de provocar uma série de sintomas que agora me são familiares: irritabilidade, pouca energia, sensibilidade à luz, mãos suadas e falta de ar. Dada a sua semelhança, os sintomas são facilmente confundidos com os de ansiedade. Antecipando a possibilidade de me sentir assoberbada, avisei os meus amigos de que talvez tivesse de sair da sala se achasse que estava prestes a ter um ataque de ansiedade, e pedi-lhes que não se preocupassem. Estava com três homens, todos eles desejosos de ver o filme de acção enérgico e vertiginoso que os esperava. Não lhes queria estragar o programa.

Não só estive pregada à cadeira o tempo todo como, ao sairmos, fiquei eufórica. A tensão com que entrara no cinema dissipara-se. Em vez disso, senti-me revigorada e estranhamente poderosa. Três horas antes, estava pronta para ir para casa. Agora, tinha vontade de ir sair, conversar sobre o que tinha acabado de viver e passar o resto da noite a nadar no mar de gente da baixa da cidade. Em compensação, os meus amigos, outrora entusiasmados, estavam agora atordoados, franzindo com a luz do sol e assustando-se facilmente com o barulho das sirenes na rua.  Estavam prontos para ir para casa, mas consegui persuadir o grupo e fomos até a um bar ali perto. Enquanto isso, esta inversão intrigava-me: o que é que tinha acabado de acontecer? O que é que este filme tinha causado aos nossos respectivos sistemas nervosos, e como? Aliás, será que os homens experimentam a toda a hora esta sensação pulsante de poder que eu estava a sentir?

Se me tivessem dito que, numa escala de um a dez, a intensidade do filme poderia ser avaliada nos onze, teria pensado que se tratava de um filme um pouco excessivo para meu gosto, além de narrativamente básico e desinteressante. À partida, certamente não parecia fazer o meu «género». É certo que o filme fora bastante aplaudido pelos críticos mainstream (que, por acaso, eram quase todos homens). Anthony Lane, da New Yorker, chamou-lhe um mashup entre «Titus Andronicus» e «The Cannonball Run», acrescentando: «Desfrutem do filme mas, por amor de Deus, não conduzam de volta para casa» (Lane, 2015). Anthony Oliver Scott, do New York Times, disse: «é muito divertido e bastante inspirador ― um filme de grande escala que consegue ser, simultaneamente, despretensioso e capaz de passar uma mensagem» (Scott, 2012). Por sua vez, Mark Kermode, do Guardian, gostou do filme, mas a sua experiência assemelhou-se à dos meus amigos, descrevendo o seu ritmo como «uma orgia de ruído, que nos deixa, alternadamente, estarrecidos, exasperados e exaustos» (Kermode, 2015). Ainda que comedidas, o filme teve boas críticas. E, no entanto, a minha reacção assemelhou-se à de tantas outras mulheres e do público em geral, cujas críticas não foram apenas positivas como profundamente emocionais.[8]

A título de exemplo, partilho aquilo que várias mulheres escreveram em blogues e nas redes sociais.[9] Uma utilizadora chamada Kim escreveu nos comentários de uma crítica no site Bad Bitches, Trashy Books:

Não estava muito convencida a ir ver este filme. Vi os trailers e o mais que pensei foi «meh». O meu marido ficou extasiado. As críticas saíram e os meus amigos foram ver. Depois saíram os artigos sobre os activistas dos Direitos dos Homens. E eu fui ver o filme em IMAX.

E, f*da-se, adorei, por todas as razões acima mencionadas. Estou a dizer a toda a gente para ir ver e a pensar em ir outra vez.

Já agora, não sei se também vos aconteceu, mas perdi qualquer noção concreta do tempo enquanto via o filme. Tipo, já se passaram 30 ou 90 minutos desde que começou? Não faço ideia.

