Foi nas palestras John Locke, intituladas «Referência e Existência», que Saul Kripke decidiu abordar a aplicabilidade da sua teoria de referência causal em relação a nomes sem referente, i.e., nomes que fingem ter referente, isto é, ficcionais. Como em qualquer teoria há sempre espaço para alguma excepção, Kripke adicionaria posteriormente uma nota de rodapé na terceira palestra realçando duas obras que complicam as distinções entre personagens reais e ficcionais: The Comforters, de Muriel Spark, e Enoch Soames, de Max Beerbohm. Na passagem que dá azo a essa nota, Kripke introduz um hipotético caso que servirá aqui como uma quase-sinopse para o conto de Beerbohm: 

Let’s take the statement ‘Hamlet was a fictional character.’ That is not true in the work of fiction itself. Using predicates according to their use in fiction—that is, according to the rule which applies a predicate to a fictional character if that fictional character is so described in the appropriate work of fiction—we should conclude that Hamlet was not a fictional character. In fact, paradoxical as it may sound, in this sense no fictional person is a fictional person. For (virtually) no fictional person is said in his own work of fiction to be a fictional person.[1]

É precisamente a última proposição que introduz a angústia de Enoch Soames no conto homónimo: após fazer um negócio com o diabo pela sua alma, é-lhe possibilitado viajar no tempo cem anos, até à tarde de 3 de junho de 1997, de modo a confirmar a fama e renome que acredita merecer e que a posteridade concedeu sobre a sua poesia. Contudo, Enoch Soames retorna tragicamente ao seu tempo com o conhecimento de que a posteridade o refere apenas como uma personagem fictícia criada pelo narrador do conto, o próprio Max Beerbohm. Enoch Soames é um caso raro em literatura: uma obra de ficção onde se narra e discute a existência e ficcionalidade de pessoas dentro da própria história. Este paradigma leva a que, durante a leitura do conto, seja possível realçar passagens que possuem uma ambiguidade no que toca ao nível de seu significado: não é possível passar sobre elas sem pensar se elas pairam entre o nível ficcional do conto, o nível de realidade do leitor ou em ambos.  Tomemos como exemplo o seguinte diálogo a três (entre o narrador Max Beerbohm, o respeitado pintor William Rothenstein e Enoch Soames) que acontece cedo no conto. Após pedir explicitamente que Rothenstein pintasse um retrato para o seu próximo livro de poemas, Rothenstein oferece uma desculpa esfarrapada para rejeitar o pedido de Soames, declarando ir para o campo. Instantes depois, quando Rothenstein e o narrador se encontram sozinhos, dá-se a seguinte troca:

[Narrador, Beerbohm]: “Why were you so determined not to draw him?” I asked.

[Rothenstein]: “Draw him? Him? How can one draw a man who doesn’t exist?”

“He is dim,” I admitted. But my mot juste fell flat. Rothenstein repeated that Soames was non-existent.

O curioso desta passagem é que pode ser lida apenas como um insulto à falta de impacto que Enoch Soames causa em Rothenstein, como indivíduo sem traços distintos ou personalidade que mereça sequer ser levada a sério, quanto mais ser retratada. De modo que a distinção entre personagem não-existente e personagem ficcional merece ser notada, embora no contexto do conto, este uso de “não-existente” sirva para lançar as sementes de desconfiança em relação ao estatuto ontológico de Enoch Soames que será revelado mais para o final do conto.

