O Patinho Feio é expulso da sua família de patos por ser feio. É expulso de casa do gato e da galinha por não pôr ovos. Eventualmente depara-se e admira-se com os belos cisnes. Quase morre congelado no inverno, é salvo por uma mulher, volta a fugir e fica novamente às portas da morte. Na primavera encontra novamente os cisnes. Tem vergonha de se cruzar com eles pois sabe, por experiência, que não será bem-vindo. Engana-se: no seu reflexo vê um cisne; os outros cisnes não só o acolhem como lhe concedem o lugar de líder do bando. Por fim, o patinho feio redime-se rodeando-se dos adorados companheiros da sua «espécie».

Podemos ler esta história como a mera transformação, oriunda do crescimento natural, de um pequeno cisne (que se pode deveras confundir com um patinho feio) num belo e robusto cisne. Ou seja: lê-la num sentido biológico, que aqui se pode confundir com uma leitura «literal». Mas na verdade a perspetiva para o leitor pode ser outra, mais interessante: o patinho feio não se torna realmente num cisne. Ele imagina isso tudo e está condenado a ser continuamente rejeitado pelos outros animais mais bonitos. O final é ambíguo por causa deste pequeno acto do patinho: ter-se visto no seu próprio reflexo. Foi depois desse acto que o patinho feio engendrou a força para se sentir confiante na sua estranheza. Só assim atraiu outros, mais especificamente os que achou mais bonitos e que, assim, o deslumbraram e inspiraram.

Muitos artistas do rock alternativo, nomeadamente do punk, construíram e constroem a confiança suficiente, a força, para criarem uma comunidade alternativa real. É através dos seus discos e concertos que reúnem outros patinhos feios inebriados do desejo de serem cisnes. É feito por patinhos feios para eventuais patinhos feios que se julgam cisnes: para uma audiência que se reveja em algo expresso pelos artistas. Destaco aqui um dos álbuns mais feios e impossíveis de tomar como objeto de arte. Chama-se The Wigmaker in Eighteen Century Williamsburg e foi criado, ao longo de sete anos, por uma banda chamada To Live and Shave in LA (de ora em diante «TLASILA»).

É muito difícil ouvir este álbum, em parte por ser estranho e desafiante. No entanto, vale a pena interpretá-lo, mesmo que só se consiga ficar pela descrição de uma só pena. É essa apologia que faço a todos os que vêem qualquer coisa em obras feias e ousadas como, por exemplo, as melhores que foram criadas pelo sob a designação punk.

À primeira vista, as músicas deste álbum parecem partilhar pouca coisa com o sugerido pela palavra «punk». Talvez seja importante aqui expandir o que entendo por tal palavra. O punk está associado, no meu entender, a uma atitude de revolta. Essa atitude de revolta pode tomar várias formas, ou seja, pode usar como alvo visado dessa revolta qualquer objecto; até certos objectos que já de si são, ou foram, também de revolta. Tendo em conta esse facto, uma pergunta parece impor-se: qual será a atitude de revolta mais genuína, aquela que mais se aproxima de um estado impossível de sofrer uma revolta? Será que tal coisa existe? O meu argumento é que, no caso de existir uma atitude desse género, e que faça parte de um imaginário associado a um produto de consumo, essa atitude vai de encontro ao conceito de punk. Penso que o álbum dos TLASILA se tenta aproximar dos píncaros do punk neste sentido.

Ainda assim, o único atributo que este álbum partilha com o conceito de punk recorre de uma certa atitude expressa (não é uma questão técnica). A atitude expressa neste álbum é tanto absurda quanto radical, mas é ainda assim uma atitude a que podemos chamar especifica. Diferente, por exemplo, dos Ramones ou dos Butthole Surfers. Tal absurdismo e radicalidade reflete-se na própria música. A audição é extenuante: não há melodias, nem qualquer harmonia no sentido a que estamos acostumados; não há ritmo decifrável; em contrapartida, o cantor quase nunca muda de tom, a não ser talvez quando a sua voz é manipulada. Nunca percebemos as letras de forma a criar qualquer tipo de narrativa coerente, principalmente por o acompanhamento instrumental não o permitir. A enfase recai obviamente na própria sonoridade, da mais intransigente e anti-hipnótica alguma vez posta em disco. Ouvirmo-lo não só é extenuante como tortuoso; mas pode, ainda assim, chegar a níveis que nos fazem por vezes acreditar que este patinho feio pode mesmo ser um cisne. Neste caso não podemos ouvir este álbum de outra forma que não seja como uma metáfora, ou um conjunto de metáforas, para uma forma de vida qualquer. Mas antes de a tentar sugerir, passarei brevemente por um artigo explicitamente inspirado nos TLASILA, escrito por Ray Brassier. A sua teoria, se for tomada à letra, invalidaria qualquer interpretação do carácter a que chamei interessante, diria mesmo até atmosférico, da experiência induzida por uma composição original.