LovelloftheWolves acrescentou:

Também fiquei hesitante com os primeiros trailers, mas quando saíram todos aqueles artigos a tecer-lhe elogios percebi que tinha de ir ver. O meu namorado e eu fomos e voltámos de bike (bicicletas, não veículos [moto]rizados) do cinema, e a viagem de volta foi uma EMOÇÃO. Só queríamos pôr coisas nos nossos pneus que fizessem som para soarmos COOL.

Beth not Elizabeth escreveu:

Fui ver este filme no dia da estreia. Depois da tempestade de areia, que é literalmente o primeiro momento de silêncio do filme, a sala toda exclamou «WHOA». Tive de me lembrar de respirar.

Hoje à noite vou levar a minha vizinha a ir vê-lo, e amanhã vou com a minha mãe. Não vou parar até que toda a gente que conheço tenha visto este filme incrível.

Querem saber o quanto adoro este filme? Eu sou capaz de pagar a uma baby-sitter para o ir ver. Isto é amor verdadeiro. (Carrie S. 2015)

Os testemunhos destas pessoas pareceram-me profundamente relevantes. O entusiasmo com o filme, a vontade de o descrever e de o partilhar são evidentes. Mas no segundo relato, quando ela está a descrever o seu sentimento ao voltar para casa, aquilo de que fala não é apenas um entusiasmo: é a sensação de se ser livre e capaz no mundo, e que é descrita como nada menos do que «uma emoção». Quando li pela primeira vez o que Merleau-Ponty escreveu sobre transcendência e unidade, houve qualquer coisa que me escapou. Enquanto pessoa que foi socializada como mulher, e por estar tantas vezes consciente do modo como sou vista, é-me difícil separar a noção que tenho de mim própria e dos meus desejos do modo como os outros me vêem. Mas nas horas que se seguiram a ter visto o filme, aquelas palavras fizeram-me sentido. Tinha vivido uma nova espécie de experiência do meu corpo e de mim própria; algo que me pareceu transformador.

Era evidente que o filme tinha tido impacto em mim e noutras pessoas. Mas porquê este filme? Afinal de contas, apesar de não serem a norma, existem filmes de acção centrados em mulheres. Desde o Alien ao Terminator 2, passando por Lara Croft: Tomb Raider e Charlie’s Angels, há cada vez mais mulheres a assumir papéis de acção. (Mais recentemente, esta lista cresceu graças a filmes como Wonder Woman e Atomic Blonde, mas nenhum destes tinha saído na altura em que vi Fury Road, em 2015). Tentar especificar as razões pelas quais este filme teve em mim um efeito energético pode ser mais difícil, e evidentemente subjectivo, mas vale a pena.

Comecemos pelas personagens. Apesar do nome de Max (Tom Hardy) estar no título do filme, e de este fazer parte da aventura, o foco não está claramente nele: Furiosa é quem conduz esta história. A personagem de Theron, cujo cabelo rapado e roupas fazem lembrar os de Ripley nos Aliens, tem também uma deficiência visível, uma prótese fixada ao braço esquerdo. As mulheres prisioneiras têm todas personalidades distintas, assim como forças, fraquezas e desejos que são evidentes.

Ao contrário da deficiência de Furiosa, que é visível, os flashbacks de SPT de Max são uma condição invisível; apesar disso, é retratado como uma pessoa calma e capaz. E até Nux (Nicholas Hoult), um War Boy que é capturado por eles, revela-se uma personagem tridimensional ao longo da história, capaz de sentir afecto e compaixão. No final, o seu acto de sacrifício não é fruto do seu objectivo inicial, egoísta ― a glória de Valhalla ―, mas do desejo de proteger aquelas mulheres que aprendeu a ver como pessoas. No grupo de Furiosa, não existe nenhuma personagem cujo valor, em qualquer momento ou sob qualquer forma, se baseie no seu sex-appeal.