É possível também interpretar no diálogo de Rothenstein uma espécie de omnisciência extra-diegética, ao adoptarmos uma posição externa em relação ao conto. Quando Rothenstein diz que Enoch Soames é não-existente, não só está a implicar a ficcionalidade de Enoch Soames, mas também a trazer para o mundo diegético do conto o que o escritor Max Beerbohm sabe em relação a Enoch Soames (que é uma personagem ficcional), embora o leitor normalmente não considere essa meta-leitura. Os alicerces criativos que normalmente não são trazidos para a maioria dos contos concernem a natureza ficcional das personagens, dos lugares referenciados e da relação entre personagens que possuem claramente estatutos ontológicos diferenciados entre si dentro de uma obra. Em Enoch Soames, isso é contexto e conteúdo narrativo; esses alicerces tornam-se observáveis. O facto de Rothenstein ser o nome de um pintor real e conhecido e, como tal, não questionar a sua própria «existência», permite desviar a atenção do leitor unicamente para o estatuto ontológico de Soames, em vez expandir essa condição ficcional para as restantes personagens do conto. A verdade é que em «Enoch Soames» tanto Rothenstein como Enoch Soames são personagens ficcionais, embora a discussão em torno da sua ficcionalidade só gire em torno do último, isto porque o uso de nomes de pessoas reais nesta história serve sobretudo para justapor o mundo diegético de «Enoch Soames» com o mundo «real» e eliminar por esse processo qualquer investigação ontológica a personagens com aparentes referentes, como é o caso de Rothenstein. O que resulta dessa justaposição de mundos é a aparente aversão que as personagens com referente aparente (como Rothenstein e outras figuras da Londres contemporânea) apresentam em relação à condição ontológica «inferior» de Enoch Soames: ele é tão «não-existente» que nem sequer consegue passar por ficcional, isto é, por alguém que pretende possuir referente. O que fica implícito é a distinção que Max Beerbohm faz de personagens ficcionais, como Enoch Soames, de personagens ficcionais que fingem uma correspondência com pessoas reais pelo facto de possuírem o mesmo nome. Embora tal nunca seja explícito, o leitor conhecedor automaticamente associará «Rothenstein a personagem» ao «Rothenstein real», muito pelo facto de o conto querer dar a entender tratar-se de uma «memória», além de procurar invocar um estatuto verídico tanto aos acontecimentos narrados como sobretudo a todas as pessoas envolvidas.  Logo, embora em outras histórias ficcionais, que não envolvem a discussão da sua própria ficcionalidade, tal omnisciência no diálogo de uma personagem possa ser considerada um mau sinal sobre a qualidade da escrita, no caso de Enoch Soames é uma das várias técnicas narrativas que servem para criar ambiguidade e confusão no leitor. O truque para denegrir o estatuto ontológico de Enoch Soames no conto é o de fingir estabelecer uma correspondência com os nomes de pessoas reais das pessoas que o rodeiam. Nomes que fingem referentes são uma das marcas tradicionais de ficção; aqui é, contudo, retirado dos bastidores do conto para o palco principal o truque de transportar a condição existencial de uma entidade factual (por exemplo, William Rothenstein) para um nome idêntico utilizado num contexto ficcional.

O ponto útil a ser retirado desta transposição é o mesmo que Kripke faz na sua palestra de modo a esclarecer a ambiguidade que Beerbohm tão habilmente utiliza no seu conto. Kripke faz menção a uma história ficcional que transporta Napoleão Bonaparte para outro tempo que não o factual (o tempo da monarquia francesa). Partindo da familiaridade dessa ficção, será necessário adicionar qualificações como «De acordo com a história X» a proposições como «Napoleão viveu e morreu durante a monarquia francesa», correndo o risco dessa proposição ser considerada falsa ou no mínimo ambígua, caso não se a qualifique. Contudo, Kripke reconhece que na linguagem comum muitas dessas qualificações são desnecessárias, porque o contexto auxilia a compreensão. No que toca à ficção, esta não costuma explicitamente preocupar-se com qualificações ficcionais ou realistas, a não ser, por exemplo, durante o pequeno disclaimer utilizado no início ou fim de qualquer obra atestando a sua ficcionalidade ou veracidade. «Enoch Soames» prescinde de tal aviso: pode ser lido enquanto uma paródia a qualquer disclaimer legal e à sua capacidade de provocar o efeito declarado, o de erguer a clara distinção entre real e ficcional. São inúmeras as formas de arte posteriores (cinema verité, jornalismo gonzo, entre outras) que procuram e jogam com a opacidade da relação ficcional/real, onde as dificuldades abundam e que levam ou à dissolução de quaisquer fronteiras explícitas ou, no mínimo, trazem para primeiro plano a dificuldade em discernir o que é real e o que é ficção.

A intenção de Max Beerbohm como escritor, e não como narrador, de confundir os limites da ficção com os da realidade pareceu ter sido abraçada pelo próprio amigo William Rothenstein (o pintor que viveu) ao contribuir para essa confusão ontológica ao pintar realmente um retrato de Enoch Soames, descrito curiosamente no conto como mais real que o próprio modelo:

Anybody who knew him would have recognized the portrait at a glance, but nobody who didn’t know him would have recognized the portrait from its bystander: it “existed” so much more than he; it was bound to.

