Hojôki, ou Um Relato da Minha Cabana, é uma micronarrativa biográfica escrita em 1212 pelo poeta-eremita japonês Kamo no Chômei (1153-1216). Juntamente com Saigyô (1118-1190) e Yoshida Kenkô (1283-1350), epitoma o género literário medieval designado sōan bungaku, ou literatura reclusa. Este género, que se pode enquadrar por sua vez no termo-umbrella zuihitsu, uma espécie de macro-género literário consistindo em ensaios pessoais, ideias e fragmentos vagamente conectados, surgiu, sobretudo, como resposta ao meio no qual o autor se encontrava ou que, no que toca a Kamo no Chômei especificamente, procurava abandonar.
Um Relato da Minha Cabana abre com uma ideia curiosamente heraclitiana:
O rio flui incessantemente, e a sua água nunca permanece a mesma. As bolhas que flutuam ora desvanecem, ora formam novas, mas nunca duram muito. E assim é com as pessoas neste mundo e com as suas moradias.[1]
Por motivos de comparação, deixa-se aqui o famoso fragmento de Heráclito:
Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, nem agarrar qualquer substância mortal numa condição estável, pois ela se espalha e novamente se acumula; forma-se e dissolve-se, aproxima-se e afasta-se.[2]
Ao compararmos ambas as citações, reparamos que Heráclito permanece no reino natural (menção ao rio) e teórico-abstracto (substâncias mortais, velocidades, mutações) no que toca à realidade fundamental enquanto processual; Chômei, por sua vez, está focado em diagnosticar a sua filosofia de panta rei (i.e., tudo flui) sobre o reino dos homens. Em ambas se encontra implícita a universalidade do conceito: a realidade não consiste em instâncias fixas, mas em processos e transformações perpétuas. Nenhum contradiz o outro, apesar da distância geográfica e temporal. Só que a passagem de Chômei pega neste conceito e transforma-o em um mote para descrever seguidamente a existência social e material dos homens na sua relação com a entidade imanente «natureza». Essa entidade abstracta manifesta-se constantemente através de processos que, como Chômei irá exemplificar, são tão violentos, imprevisíveis e insuportáveis, que não só provam a veracidade do seu mote, mas como que justificam o sofrimento adicional que recai sobre os homens pela sua deliberada recusa em aceitar esta característica natural e inevitável.
Bastante cedo no Hojôki, Chômei apresenta uma lista de catástrofes sucessivas (umas por mão humana, outras naturais) que assolaram a população japonesa no século XII: um incêndio que reduziu em uma noite um terço da capital a cinzas; um tufão que destruiu casas e bairros inteiros; a decisão de relocalizar a capital por um capricho imperial para outra região, instalando caos no transporte de milhares de pessoas e seus bens (no Inverno seguinte, a capital seria deslocada novamente para o local original); a fome que assolou a nação durante dois anos; a seca que adveio na Primavera e Verão; tornados e inundações no outono; e, como se tal não bastasse, no ano seguinte (1182), uma epidemia que assolou a população, e a partir daí, a escassez de bens essenciais que se instalou. Para culminar, sucedeu-se um violento terremoto que, de acordo com Chômei, fez colapsar montanhas, ampliou os riachos e inundou a terra (as réplicas subsequentes ocorreriam durante três meses). Estamos perante dois tipos de sofrimento: um sofrimento natural inevitável, sinal da transitoriedade e mutabilidade da natureza; e um sofrimento materialista, consequência do apego extremo a estruturas e fundações humanas que se crêem duradouras, mas que são construídas sobre terreno natural volátil e incerto. É contra esta segunda classe de sofrimento que Chômei se rebela e acredita ter encontrado forma de a atenuar.
A descrição detalhada e emotiva que Chômei faz destes acontecimentos extremos que viu ocorrer num curto espaço de tempo representam o pano de fundo da decisão de abandonar a sua posição reputada na sociedade, abdicar dos seus bens e responsabilidades herdados (e adquiridos), e construir uma pequena cabana só para si.
Planta da cabana de Chômei, retirada de Essays In Idleness and Hojôki. Penguin Classics. pp. 35.