A profundidade das personagens é confirmada pela sua evolução à medida que enfrentam provações. As mulheres resgatadas clandestinamente, provavelmente presas a vida inteira, não são nitidamente objectos neste filme. Apesar da sua beleza tradicional, também se revelam aguerridas, furiosas e resilientes. Não sabem fazer muita coisa, mas estão dispostas a tentar. Não fazem ideia de como se recarrega uma arma, mas vão aprendendo com o tempo.

E há nisto um elemento muito humano. Eu também não faço ideia de como se carrega uma arma. Mas estou a assistir a uma mulher que, não sabendo executar esta tarefa ― estando, ademais, sob a nova pressão de uma situação de combate ― ainda assim persiste. No início atrapalha-se, deixa cair as munições, e vai tentando várias vezes. Há algo de profundamente humano neste tipo de cena; uma coisa tão imperfeita num género de filme em que nos habituámos a ver os protagonistas a carregar e a disparar armas com uma facilidade e precisão que, apesar de admiráveis, são irrealistas. Em contrapartida, os momentos de falibilidade em Fury Road deixaram-me embrenhada na acção, e a satisfação que senti ao vê-las finalmente a ter êxito foi revigorante ― indirectamente, senti que também tinha conseguido.

Enquanto isso, a relação de Max e Furiosa vai-se desenvolvendo sem nunca deixar de ser uma parceria prática; trata-se de um homem e uma mulher a trabalhar em conjunto, sem qualquer pretensão romântica ou sexual ocultas. Em vez disso, cada um dá o que consegue. Quando ele precisa de água, ela oferece-lhe. Quando ela se magoa, ele dá-lhe sangue. No momento em que Joe se está a aproximar deles, Max tenta dar-lhe dois tiros, mas falha. Percebendo que Furiosa tem mais hipóteses de o conseguir, com um movimento espantoso, confia-lhe a tarefa e oferece o seu ombro para estabilizar a arma dela.[10]

O filme retrata de forma notável a maneira como estas personagens se desenvencilham com o que têm. O ritmo não pára: assim que resolvem um problema, surge logo outro. Por fim, acabam por encontrar o povo de Furiosa, mas apenas para descobrir que Green Place há muito sucumbira à desertificação, tendo-se tornado uma terra árida. Furiosa desaba em desespero, até que Max e as mulheres a convencem a não desistir e continuar a lutar.

O filme recorre a imagens de uma forma auto-consciente que, simultaneamente, reconhecem e subvertem o olhar masculino. Em primeiro lugar, vale a pena destacar aquilo que o filme se abstém de mostrar. O autor americano Saladin Ahmed escreveu num tweet: «Fury Road é um filme para maiores de 16 que inclui um esclavagista sexual e, mesmo assim, Miller e cª não sentiram a necessidade de incluir uma cena de violação. #GameofThrones» (Ahmed, 2015). Por outras palavras, a violência contra as mulheres está fortemente implícita, mas raramente é retratada. O cenário torna suficientemente claro que, dado o desespero da sua fuga, as mulheres são alvo de violência sexual grave; qualquer cena de violação teria sido gratuita e minaria o efeito que o filme teve sobre o público.

Este é um ponto que muitas vezes dou por mim a explicar àqueles que argumentam que as representações de violência conferem «realismo» a uma obra. Tal como Beauvoir e inúmeras outras críticas feministas fizeram notar, as mulheres já vivem com a consciência de que são alvo de violência. Longe de serem representações neutras da «realidade», as cenas de violação podem causar angústia e, frequentemente, perturbar muitos membros do público, desviando a atenção do enredo e da aventura. Mais do que o efeito que provocam, na maioria dos casos, essas cenas que retratam mulheres a ser violentadas servem apenas para fazer o enredo avançar rapidamente, ou para funcionar enquanto razão afectiva para um herói masculino. Por outras palavras, os momentos de violência que causam dano fenomenológico ao público feminino existem apenas para fins de estrutura, sendo depois descartados. Ao invés de ser abordada, a violência é usada de um modo que, de certa forma, consegue cometer a repugnante proeza de objectivar um momento de objectificação.