Retrato de Enoch Soames, pintado por William Rothenstein (1872-1945) em 1895.

Retrato de Enoch Soames, pintado por William Rothenstein (1872-1945) em 1895.

Este diálogo interartístico contribui para a metaficcionalidade do mundo de «Enoch Soames», para a dissolução da fronteira explícita e previsível entre personagens ficcionais e personagens reais. Se, para Kripke, Hamlet não é uma personagem ficcional dentro da ficção porque a obra de ficção não o trata enquanto personagem ficcional, o que dizer de Enoch Soames, onde na sua própria história, lhe é revelado, no momento climático do conto, que afinal é apenas fruto da imaginação do narrador e que a arte que é feita a partir de si é mais real que ele próprio?

A solução vem novamente de Kripke. Vejamos a proposição «Hamlet era uma personagem ficcional». Esta proposição realça um predicado onde se subentende a externalidade face à realidade diegética da obra, isto porque as fronteiras implícitas entre o ficcional e o real estão bem definidas e intocadas. Não há necessidade de recorrer a quaisquer qualificadores. Não é verdadeiro afirmar que «De acordo com a peça de Shakespeare, Hamlet era uma personagem ficcional» porque dentro da obra não existe qualquer indicação que o Príncipe Hamlet seja ficcional. Contudo, isso é o que acontece a Enoch Soames. Normalmente, a afirmação de que qualquer personagem é ficcional costuma ser sempre usada ao nível da realidade do leitor; contudo, Beerbohm força a personagem a lidar com a sua própria ficcionalidade, distorcendo e entrelaçando a realidade com essa ficção, trazendo para a narrativa uma discussão que normalmente é realizada fora do mundo diegético da história. Do que falamos então quando falamos de discutir ficcionalidade dentro da ficção? Não se tratará simplesmente de um truque narrativo?

Pela maneira como se questiona no conto a realidade de Enoch Soames, a história parece desenrolar-se como se de um “truque” se tratasse: o “truque” de transformar uma personagem ficcional em personagem real ao tornar paradoxalmente explícita a sua ficcionalidade. O entrelaçamento propositado do tempo e espaço diegético do conto com a realidade do leitor leva a considerar Enoch Soames uma personagem real fora da história (afinal, personagens ficcionais existem, embora de maneira distinta de pessoas reais), estendendo-lhe a condição existencial das personagens pseudorreais com quem interage ao longo da história (as que fingem uma correspondência com as pessoas reais porque partilham o mesmo nome, tais como o já mencionado William Rothenstein, Aubrey Beardsley, Holbrook Jackson, Frank Harris, John Lane, entre outros). Por mais contraditório que pareça, esse truque pareceu funcionar: influenciou as actividades concretas de pessoas que leram «Enoch Soames», isto é, fez pessoas actuarem no mundo como se tal personagem tivesse existido, conversado com o diabo e viajado no tempo.

A 3 de Junho de 1997, data em que supostamente Enoch Soames viajaria pelo tempo até à Sala de Leitura do Museu Britânico em Londres, um número considerável de indivíduos que leram o conto decidiram deslocar-se para confirmar a aparição. Teller, membro da dupla de mágicos Penn & Teller, faria também parte dessa «excursão», inclusive escrevendo para o The Atlantic um «relato fiel dos eventos do dia designado, quando se esperava que o homem que desapareceu retornasse brevemente.»[2] O caso de um mágico decidir escrever um relato fiel sobre uma personagem ficcional invoca já por si desconfiança; a menção a factualidade, a fidelidade, a certeza dos factos, é já por si um truque que procura desviar a atenção para um pormenor crucial: de que não se pode confiar em mágicos para nos darem uma descrição factual da realidade. De um modo semelhante, Beerbohm estará a reivindicar uma espécie de truque linguístico na sua obra, à semelhança do que Teller faz no seu artigo (e por extensão, nas suas performances de magia). Teller polvilha-o com memórias suas de quando leu o conto, dos colegas que o ajudaram a compreendê-lo e de qual o seu destino: 37 anos depois de ter lido «Enoch Soames», teria que se deslocar a Londres para satisfazer a sua curiosidade e fascinação. «Será que Enoch Soames vai aparecer ou não?» Para surpresa sua, não foi o único: também outros haviam lido e feito viagens de milhares de quilómetros para atestar a existência de Enoch Soames.  Aquilo de que estavam à procura era de um indivíduo descrito da seguinte maneira:

He was a stooping, shambling person, rather tall, very pale, with longish and brownish hair. He had a thin, vague beard, or, rather, he had a chin on which a large number of hairs weakly curled and clustered to cover its retreat. He was an odd-looking person; but in the nineties odd apparitions were more frequent, I think, than they are now. The young writers of that era—and I was sure this man was a writer—strove earnestly to be distinct in aspect. This man had striven unsuccessfully. He wore a soft black hat of clerical kind, but of Bohemian intention, and a gray waterproof cape which, perhaps because it was waterproof, failed to be romantic. I decided that “dim” was the mot juste for him.[3]

De acordo com o relato de Teller, um indivíduo que correspondia a esta descrição de Soames apareceu misteriosamente, começando a procurar criteriosamente por vários catálogos, dicionários e biografias. Momentos depois, desapareceu sem deixar rasto.

Pondo de parte a clara vertente fantasmagórica e analisando o relato de Teller de um ponto de vista lógico, podemos começar com o exemplo que Kripke usou, o de Sherlock Holmes, para clarificar o facto de que, mesmo que aparecesse alguém que satisfizesse todas as condições do que é ser Sherlock Holmes, tal não seria à mesma suficiente para comprovar a sua existência, isto é, que aquele homem que estão a presenciar é o Sherlock Holmes. As histórias escritas por Arthur Conan Doyle referem-se a um só Sherlock Holmes e não a um possível ou provável indivíduo que satisfaça posteriormente as condições do que é ser Sherlock Holmes. Nessas histórias, o nome «Sherlock Holmes» designa rigidamente um indivíduo (que neste caso é ficcional) que é o que é mencionado nas histórias protagonizadas por si. No caso de «Enoch Soames», qualquer aparência com uma pessoa real terá de ser tratada como coincidência ou como alguém encarnar o papel de Enoch Soames. O senso comum diz-nos que não é possível que Enoch Soames exista e que viaje no tempo até à sala de leitura; a probabilidade diz-nos que é mais plausível que alguém tenha decidido representar a viagem de Enoch Soames depois de ler a história. E uma vez adoptada esta probabilidade, imaginemos que se se identificasse mais que um individuo que satisfizesse todas as descrições apresentadas nas histórias (e há a possibilidade de correr esse risco): como escolher o indivíduo mais «soamesiano»? É mais provável ter sido alguém que se deu ao trabalho de encarnar Enoch Soames e actuar de acordo com aquilo que foi descrito no conto; ou até tratar-se de um truque literário do próprio Teller, que conseguiu discernir a qualidade «mágica» inerente à ficção.

Outro ponto que parece ser pertinente neste caso é o acto de pessoas se deslocarem para observar a aparição de personagens ficcionais. Novamente utilizando o exemplo de Sherlock Holmes e da sua morada em Baker Street, uma pessoa poderá ser inclinada a concluir que além de haver pessoas que vivem em Baker Street, também há pessoas ficcionais que vivem em Baker Street. Contudo, não há qualquer tipo de sobreposição: dizer que há pessoas ficcionais que vivem em Baker Street não tem o mesmo sentido que dizer que há pessoas (reais) que vivem em Baker Street. O Sherlock Holmes das histórias homónimas nunca irá deparar-se com o escritor Max Beerbohm, caso o último desejasse passear por Baker Street. Caso Max Beerbohm se deparasse com alguém que preenchesse os critérios aparentemente necessários para ser considerado Sherlock Holmes, ele seria, no entanto, uma pessoa que finge passar-se por Sherlock Holmes. Esse fingimento constitui o ofício de um actor e, em casos patológicos, de pessoas loucas que se acham factualmente as pessoas que representam (por exemplo, doentes que se acham Napoleão). A conclusão que podemos retirar parece ser em si banal: tanto Sherlock Holmes, quanto Baker Street, bem como todos os nomes mencionados nas histórias de Arthur Conan Doyle, embora possuam aparentemente um referente, são em si ficcionais. Uma pessoa que esteja a par de quem são essas entidades (Napoleão, Sherlock Holmes, etc.) nunca considerará deparar-se com tal pessoa factualmente (um porque já faleceu, o outro porque é ficcional). Caso se depare, concluirá sempre estar a presenciar alguém que finge ser tal entidade, quer essa pessoa acredite estar a representar um papel ou não.