Pelo facto de considerar que as pessoas viviam em pecado e corrupção, estas catástrofes representam, para Chômei, o abater-se do castigo divino sobre a sociedade japonesa: o acto de transportarem (literalmente) as suas casas e bens rio abaixo para a nova capital seria sinal de que se havia perdido o norte em termos éticos e espirituais. Chômei, inclusive, conclui pesarosamente a descrição desse período catastrófico mencionando que «todos falavam de como tudo era fútil face à incerteza da vida», e em como «os corações pareciam por um tempo um pouco menos turvos por questões mundanas», mas que «o tempo passou e agora, anos depois, já ninguém menciona sequer aquele período.»[3] É tornada explícita a oportunidade perdida de mudança de perspectiva por parte da maioria da população, mas não por Chômei. A solução, para si, era palpável: envolvia o acto de despojamento material, o abandono dos esforços mundanos sociais, e a deslocação para lugares recônditos, na maioria das vezes, montanhas ou florestas veneradas dispersas pelo território japonês.
A particularidade desta atitude de Chômei é a de que não é de um ascetismo stricto sensu. Sendo o Budismo a religião prevalente no Japão naquele período, é necessário contextualizar (grosseiramente) que Sidarta Gautama (Buda) adoptou, de acordo com as escrituras, uma vida extremamente ascética após abandonar o palácio onde vivia luxuosamente. Contudo, depois de ter oscilado entre os dois caminhos, o do hedonismo e o do ascetismo, optou por um caminho moderado, que saciasse as necessidades do corpo sem cruzar os limites da lascívia e indulgência. Esse caminho ficou denominado por o Caminho do Meio, o caminho adequado para atingir Nirvana (libertação/salvação do ciclo de morte/renascimento). Chômei, enquanto monge leigo que abraçou a tonsura, não deixou de receber e confraternizar com amigos, visitar a capital e viajar pelo país; também nunca parou de escrever, de ler e estudar literatura e, sobretudo, de apreciar esteticamente e retirar prazer da natureza. A solução, face a tamanhas tragédias naturais, não seria saltar de um extremo para o outro, mas atingir um equilíbrio, um estado moderado que, de acordo com Chômei, lhe permanece elusivo até no final da sua vida. Quando retrospectivamente analisa a sua vida, considera-se tão ou mais corrompido do que a sociedade da qual se distanciou. Eis como Chômei decide terminar Um Relato da Minha Cabana, instantes depois de admitir o seu amor pela sua cabana minúscula:
O ensinamento essencial do Buda é abandonar todo o apego. Este apreço pela minha cabana deve ser um erro, e o meu apego a uma vida de reclusão e paz um obstáculo ao renascimento. Como poderia desperdiçar os meus dias assim, descrevendo prazeres inúteis?
Nas madrugadas tranquilas pondero sobre isto e questiono o meu coração: tu fugiste do mundo para viver entre a floresta e a montanha, a fim de disciplinar a mente e praticar o Caminho [Budista]. Mas embora tenhas todos os apetrechos de um homem santo, o teu coração está corrompido. […].
Quando eu confronto o meu coração, ele não consegue responder. No máximo, esta língua mortal só pode terminar em três invocações vacilantes do sagrado e inacessível nome de Amida [Buda].[4]
A primeira passagem declara o propósito: a libertação de todo o apego. O facto de ter discorrido as razões porque abandonou a sociedade, todo o apreço que tem pela beleza natural e, sobretudo, pela cabana que construiu e de que agora retira prazer na sua descrição e contemplação, afiguram-se-lhe sintomas de um apego supérfluo. Não terá paz enquanto desperdiçar os seus dias assim. Apesar de O Caminho do Meio ser um caminho de moderação, a verdade é que os caminhos estéticos e artísticos se revelam, por vezes, em desacordo intelectual com o caminho religioso. Tal não se mostra necessariamente contraditório ou impossível de coabitar: significa que permanece uma tensão em Chômei que ambiciona a libertação do ciclo de sofrimento (morte-renascimento), mas ao mesmo tempo aprecia a beleza transitória imanente e equipara tal apego a tal desejo de libertação. O curioso é que, em termos budistas, encontramos um apego a um desejo nesta obra de Chômei, mas não apenas àquilo que ele presume ser a razão da sua corrupção. Chômei julga-se corrompido pelo prazer que retira da beleza impermanente da natureza («Como poderia desperdiçar os meus dias assim, descrevendo prazeres inúteis?»), quando a maior causa de sofrimento interna é o facto de desejar obter um estado livre de desapego. De acordo com as escrituras budistas, ambicionar o despojamento é, em si, uma forma de apego. Esse apego à ideia de libertação faz ressurgir a tensão ascética-estética enquanto contradição impossível de coabitar na sua psique e leva-o a terminar a obra de maneira anti-climática: entoando o nome de buda três vezes como forma de alcançar alguma salvação. Chômei não encontra qualquer solução para tal tensão, e é notório o estado de resignação, pessimismo e fatalismo que predomina durante a obra inteira, bem como o facto de não se considerar digno de atingir qualquer salvação/libertação.