Esta técnica está tão presente que tem um nome: «a mulher no frigorífico». Originalmente cunhado por Gail Simone em 1999, a propósito das bandas desenhadas, a expressão refere-se à personagem feminina que é brutalmente magoada (e muitas vezes morta) para servir de mote para o início da jornada do herói (Romano 2018). Este tropo já existe há milhares de anos, mas a cunhagem da expressão permitiu que a crítica ganhasse força nas últimas duas décadas. Num artigo sobre Deadpool 2, Aja Romano e Alex Abad-Santos estabelecem uma distinção entre os clássicos e iterações mais recentes:

Um mecanismo adjacente é a reacção exagerada do herói à ameaça de violência ― frequentemente sexualizada ― contra ela. Veja-se o papel central que o rapto tem na Ilíada, que desencadeia uma guerra em nome de Helena de Tróia, ou a fúria de Ulisses que, no clímax da Odisseia, mata todos os pretendentes de Penélope.

A ameaça de violência sexual contra uma personagem feminina é o que motiva a história de várias lendas arturianas, de Pamela, um romance epistolar de 1740 e o primeiro em língua inglesa, bem como os contos de vampiros mais célebres do século XIX e não só. Também é esta que motiva a busca desesperada que está no centro da obra-prima western de John Ford de 1956, The Searchers; a lista é infindável. (Romano 2018)

Um dos mais recentes e manifestos responsáveis é, tal como nos diz Ahmed, a série Game of Thrones. Assim, neste contexto, abster-se deste tipo de representações constitui uma escolha mais consciente do que incluí-las, sendo esta omissão uma das maneiras mais subtis como Fury Road subverte as normas convencionais.

É claro que o filme empreende isto de formas mais óbvias. Fury Road faz constantemente alusões a representações célebres de mulheres, ao mesmo tempo que subverte estas imagens. A cena em que Max encontra Furiosa e As Mulheres pela primeira vez replica um tropo muito presente no folclore e na mitologia: Actéon assiste a Diana a banhar-se, Orfeu encontra as Ménades, e Hércules as ninfas do rio. A mais famosa destas cenas é a de Ulisses quando encontra Nausícaa e as suas aias a lavarem roupa. Max é atirado de um dos comboios no deserto e encontra Furiosa e as Mulheres a beber água da sua mangueira. No caso de Nausícaa, ela vê Ulisses como potencial pretendente e oferece-lhe ajuda. Todavia, a relação de Furiosa e Max toma um rumo muito diferente.[11]

Em primeiro lugar, o olhar sequioso de Max não se dirige às Mulheres, mas sim à água.[12] Ao contrário de Ulisses, que inicialmente se deixa impressionar pela beleza de Nausícaa, Max não está interessado nos corpos das mulheres: não como objectos a ser restituídos, não como alvos do seu desejo, nem mesmo como coisas a ser salvas. Ele está a morrer de sede e precisa de beber água. Furiosa e Max têm uma discussão que acaba num impasse e, contrariada, Furiosa atira-lhe a mangueira de água. Claramente, a relação não é romântica mas, ao estabelecerem-se como iguais, forma-se uma parceria relutante. Em total contraste não apenas com a história de Nausícaa, que vê Ulisses como um pretendente, mas também com (entre outros) o plano astuto de Ariadne para ajudar Teseu na sua missão, Furiosa é quem lidera os rebeldes, enquanto Max lhe presta apoio.[13] Fury Road anuncia-se assim como uma história muito diferente: não existe nenhum herói galante que corre para salvar as donzelas em perigo. Em vez disso, é uma mulher, Furiosa, que salva as mulheres: Max vai só à boleia.[14]

Outro exemplo é o momento em que, à medida que Joe se aproxima do camião, Splendid Angharad (Rosie Huntington-Whiteley) abre a porta e expõe a sua barriga de grávida como escudo humano. E olhando para Joe, desafia-o a sacrificar a sua propriedade (o seu filho) na tentativa de recuperar a sua propriedade (as suas mulheres). A meu ver, esta imagem dialoga com a longa história da nudez, sobre a qual Berger escreve. A pose de Splendid é semelhante à típica pose de uma odalisca; de uma mulher reclinada, pouco vestida e submissa. Mas o significado da postura de Splendid é totalmente o contrário.