Contudo, por mais banal que esse predicado possa parecer, confusões podem emergir.  Querendo estender algum benefício da dúvida a todos os indivíduos que se deslocaram (alegadamente, pois temos sempre de ter tanto cuidado com relatos de mágicos como com o de escritores) ao Salão de Leitura do Museu Britânico naquele dia, é possível presumir que nenhum deles compreendesse a distinção entre personagens e lugares ficcionais e personagens e lugares reais. Essas pessoas compreendem até certo ponto que o que os fez deslocar até àquele lugar não é um interesse lógico, no sentido de querer atestar a distinção rígida entre personagens reais e personagens ficcionais. Uma parte delas percebe que tudo não passará de um truque literário. Essas pessoas deslocaram-se claramente com outra intenção em mente.  

A explicação mais provável (e a mais aborrecida) para a «aparição de Enoch Soames» é a de que se tratou de uma feliz coincidência. Também se pode tratar de uma projecção feita pelos leitores, um desejo de reificar uma personagem fictícia adorada, ou, ainda mais provável, de um truque (literário) de um mágico que, como forma de prestar tributo a uma história que lhe marcou a infância, decidiu terminar o último passo do truque de magia literária que Beerbohm começou quando escreveu o conto. Teller deve ter compreendido (embora um mágico nunca possa revelar os seus segredos) o que Kripke declarou na sua palestra: que é um facto empírico e contingente que essas entidades ficcionais existem, mas que existem apenas em «virtude de actividades concretas de pessoas».[4] Ou seja, William Rothenstein, o pintor, existiu e viveu independentemente da minha actividade concreta, da de Barack Obama ou do leitor que está a ler este texto; contudo, a existência ficcional de Enoch Soames depende concretamente da minha actividade enquanto leitor do conto «Enoch Soames». Essa existência ficcional nunca se irá sobrepor, pois não podemos transformar Enoch Soames em homem de carne e osso. Porém, no mundo do entretenimento (e da ficção) essa conclusão é em si anti-climática e deflacionária. O propósito de Teller não é o de esclarecer tal, visto ele compreender a possível correlação entre pessoas que vão aos seus espetáculos de magia e as pessoas que aguardam impacientemente no Salão de Leitura numa tarde de Junho pela chegada de uma personagem ficcional. O que as une não é o desejo de compreender as ambiguidades linguísticas e ontológicas que permitiram acreditar ilusoriamente que a personagem ficcional Enoch Soames iria aparecer naquele local enquanto entidade real. Se quisessem saber tal, ter-se-iam deslocado a uma palestra de Kripke 20 anos antes. O que as une é um impulso mais mundano, o de deslumbramento ou, em termos mais grosseiros, o desejo de quererem ser enganadas. O engano (ou ilusão) de presenciar um truque de magia com sucesso acarreta muitas semelhanças com o deslumbramento que se obtém ao ler um conto mágico (como o «Enoch Soames») durante a infância, quando as fronteiras entre o que é real e o que é ficção costumam não estar bem esclarecidas. É isso que a ficção e a magia têm em comum: o desejo de estenderem ou de ir para além dos limites do actual, do factual, do real. No entanto, os métodos utilizados costumam ser métodos não muito respeitáveis noutros contextos da vida: o engano, a ilusão, a mentira, o desvio da atenção, a manipulação. De modo que não seja arriscado interpretar o conto de Beerbohm como um truque de magia metaficcional.   

No filme de Christopher Nolan, The Prestige (2006), o ingenieur John Cutter (Michael Caine), o homem responsável por criar os mecanismos sub-reptícios para os mágicos executarem com sucesso os truques, abre o filme descrevendo a estrutura de um truque de magia executado com sucesso:

Every great magic trick consists of three parts or acts. The first part is called “The Pledge” [ A promessa, 1º passo]. The magician shows you something ordinary: a deck of cards, a bird or a man. He shows you this object. Perhaps he asks you to inspect it to see if it is indeed real, unaltered, normal. But of course, it probably isn’t. The second act is called “The Turn” [ A reviravolta, 2º passo]. The magician takes the ordinary something and makes it do something extraordinary. Now you’re looking for the secret... but you won’t find it, because of course you’re not really looking. You don’t really want to know. You want to be fooled. But you wouldn’t clap yet. Because making something disappear isn’t enough; you have to bring it back. That’s why every magic trick has a third act, the hardest part, the part we call “The Prestige” [O Prestígio, 3º passo].