Uma meta-leitura possível de ser realizada à última frase de Chômei («No máximo, esta língua mortal só pode terminar em três invocações vacilantes do sagrado e inacessível nome de Amida [Buda]») é a da impossibilidade de demonstrar a iluminação através da linguagem, sendo que esta ficará sempre aquém, reforçando ainda mais a efemeridade no caminho artístico/linguístico visto do prisma da salvação. Quer tenha ou não atingido a iluminação, não há nada que intua indubitavelmente um acesso superior ou transcendental da realidade no quer que Chômei pudesse comunicar literariamente nesta obra ou em outras. Essa é uma das críticas que muitos sectores budistas direcionam para a linguagem: as suas inerentes limitações no que concerne à transmissibilidade ou representação de estados superiores da consciência, de modo que vários sectores budistas pretendem exercitar o praticante a deixar de se apoiar na dimensão lógica e racional da linguagem através de exercícios linguísticos desconstrutivistas, paradoxais e circulares repetidos até à exaustão (exercícios de entoação de Koan, frases, diálogos, questões ou afirmações com o objectivo de propiciar a iluminação, prática recorrente do sector Zen budista).
Todavia, há uma dimensão espiritual e estética que permanece por acrescentar e que adensa a tensão dialética estética-ascética em Chômei: a crença nativa animista da experiência religiosa japonesa, que ainda hoje permanece impregnada na psique japonesa. Prévia à chegada do budismo e do taoismo ao Japão, religiões fundamentalmente cosmológicas, a religião indígena japonesa, denominada Xinto, proliferava. O pano de fundo dessa crença é a de que a natureza «era reconhecida duplamente enquanto processo de “morte e renascimento” e enquanto o todo que repete esse ciclo. Seres humanos estão infiltrados por esse poder da natureza e o seu sentimento está fortemente conectado com o surgimento/aparência da natureza, isto é, o ciclo anual das estações.»[5] Esta perspectiva holística das relações entre os humanos e a natureza impregnou-se no meio artístico clássico japonês, mesclando-se com a importação das crenças confucionistas, budistas e taoistas. Por sua vez, a composição literária e poética residia, na época clássica (794-1185), numa classe nobre da corte japonesa que residia nos subúrbios. É dentro deste contexto que se descobre a natureza enquanto paisagem passiva e cenário (influência maioritariamente taoista). Este entendimento da natureza não pressupõe qualquer transcendentalismo ou escape do processo transitório da natureza; pressupõe, contudo, a busca pela harmonização, por parte do indivíduo, face aos processos cíclicos e transformativos naturais. Este é o pano de fundo metafísico japonês, que influenciou a composição literária japonesa clássica e que se conservou até Chômei.
No que toca ao budismo, especificamente à vertente de Terra Pura[6], este introduziu uma visão transcendental da natureza, embutindo um entendimento objectivo da mesma (a natureza enquanto meio de sofrimento e impermanência no qual se procura a libertação/salvação, o renascimento no paraíso[7]). Apesar destas influências, a perspectiva indígena primitiva japonesa permanecia, embora sofrendo mutações até ao período medieval, quando o budismo adquiriu maior protagonismo como resposta às catástrofes naturais e guerras de sucessão intermináveis que se faziam em território japonês. Esta tensão entre diferentes perspectivas da natureza não surge com Chômei, mas é anterior a si. Os precursores poéticos que estudou e emulou manifestam já uma compreensão da natureza sincretista, composta de influências budistas, taoistas e aristocratas, usando os fenómenos naturais como cenário e paisagem agradável e passível de ser apreciada (perspectiva aristocrata), como representação da psique do poeta e desejo de harmonização (influência taoista), bem como de um pano de fundo do qual se procura transcender (tradição budista). Como resolver este contraste de posições?