Numa manobra semelhante, Cheedo (Courtney Eaton) explora o facto de os War Boys a terem como frágil e finge estar desamparada para pedir ajuda para subir para o seu camião. As mulheres estão constantemente a antecipar este olhar masculino, à luz do qual aparentam ser frágeis e indefesas, para que os War Boys as subestimem, apenas para provar repetidas vezes o contrário.

Outro exemplo acontece no momento em que encontram o povo de Furiosa. Ao princípio, vemos uma mulher numa plataforma a gritar por ajuda. A cena evoca mais um episódio da viagem de Ulisses: as sereias. Metade pássaro, metade humano, estas criaturas ficam à espreita, à espera de enfeitiçar os marinheiros com as suas canções hipnóticas, levando-os para fora de rota e, por fim, à sua morte. Apesar de os gritos daquela mulher contrastarem perturbadoramente com a força sedutora do canto das sereias, trata-se de um exemplo claro de como as mulheres neste filme se servem do olhar masculino para se protegerem. E porque não projecta o olhar masculino, Furiosa consegue ver para além deste e desarmar a armadilha. Furiosa identifica-se, e as mulheres que estavam em posições de sniper descem pelas dunas nas suas motas para a receber no enclave.

E se a câmara subverte o olhar masculino, vale a pena referir também algumas particularidades da técnica do seu director de fotografia, John Seale. A maioria dos filmes de acção são compostos por cortes rápidos de planos sem estrutura, filmados de forma instável com uma câmara portátil. Para um membro do público, isto gera uma sensação de se estar fora de controlo, tanto a nível emocional como na prática, já que não se tem uma noção do lugar em que se está no tempo ou no espaço da acção. Seale, no entanto, recorre a técnicas cinematográficas que permitem que a câmara mantenha como ponto focal de cada plano o centro da imagem (Nedomansky 2015). Isto permitiu-me acompanhar a acção sem que esta me parecesse desconcertante ou desorientadora. Senti-me ancorada e, por causa disso, a emoção de assistir ao desenrolar da acção não foi dominada por uma sensação de medo ou de saturação.[15]

Lembrando o comentário de Kim, em que diz que perdeu literalmente a noção do tempo enquanto assistia ao filme, a minha experiência foi semelhante, e denotou este mesmo efeito de envolvimento na acção. Mais do que uma espectadora, senti que também fazia parte da aventura. Além disso, este sentimento de se ser transportado sem, contudo, perder a noção do espaço, deixa muitas pessoas com uma sensação de poder. O comentário de LovelloftheWolves, de que o seu regresso a casa de bicicleta foi uma «emoção», evoca uma sensação de liberdade, diversão e entusiasmo que se sobrepõe a uma eventual abordagem da questão de Young sobre a inibição das mulheres. E traz também à memória uma passagem contrastante d’O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir:

Com dezoito anos, T. E. Lawrence realiza sozinho uma grande viagem de bicicleta através da França; não permitirão a uma rapariga lançar-se em semelhante aventura […]. Entretanto, tais experiências têm um alcance incalculável; é então que, na embriaguez da liberdade e da descoberta, o indivíduo aprende a olhar a terra inteira como seu feudo. (Beauvoir 2015, 569)

Claro que a perspectiva de LovelloftheWolves era a de alguém a andar acompanhada por um homem, e não corresponde exactamente à sensação transcendente que Beauvoir lamenta que as mulheres não pudessem atingir. Contudo, revela uma certa euforia e poder no acto de andar de bicicleta que também não é a experiência comum daquelas de nós com corpos tidos como femininos.