É possível sobrepor a estrutura do truque de magia segundo Cutter para a estrutura de «Enoch Soames». O primeiro passo, a promessa, serve para apresentar «algo comum»: Enoch Soames, uma personagem tão comum e indistinta que é incapaz de impor a sua presença. Até à ocorrência do episódio sobrenatural (a aparição de um homem declarando ser o diabo, com uma proposta), toda a narração de Beerbohm é a tentativa disfarçada de descrever uma personagem tão banal e normal que ninguém poderia crer ter sido inventada. A ideia é minimizar a personagem e não a tornar «larger than life», o que poderia causar quebras na plausibilidade pseudo-realista de «Enoch Soames». O leitor tem de acreditar que está a ler a história de um «average Joe» que se acha um génio incompreendido. Esta é uma estratégia usada para trazer o leitor para perto de uma personagem imperfeita e, por defeito, humana.

Uma vez tomado Enoch Soames como pessoa real, segue-se o segundo passo, a reviravolta: fazer o comum executar algo extraordinário. O negócio com o diabo fá-lo viajar no tempo e deparar-se com a sua condição ontológica menor, pelo facto de a posteridade considerá-lo uma personagem ficcional inventada por Max Beerbohm, o narrador e escritor. Este episódio extraordinário faz literalmente o segundo passo de um truque de magia, analogamente como que fazendo desaparecer um objecto debaixo de um lenço: retira toda a «realidade» a Enoch Soames, fazendo-o desaparecer, tornando-o ficcional dentro do seu mundo, mundo esse que como já anteriormente referimos, se encontra ambiguamente justaposto com o mundo real do leitor.  Embora tenha feito Enoch Soames desaparecer, o leitor ainda não «bate palmas», porque não basta fazer desaparecer o coelho; há que o retirar da cartola. O terceiro passo, «o prestígio», não está incluído no conto, mas apenas sugerido. A intenção do final do conto é a de que, tal como Enoch Soames viajou cem anos para o futuro para confirmar a sua existência, também o leitor terá de fazer essa viagem para descobrir a ficcionalidade de Enoch Soames. O facto de haver pessoas que realizam essa viagem até ao Salão de Leitura do Museu Britânico serve para atestar a confissão de Cutter em relação ao terceiro passo: de que as pessoas não estão a prestar realmente atenção. As pessoas acham que se deslocaram para presenciar o segredo do que fez Enoch Soames viajar para o Salão de Leitura, mas a resposta não está no Salão de Leitura do Museu Britânico: a resposta está na deslocação dos leitores para confirmar a aparição. A sua deslocação (um exemplo de actividade concreta de pessoas) cria Enoch Soames, apenas não da maneira factual e materializada que tanto desejam. Se os leitores que se deslocaram quisessem realmente saber, não se teriam deslocado em primeiro lugar: apenas não teriam acreditado no conto de Beerbohm nem na «magia ontológica» que presume realizar. O acto de deslocar-se ao Salão de Leitura não é um acto de procura de respostas, mas de uma contínua busca por ser deslumbrado. Contudo, fazer algo desaparecer não é suficiente, como diz Cutter: é necessário trazer de volta o objecto de modo a realizar um truque com sucesso. Talvez seja por isso que Beerbohm não introduz o terceiro passo no seu conto: porque trazer de volta Enoch Soames significa trazê-lo de volta para a sua ficcionalidade «implícita». «Enoch Soames» é em si um truque de magia que procura conjurar uma sensação de realidade, só para de seguida o retirar novamente, mas apenas cem anos depois. Beerbohm percebeu que introduzir o terceiro passo no conto seria minar internamente a história, inviabilizando os dois passos anteriores, porque tratando-se de uma história metaficcional, o intuito de Beerbohm seria o de discursar sobre os próprios mecanismos de se fazer ficção. Talvez seja isso que Teller procura evitar ao ter-se deslocado e ao ter decidido contar por escrito esta história: que as semelhanças que o acto de escrever e o acto de fazer magia partilham podiam servir para manter a última viva e presente.