Outra particularidade da tradição poética japonesa, quer clássica (794-1185), quer medieval (1185-1600), era a de que o poeta japonês não estava interessado na descoberta de novas paisagens ou cenários para evocar, descrever ou inspirar a sua produção poética: o poeta clássico aristocrata estava interessado na descrição cénica de subúrbios a partir do seu ponto de vista urbano. Os poetas clássicos descreviam sempre ambientes naturais nas suas proximidades; até mesmo quando realizavam grandes viagens não estavam preocupados com a natureza selvagem, montanhas altas, florestas profundas ou vastos oceanos: estavam interessados apenas na imediatez natural à sua volta como pano de fundo lírico.[8] Foi a partir desses registos literários que a profissão de poeta germinou durante séculos, preocupando-se mais com a sua capacidade de alusão e associação às obras maiores dos precursores do que necessariamente à inovação, quer do conteúdo, quer da forma, de reinventar a relação com a natureza. Não é um exagero concluir que o poeta clássico japonês durante séculos teve não só uma relação indireta e distante com a natureza, como também não demonstrou necessariamente qualquer interesse particular na busca de um modo mais autêntico de observação, relacionamento e entendimento com a mesma. Como tal, a tensão entre a natureza enquanto paisagem cénica bela e contemplativa chocava com a experiência pessoal trágica de Chômei. Dentro do seu entendimento da natureza ressoava agora outra bifurcação: da natureza como objecto poético lírico e paisagístico e da natureza como força destruidora indiferente. Essa segunda dimensão da natureza é em si incompatível, proibitiva e deselegante como tópico poético; não há espaço para tamanha amargura na rígida tradição literária japonesa. Face a tais acontecimentos catastróficos presenciados, como procurar a harmonização com a natureza (como dita a crença primitiva japonesa e taoista e toda uma tradição poética)? A ideia de equilíbrio e moderação budistas parece-lhe incompatível pelo nível de prazer que retira da natureza e da sua contemplação, bem como da experiência que tem da natureza como fenómeno catastrófico brutal. Os prazeres mundanos, que são inevitáveis até certo grau, são-lhe caros e não se consegue (ou quer) libertar deles, e considera ao mesmo tempo moderados o suficiente em comparação com os da sociedade da qual se afastou, fruto de cujos comportamentos materialistas e hedonistas achava ser a causa principal da natureza se ter manifestado catastroficamente da maneira que se se manifestou sobre a população japonesa. É face a todas estas aparentes incompatibilidades que a dimensão estética-ascética em Chômei se complexifica ainda mais.
Durante o período medieval, a arte poética japonesa foi-se voltando para dentro e raramente se reinventava, ficando confinada a termos e imagens convencionais e repetidos com séculos de existência. De modo que a produção poética de Kamo no Chômei, prévia ao seu exílio para longe do urbano (enquanto compositor de poesia aristocrata Waka), se encaixava dentro dessa tradição. A maior revolução na sua produção literária foi o facto de ter introduzido um rosto da natureza enquanto fenómeno destrutivo que não é possível ou desejável sequer de ser harmonizado. Face a tais catástrofes naturais e instabilidade social, económica e política, como permanecer encerrado na sistematização da natureza como mero canal expressivo de sentimentos e emoções elevados e belos, profundamente ligados à serena mudança das estações e às paisagens da capital ou outra cidade na qual se habita? Já não era suficiente a representação de poemas outonais e primaveris enquanto reconhecimento costumado do ciclo anual de morte e renascimento. A natureza que era descrita nessa tradição não era a observada por Chômei: era uma natureza ausente, quase caricatural, que não existia há séculos. Tanto que um termo foi criado, utamakura (i.e., lugares com associações poéticas) que pudessem provocar tal imagem estereotipada da natureza nas obras literárias, indirectamente incentivando a supressão de qualquer ruptura criativa por parte do poeta. Hajime Abe esclarece que «os poetas que se preocupavam principalmente com os nomes dos lugares compunham poemas artificiais com o auxílio de muitos dispositivos técnicos, um dos quais é mitate (i.e., tomar uma coisa pela outra).»[9] A aristocracia, cuja produção literária perfaz a maioria da literatura que sobreviveu em formato escrito e que influenciou séculos de literatura japonesa posterior, raramente se aventurava para fora da capital. Fruto dessa atitude (ironicamente) reclusa, os objectos de interesse tornaram-se cada vez menores ao longo dos séculos. Qualquer ponto de interesse quando se aventuravam para fora da capital era sempre referenciado de volta para utamakura. Assim, as imagens da natureza passaram a refletir não a psique de um poeta que procurava harmonizar-se com a natureza, mas uma tradição estética aristocrática gradualmente esotérica que foi passando de gerações em gerações, até cair na repetição, previsibilidade e artificialidade. Procurava-se a poesia como forma de escalar na rígida hierarquia social e artística, e menos como canal de harmonização face à transitoriedade da natureza e efemeridade da existência, ou mera forma de expressão artística por si só. Quando essa tradição é tomada por Chômei, ele compreende que, afinal, aquilo com que aspira harmonizar-se (a natureza) não passa de uma ilusão passada ao longo de gerações. A melhor solução será simplesmente o exílio de uma sociedade que mantinha ainda tal entendimento da natureza e que não aprende com as sucessivas manifestações naturais violentas a alterar os seus modos de actuar no mundo.