Para terminar, gostava de voltar ao cerne do filme. Quando, a meio caminho, o grupo encontra o povo de Furiosa, pensam estar prestes a chegar ao Green Place. Em vez disso, descobrem que esse lugar secou há muito tempo e que, por se ter tornado árido e contaminado, o tinham atravessado sem se aperceberem. O seu povo era agora nómada, como que um grupo de refugiados. Apesar de tudo o que sacrificara para as trazer até aqui, o refúgio que procurava simplesmente não existia. Inicialmente, Furiosa fica desesperada, mas depois traça um plano para ir mais longe e atravessar o deserto de sal. Temendo a escassez de recursos e a futilidade da proposta, Max sugere que o caminho para casa não passa por continuar com a fuga, mas antes por regressar à Citadel. Ao princípio, o grupo fica incrédulo, mas acaba por concordar.

Esta parece-me uma decisão poderosa pelo menos a dois níveis. Primeiro, porque é uma viragem emocionalmente corajosa. O grupo deixa de fugir aos seus opressores, voltando-se para os combater. A sua agência é agora demonstrada, não apenas pela sua capacidade de subverter ou fugir do patriarcado e do olhar masculino, mas de os atacar de frente.

Em segundo lugar, parece-me ser uma metáfora profunda para uma lição que precisa de ser repetidamente aprendida na prática do feminismo. É fácil, e tentador, desejar uma saída directa dos sistemas de opressão ― pensar que, se de alguma forma pudéssemos sair do patriarcado, se faria justiça. A realidade da luta contra estas estruturas, no entanto, deve acontecer a partir de dentro. O processo é confuso, repleto de obstáculos e muitas vezes parece ser em vão. No entanto, por mais tentador que seja imaginar utopias feministas, focarmo-nos em lugares desse tipo irá desviar a atenção do trabalho mais produtivo de lutar diariamente contra, e através de, um sistema injusto e imperfeito. O projecto de desconstrução da opressão é longo e não será cumprido numa vida. Reconheço isto intelectualmente. Mas pode ser difícil manter a esperança, resistência e coragem para continuar a luta quando também se sabe que o objectivo está muito distante.

Esta cena representa esta lição, relembrando-nos de que este tipo de conhecimento só pode ser alcançado em momentos de exaustão e desespero. Nos momentos em que pensamos que não temos mais nada para dar, perceber que somos capazes de nos recompor revela-nos um nível de determinação que de outra forma não reconheceríamos. A coragem demonstrada pelas personagens é inspiradora. Se, apesar das condições terríveis, estas mulheres conseguem encontrar forças para continuar, eu também consigo. Sinto isto cada vez que vejo o filme, e este fervoroso lembrete é bem-vindo.

É também uma lição sobre a possibilidade de filmes como este: ao contrário das preocupações de Mulvey sobre a futilidade de retratar a humanidade feminina através da câmara, o próprio filme consegue encontrar formas criativas de atingir esse mesmo objectivo, apesar do domínio esmagador do olhar masculino ao longo da história do cinema e das artes visuais.

 

Conclusão

Em The World Viewed (1979), Cavell lamentava a mudança que identificara em Hollywood ao longo da década de 1960 e afligia-se, de certa forma, com a permutabilidade dos actores contemporâneos à época em que escrevia. Não consigo imaginar que Cavell fosse sequer capaz de reconhecer o estado actual do cinema, com a hegemonia dos franchises e filmes de acção, e uma infra-estrutura que afasta cada vez mais o público geral da sala de cinema.

E, no entanto, algo notável surgiu neste contexto ― e nada menos do que um franchise. Apesar da preocupação de Beauvoir relativa aos obstáculos materiais à transcendência das mulheres, do pessimismo de Mulvey sobre a inevitabilidade da objectificação fílmica das mulheres, Fury Road abre uma janela para uma possibilidade fílmica cujo significado não se limita à maneira como intervém em milhares de anos de opressão representacional. Também intervém no círculo vicioso fenomenológico observado por Young.