 Em «Genre is Obsolete», título que cita Tom Smith (vocalista e compositor dos TLASILA), Brassier argumenta que o «género» noise, tanto percursor como filho do que pior há no punk (no bom e mau sentido), só pode estar de acordo com as suas «possibilidades desorientadoras»[1] se se negar a ele mesmo enquanto género. Pela lógica deste jogo dialético, jogo cujas consequências já tinham sido invocadas pelo movimento dada,[2] é ao estar consciente dos limites de um género baseado unicamente na subversão da ideia de género no geral que se pode criar algo verdadeiramente original: só assim é que se pode chamar Noise com maiúscula (e que, aliás, podemos estender ao Punk), aquele que apagaria todo o ruído sem sentido. Numa espécie de síntese da atitude punk, os TLASILA criaram uma linguagem que descreve a «anomalia genérica»[3] (da Humanidade com maiúscula, por sinal) que não é só psicológica, mas sim fisiológica, «neurobiológica». Este é um tipo de abstração que é construído a partir de um preceito niilista de que a «experiência é um mito».[4] Ela é fundamentalmente sintética, como se disséssemos que um algoritmo, ao decidir o nosso leque de escolhas, «experienciou» os nossos interesses. É então, e em contrapartida, no poder da análise que se encontra a autenticidade desejada. O que, claro está, o próprio autor tenta mostrar neste artigo ao justificar o poder estético dos TLASILA.

Porque será então pejorativa uma perspetiva deste tipo para a interpretação que podemos fazer acerca de um patinho feio que acredita ser um cisne? Primeiro, porque teima em ignorar o que uma audição de um álbum nos deixa (que tipo de resposta este parece requerer); depois, sugere que, no sentido invocado por Brassier, «analisar» (algo que Brassier faz partindo rapidamente da música para uma grande conspiração que a sociedade está a maquinar contra a consciência humana) é a melhor forma de compreender esta música. Talvez aqui o autor também queira dizer que a própria música de Wigmaker é uma espécie de análise de um eventual estado humano, o que seria mais interessante: mas aí apenas faz sentido se olharmos para essa concepção de «análise» do ponto de vista metafórico. Ou seja, se os TLASILA estão aqui a fazer uma análise da condição humana através da sua própria música, essa «análise» tem de ser tomada figurativamente.

O meu problema está, além disso, na ideia de experiência-enquanto-mito ser conotada como estando de alguma forma errada. Diria antes que é um mito (dos errados) Brassier querer projetar nesta música o monstro analítico que deteta «anomalias genéricas». Quanto muito, os TLASILA criam um qualquer mito (dos não errados) que pode influenciar a experiência do que nos rodeia. Isso não é a mesma coisa que dizer que a experiência é um mito, muito menos que esta música está isenta de qualquer fator humano, fator de que depende inteiramente para ter qualquer impacto num ouvinte humano. Brassier parece simplesmente usar um tema em que é especialista, de cariz filosófico-especulativo, ignorando qualquer nuance que lhe pudesse ser apontado como de valor subjetivo. Ora, é nesse mesmo valor que reside a tarefa de um crítico que tente sugerir qualquer coisa na audição de um álbum: mesmo que esse álbum seja aparentemente inadjectivável.

O intuito do punk foi e será sempre, entre outras coisas, confundir perspetivas movendo a sua audiência. Mas não acabaram com o juízo estético, tal como os dadaístas não o fizeram. O punk veio, talvez, acentuar esse truísmo muito mais antigo de sacudir e atrapalhar perspectivas. É um truísmo que se encontra ominosamente na história de arte (algo que não proponho tratar aqui).

Voltemos ao álbum. Disse acima que Wigmaker é um daqueles álbuns que nos pode fazer acreditar em patinhos feios que se transformam em cisnes. Os membros da banda transformaram os trechos da sua própria música ao vivo e de outros ruídos numa amálgama que, a existir coerência, reside no tom quase evangélico e apocalíptico de Tom Smith circundado por bombardeamentos constantes e camadas de som dissonantes. Também existe um assalto explicito a réstias de música pop, rock e, claro, outro punk. O tsunami digital dos osciladores e do feedback derruba o loop de vários samples. O espírito hedónico-masoquista do rock mais selvagem é aqui personificado sem grandes ilusões, ou seja, de forma clara: falta de tréguas com o ouvinte, lutando contra o nosso hábito nauseabundo de consumo de música popular «nostálgica». Ou seja, pretende subverter a própria experiência que o consumidor comum tem com música, com som, no dia-a-dia citadino. O álbum caminha para a música de vanguarda, mas sem o preceito aristocrático da mesma. É punk no verdadeiro sentido da palavra.

O próprio espírito desta música contraria também a interpretação «formalista» como a que tentaria porventura fazer neste ensaio. O que pensar da manipulação sonora sem nenhum sentido óbvio? Ficando-nos pelo valor material ou concreto do próprio som é, no seu melhor, estimulante, de resposta puramente fisiológica, instintiva. Mas o tom é apocalíptico, tal como as melhores composições eletrónicas de Stockhausen. Esta combinação parece implicar que há algo de errado numa audição «superficial», como se a banda quisesse exorcizar essa mesma resposta mais instintiva: tal como as expressões faciais dos actores e actrizes pornográficos transmitem muitas vezes uma mensagem evidentemente dissonante quanto ao que eles porventura estarão a sentir no acto em que são profissionais.