O processo longo e doloroso pelo qual Chômei passa é o de des-ilusão, processo de perda de uma conceptualização universal. Chômei despoja-se, através da sua experiência negativa do mundo, da crença da natureza passiva e cénica e da existência como processo de harmonização e mero despojamento material de desejos mundanos provenientes de uma sociedade corrupta. Isto porque, quando abandona a mesma, depara-se com o mesmo grau de desejos e de sofrimentos internos. A prévia conceptualização de natureza estava a obscurecer-lhe uma realidade mais opaca: de que o sofrimento é omnipresente, e que a conceptualização da natureza como processo passível de ser harmonizado ou transcendido é, pelo menos no seu caso particular, uma ideia idílica que, à falta de expressão melhor, apenas deixa a desejar. Embora o entendimento da existência budista tenha ajudado Chômei a desiludir-se da ideia tradicional da natureza, a verdade é que permaneceu elusiva a ideia de libertação e iluminação budistas. Nas palavras de Chômei:
Se moras numa área pequena da cidade, não podes escapar de um desastre quando um incêndio começa nas proximidades. Se moras em algum lugar remoto, o transporte de ida e de volta está repleto de problemas, e estás em constante perigo de ladrões. Um homem poderoso será assediado por desejos; alguém sem laços familiares será desprezado. A riqueza traz grande ansiedade, enquanto a pobreza traz ressentimentos ferozes. A dependência para com outros coloca-te sob o poder deles, enquanto o cuidado pelos outros te enredará nos apegos mundanos da afeição. Segue as regras sociais e elas te cercarão; deixa de as seguir, e serás considerado louco. Onde podemos estar, o que podemos fazer para encontrar um pequeno abrigo seguro neste mundo e um pouco de paz de espírito?[10]
O discurso de extremos bifurcados é constante em Chômei e uma realidade que o mesmo até certa medida, enfrentou. Começando num meio privilegiado e influente dentro da sociedade japonesa, acabou por cair em desfavor e decidir enfrentar a dureza e aspereza da existência fora da capital. Não é de estranhar as semelhanças de experiência vivida de Chômei com as de Buda. Também não deixa de ser relevante que a equiparação e a ideia de viver a vida de acordo com Buda seja emulando escrituras, ou seja, outra produção literária, da mesma maneira que Chômei emulava a produção poética dos seus precursores aristocratas quando compunha poesia Waka, e buscava viver de modo semelhante aos seus precursores aristocratas literários, especialmente no que toca à sua relação com a natureza como entidade poética e fenómeno cénico e plácido. Embora Chômei se achasse purificando a sua existência, na realidade estava existindo de acordo com o entendimento filtrado pela literatura religiosa e artística sobreviventes daquele período. A conclusão que ele procura para si, a libertação do ciclo de morte-renascimento semelhante a Buda, não foi alcançável, de acordo com as palavras do próprio. Seria discutível até que ponto, caso tivesse atingido tal libertação, seria inteligível a demonstração de tal estado ou a compreensão por parte de leitores como nós que não só não atingiram tal estado, mas que também se encontram fora da esfera espiritual e cultural budistas e japonesas. A única imagem que nos resta é assim a de um Chômei resignado, na sua cabana minúscula, evocando o nome de Buda até ao fim dos seus dias.