É assim que Enoch Soames, no desejo de libertar-se da sua condição ficcional («“Try,”was the prayer he threw back at me as the devil pushed him roughly out through the door—"TRY to make them know that I did exist!”»), declara explicitamente a ficção, mas obscurecendo simultaneamente a sua ficcionalidade. Isto é análogo ao modo como o mágico Angier anuncia antiteticamente no filme de Nolan que o truque que a audiência vai ver não é um truque. Teller compreendeu que o terceiro passo, o passo final, foi planeado para ser revelado em 1997, deste modo engendrado para esconder o facto mais banal e mundano: que é tudo uma ficção. Que Enoch Soames existe, mas não do jeito que desesperadamente o leitor que foi ao Salão de Leitura em 1997 quer. Tal como Pinóquio, Enoch Soames deseja tornar-se um «menino de verdade», mas enquanto Pinóquio se transforma por causas sobrenaturais dentro da sua própria história, Enoch Soames sofre uma anagnórise existencial ao ser obrigado a confrontar-se com a sua ficcionalidade. Ele descobre que nunca se tornará «de verdade», como que adquirindo paradoxalmente a verdade da ficção: que é a de que está condenado a ser somente algo que existe fruto de actividades concretas de outras pessoas que existem de uma forma mais factual e material que ele e fora do seu mundo. E que não há actividade concreta de homem algum que consiga torná-lo uma pessoa independente das actividades de outras pessoas.

Mesmo assim, há leitores que interpretam a viagem de Enoch Soames como uma metamorfose existencial realista. Mas, como previamente identificámos, é impossível confirmar factualmente que Enoch Soames foi aquele individuo que Teller avistou em 1997. Ocorre aqui uma confusão epistemológica do leitor, aproveitada por Teller e por Beerbohm: na realidade do leitor, existe uma dimensão factual e material, da qual extrapolamos existência. Por exemplo, Barack Obama existe é possível de ser verificado enquanto facto. Todavia, dentro do mundo diegético de «Enoch Soames», tudo o que nos é pedido é que acreditemos que Enoch Soames é uma personagem real. Se tal não fosse realizado com sucesso, então o conto não resultaria, seria um tremendo fracasso e não haveria particular motivo para estarmos a discutir esta excepção falhada, pois ninguém acreditaria que tal personagem fosse «real». Mas o facto de o leitor trazer para o mundo real a crença diegética da existência de Enoch Soames pode levar a certos tipos de comportamentos, tais como ir a espetáculos de magia ou deslocar-se a um Salão de Leitura do Museu Britânico às 14:10 de 3 de Junho de 1997. Tanto a magia como a leitura resultam porque há uma parte do espectador que deseja ser deslumbrado, e procurar isso é também aceitar que vai ser enganado. É a esperança de que do desconhecimento, confusão ou obscurecimento de ideias resulte algo maravilhoso (embora possível, altamente improvável). Ora, a possível «condição real» de Enoch Soames sobrevive dessa confusão: os leitores de Enoch Soames acreditam que vão presenciar algo que não conseguem explicar muito bem e que, simultaneamente, não estão muito interessados em adquirir alguma explicação de como tudo se desenrolou. Apenas querem ser deslumbrados. As últimas palavras do mágico Angier no filme de Nolan, antes de morrer, uma vez revelada a simplicidade do truque do seu inimigo mágico que tanto ambicionava possuir (morte que simboliza o fim do deslumbramento e da magia), demonstram um profundo entendimento do comportamento humano face à magia e, por extensão, à ficção, bem como a irracionalidade e contradição dos desejos de qualquer espectador: não é por o público, ou neste caso o leitor, desconhecer a verdade que se desloca ao Salão de Leitura do Museu Britânico; é precisamente porque o leitor sabe a verdade de Enoch Soames que querem ser enganados, nem que seja por um segundo:

The audience knows the truth. The world is simple. Solid. Solid all the way through. But if you could fool them, even for a second, then you can make them wonder.

[1] Kripke, Saul. (2013). Reference and Existence – The John Locke Lectures. Oxford University Press. P.74.

[2] Teller. (1997). «A Memory of the Nineteen-Nineties». The Atlantic.

[3] Beerbohm, Max. (1919). «Enoch Soames».

[4] Kripke, Saul. (2013). Reference and Existence – The John Locke Lectures. Oxford University Press, p. 76.

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