Não é por acaso que faço uma analogia da música deste álbum com exorcismos e pornografia. O nome da banda é o nome de um filme pornográfico. Há um sample de uma voz feminina a relatar, depois de grande cacofonia, um acto sexual grotesco. O próprio Tom Smith fala também do processo de construção de Wigmaker como um acto de exorcismo para a fase conturbada que viveu durante o seu divórcio.[5] Longe de sugerir que devamos ler o álbum como uma alegoria dessa fase, o que me interessa é o argumento que acima propus: este álbum, do punk mais devastador e certeiro, constrói uma atmosfera, ou seja, algo que vai além do seu carácter puramente sónico, algo relacionado com o que é sugerido por esse carácter, algo que existe enquanto metáfora para uma forma de vida.

O álbum tem muito de absurdo e escatológico, portanto, algo entre o trágico e o cómico, nos seus momentos melhores e mais espirituosos. Trágico pelo tom (de sentido carregado), cómico pelo som (de sentido parodiado), espirituoso quando o aspeto essencialmente repudiável da música é absolvido pela cacofonia (também na música) que o subverte. Há um certo prazer na destruição desse aspeto repudiante. Não é o mesmo tipo de prazer que temos ao ouvir Mozart (um grande tragicómico da música). É um prazer que vem muito da revolta quanto ao absurdo mais real que é o nosso consumo comum de meios tecnológicos. Por vezes até parece que no meio destes detritos musicais há um algoritmo avariado variando sobre o tema da estupidez humana: o zapping e scrolling sem qualquer fim são exemplificados e exorcizados.

Também é a audição com um fim que os TLASILA excomungam neste álbum: os seis «travelogues» (anúncios televisivos patéticos, sonicamente manipulados) são os únicos pontos de referência na viagem da sua audição. A ligação entre as partes, ou entre os diferentes «conteúdos», é tão lógica como a que existe numa página de rede social. É, assim, a impressão de instabilidade constante, representada por núcleos aurais de uns meros segundos, que por vezes a «música» expressa. Entre a resposta instintiva e a aparente complexidade, vergamo-nos perante o excesso de informação.

Claro que não tem de haver uma só resposta a este álbum; mas esta tem de ter algum tipo de coerência. Afinal de contas o álbum começa e acaba. Os artistas que o criaram decidiram colocar uma música no primeiro lugar e outra no vigésimo sétimo lugar. O total das vinte e sete faixas é de alguma forma implicado pelas partes, tal como a forma geral de um cisne é implicado pelos seus milhares de penas. Mas não nos interessa, porque não somos, nem penso que um qualquer consumidor de discos deva ser, um anatomista de som (como Brassier parece querer sugerir com a sua conceção de «análise»). O que neste ensaio argumento é que, se há interesse em música como esta, se existe algum tipo de atmosfera recebida, por muito distante que esta esteja das que estamos habituados a receber ao ouvir música, então é porque essa atmosfera nasceu de uma experiência com valor, eventualmente subversiva. E essa experiência só tem valor porque ressoa com algo de nós mesmos.

O punk pode sacudir e atrapalhar, mas acima de tudo pode acordar algo em nós. No entanto também pode humilhar ao exprimir constantemente o quão decepcionante é o mundo à nossa volta (aqui é relevante lembrar a nossa propensão em misturar realidade e imaginação). Wigmaker faz isso mesmo. É uma obra feia que sobrevive na medida em que demonstra os horrores da conformação a uma comunidade pouco inclusiva ou com pouco dó pela variedade humana. Os TLASILA pregam-nos aqui uma partida salutar ao lembrar-nos que, por muito confortáveis que estejamos na beleza que eventualmente tenhamos, não deixamos de ser patinhos feios para um outro qualquer. Sejamos alvos da partida felizes e sem orgulho, «porque um bom coração nunca é orgulhoso».[6]

[1] «Genre is Obsolete». Podem encontrar o artigo aqui.

[2] André Breton, ao definir o dada, matou o dada.

[3] «Genre is Obsolete».

[4] Brassier parece estar a falar de «experiência» tanto no sentido de «experimentar» (algo novo: fazer experiências) como no sentido genérico de «experiência humana» (incluindo as experiências que temos ao ouvir álbuns). Para o filósofo, o conceito de experiência é usado nesse duplo sentido.

[5] «Somehow the divorce – which began in 1996 and was only finished in 2005 because we vacillated between reconnecting and breaking up for a while – was considerably more perverse than most divorces and I wanted all the louche and disfigured tangents of it represented.»… «I needed to exorcise the relationship. It was too painful and meaningful, like a knife that could never be removed. It was two years of feeling awful and therapy…». É um excerto desta entrevista.

[6] «O Patinho Feio», Hans Christian Andersen.

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