Através das suas personagens, imagens, enredo e técnica fílmica, o filme comprova que é possível considerar as mulheres, não só como agentes, mas como agentes incorporados e capazes. Enquanto espectadora, senti-me intimamente ligada às personagens, de tal forma que senti que fazia parte da aventura, de um modo revigorante. Saí do filme empolgada, com energia e uma sensação de possibilidade; sentia-me capaz de agir sobre e dentro do mundo. Experimentei o meu corpo e experimentei-me a mim mesma de uma nova maneira. Suspeito que este efeito possa ser, pelo menos em parte, explicado pelo facto de me ter sentido acolhida no mundo do cinema, algo que permitiu que sentisse que fazia activamente parte da acção, de uma forma que nunca havia experimentado totalmente. Este ensaio foi um exercício a que me propus para tentar começar a explicar esta experiência a mim mesma, mas isto é apenas o princípio.

Como acontece com todas as experiências, esta sensação de auto-percepção foi desaparecendo à medida que a noite foi passando. Mas foi algo que me mudou na medida em que agora sou alguém que experimentou o seu corpo de uma nova maneira, e na qual reconheço um poder, capacidade e energias que experimentei como um só. A minha compreensão das observações de Merleau-Ponty sobre a transcendência não resultou de as ter lido nem de ter pensado sobre elas, mas de ter experimentado a sua sensação. Saber que tal experiência é possível, que eu a senti, que a quero compreender e atingir ― são conhecimentos inestimáveis que daqui posso retirar.

Não estou a defender que o filme tenha feito isto de forma perfeita, ou que todas as pessoas irão reagir da mesma forma que eu. Nem tampouco estou a sugerir que filmes como este sejam a única maneira de intervir nesse círculo vicioso. Suspeito que a prática de uma variedade de exercícios, que nos tirem ― a nós, mulheres ― da nossa zona de conforto e revelem a nossa tolerância ao perigo e a nossa força, possa ter aqui uma importância crucial ― ocorrem-me as artes marciais ou a escalada, por exemplo. Os filmes, todavia, são mais acessíveis e, num contexto de produção em massa, chegarão facilmente a lugares mais distantes. No entanto, não existe uma única acção que ajude a reorientar as mulheres, ou todas as mulheres, da mesma forma. As minhas pretensões são muito mais modestas: durante uma horas, Fury Road abre-nos uma janela para a possibilidade de nos sentirmos num filme e, assim, de nos encontrarmos nos nossos corpos.

[1] A reflexão em torno da injustiça hermenêutica tem sido desenvolvida ao longo de décadas, e muito trabalho se tem feito sobre este tema, sobretudo por parte de feministas negras como Patricia Hill Collins. Gostaria de tornar claro que não estou a afirmar que Fricker concebeu estes conceitos, mas que os popularizou no âmbito da filosofia académica.

[2] Acredito, por exemplo, que outros tipos de intervenção consistam na prática de desporto, aprendizagem de artes marciais e outros tipos de actividades que desenvolvam aptidões físicas e agilidade.

[3] Estou aqui a dar continuidade à discussão cavelliana de Nancy Bauer sobre teoria do cinema, no seu livro de 2015, How To Do Things With Pornography.

[4] O direito ao voto era, claro, maioritariamente exclusivo de mulheres brancas nascidas no Canadá. As mulheres asiáticas só ganharam o voto em 1948, graças à implementação da Lei de Direitos Humanos da ONU, e as mulheres indígenas não obtiveram plenos direitos de voto até à década de 1960. Para uma descrição mais aprofundada, consultar: https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/suffrage

[5] Young observa que nem todas as mulheres se encaixam no quadro de semelhanças que são objecto da sua investigação e que é possível que pessoas de outros géneros se identifiquem, em diferentes graus, com essas descrições.

[6] «Sentimos como se tivéssemos de dirigir a nossa atenção para o nosso corpo de modo a termos a certeza de que este faz o que queremos, em vez de nos focarmos naquilo que queremos fazer por meio dos nossos corpos» (Young 1980, 144).

[7] É certo que as observações de Mulvey soam verdadeiras face a grande parte da produção cultural contemporânea. Mas, como escreve Bauer, «nem sempre, nem em todos os lugares. Ainda há realizadores de filmes e programas de televisão, mesmo daqueles com muitos planos de mamas, que confiam no poder da câmara para nos surpreender no que diz respeito ao que é possível que algo ou alguém se torne no filme». (Bauer 2015, 159). Bauer argumenta depois que Lars and the Real Girl é um exemplo disto.

[8] Face a isto, muitos homens tiveram reacções igualmente emocionais, exigindo boicotes ao filme. Aaron Clarey, por exemplo, protestou: «Deixem-nos ser claros. … Este é o Cavalo de Tróia que as feministas e os esquerdistas de Hollywood irão usar para (em vão) insistir no tropo de que as mulheres são iguais aos homens em todas as coisas, incluindo o físico, a força e a lógica. E este é o subterfúgio que irão usar para esbater as linhas entre masculinidade e feminilidade, arruinando ainda mais as mulheres para os homens e os homens para as mulheres». Citado em: https://www.wehuntedthemammoth.com/2015/05/12/furious-about-furiosa-misogynists-are-losing-it-over-charlize-therons-starring-role-in-mad-max-fury -estrada/

[9] Seleccionei alguns dos mais longos, mas podem ser lidos na íntegra em: https://smartbitchestrashybooks.com/reviews/movie-review-mad-max-fury-road/

[10] Quase todas as discussões que tive com outras mulheres sobre este filme envolveram referências a este momento, precisamente por ser uma novidade tão surpreendente.

[11] Os créditos desta observação e dos paralelos com os mitos clássicos listados acima devem ser atribuídos a Adam Barker, do Departamento de Estudos Clássicos da Universidade de Toronto.

[12] Veja-se Hall 2019.

[13] Para mais detalhes acerca da natureza do mito, veja-se: Plutarco. Plutarch's Lives: Traduzido do Original Grego, com Notas Críticas e Históricas, e a Life of Plutarch. New York: Derby & Jackson, 1859. Para uma interpretação diferente, ver: Apollodorus' «Library», E.1.7-11.

[14] Na verdade, este passa grande parte do filme no lugar do passageiro. É raro ver uma mulher a conduzir durante a maior parte do tempo de um filme de ação. Note-se que o momento principal em que vemos Max ao volante é porque Furiosa está a subir com uma chave inglesa a lateral do camião em andamento. Esta mudança subverte um paradigma maior de relações entre géneros na história do cinema, mas também na vida quotidiana.

[15] Apesar de já não ter espaço neste ensaio, são muitas as discussões frutíferas possíveis sobre a relação entre técnicas cinematográficas e a fenomenologia desarticulada de grupos oprimidos. Veja-se, por exemplo, Ahmed 2006.

 

Referências

Ahmed, Saladin. (@saladinahmed) «Note: FURY ROAD is an R-rated movie w/ a sexual slaver villain yet Miller & co. didn't feel the need to include a rape scene. #GameOfThrones» May 18, 2015 11:02am. Twitter. https://twitter.com/saladinahmed/status/600315577467547648

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Beauvoir, Simone de. O Segundo Sexo, vol. 2 (trad. Sérgio Milliet). Lisboa: Quetzal, 2008.

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Hall, Rheanna-Marie. «Furiosa and the Five Wives: The female body as battleground in Mad Max». Girls On Tops. June 27, 2019. https://www.girlsontopstees.com/read-me/2019/6/27/furiosa-and-the-five-wives-the-female-body-as-battleground-in-mad-max-fury-road

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