Stanley Cavell, Filósofo Indomável* — FORMA DE VIDA

O grande Stanley Cavell morreu em Junho de 2018, com 91 anos. Abaixo, o Editor Executivo para as Humanidades da Harvard University Press, Lindsay Waters, recorda o que tornava Cavell tão especial.

 

Porque não usar a palavra «estrela», perguntava Stanley no seu livro inovador sobre cinema, The World Viewed; porque não «a palavra mais bonita e mais precisa», em vez de «actor» ou «actriz»? Para a filosofia ele era uma Hepburn, um Brando, um Dean, uma Bacall, estrelas a cujas almas nos deu acesso. Sempre pensei nele e em Hilary Putnam como os glimmer twins.[1] O tempo esteve do lado deles durante muitas décadas, graças a Deus. E do nosso também!

Sabemos que esteve aqui e, infelizmente, sabemos que já partiu.

Stanley ia às reuniões mensais do Conselho de Administração da Harvard University Press. Vestia-se muitíssimo bem para ir às nossas reuniões, preparava-se cuidadosamente para elas e falava com clareza sobre os livros acerca dos quais lhe pedíamos um parecer.

E juntava-se à equipa de imprensa em eventos comuns ou extraordinários, como a apresentação, acompanhada de marmitas de almoço, de Conte d’Hiver [Conto de Inverno], de Rohmer, um filme que dissecou e fez florescer, num capítulo do seu livro Cities of Words, que tínhamos acabado de publicar. Foi um prazer simples que partilhou connosco num dia de Verão, na sala de conferências do terceiro andar do número 79 da Garden Street.

Caminhou sobre a nossa Terra e nós publicámos muitas das suas palavras mal lhe começaram a escorrer da caneta, da máquina de escrever, do processador de texto, quando ultrapassou o grande bloqueio provocado pelo fantasma e pela fúria do seu pai.

Nos anos de Camelot, como me habituei a pensar neles, Stanley foi um cavaleiro do reino dirigido por Arthur Rosenthal, servindo na Távola Redonda da Imprensa, em reuniões com outros nobres como Helen Vendler, Daniel Bell, Nathan Glazer e Samuel Huntington.

Que ele era uma maravilha ficou provado, paradoxalmente, pela veemência daqueles que se esforçavam por negar a sua existência, desde o pai a uma horda de pigmeus dos estudos de cinema (campo que se pode justamente dizer ter sido inventado por ele) e da filosofia, duas «profissões» que ele ofendia profundamente. E apesar de ter sido cavaleiro da Távola do Rei Artur, nunca foi arrogante: engraxava os sapatos e usava gravata nas reuniões de Administradores, mas a ideia de pertencer a uma profissão sempre o irritou. Na verdade, a filosofia nunca foi domada; enquanto actividade humana, precede todas as universidades e todas as profissões.

Era perfeito? Não! O que Auden disse de Yeats poderíamos dizer dele: «Foste tonto como nós; a tudo sobreviveu o teu talento».[2]

Mas era civilizado e amigo. Sentava-se connosco na Imprensa, do mesmo modo que se sentava com os nossos Administradores e com amantes de cinema no Brattle e no Harvard Film Archive, apenas para ficar em silêncio a ver um filme e conversar no fim. Estava sempre pronto para se juntar a nós e a outros e para discutir, da forma que agrada sempre aos filósofos, filmes como Groundhog Day [O Feitiço do Tempo] e O Brother, Where Art Thou? [Irmão, Onde Estás?], e tópicos que iam do mais vulgar ao mais extraordinário, ao mais doloroso, como a violência que, de forma injusta, os pais dirigem às crianças.

Aprofundou e enriqueceu a ideia de cepticismo, que pode parecer um tópico filosófico meramente técnico, tornando ética a questão acerca de como uma pessoa pode conhecer a mente de outra. Observe-se Stanley invocar a vida interna de um editor da Harvard University Press: «Quando tento imaginar o que pode ser estar na sua posição, com mais projectos em mãos do que aqueles que as pessoas comuns podem conceber, e todos com um ser humano talentoso do lado oposto ao da sua decisão a pedir pela vida, fico maravilhado com a sua capacidade para demonstrar bom humor civilizado ao emergir para o mundo das escolhas e dos resultados.» Ele tinha um projecto de um colega jovem para me mostrar: «Não há nada que deteste mais do que pôr-lhe mais um lobo à perna, mas aqui estamos todos, cada um com a sua alcateia de lobos.» Muitos autores foram amáveis, mas poucos se puseram no meu lugar da forma que ele o fez. Isto foi ele a mostrar directamente o problema das Outras Mentes.

Stanley era um pensador político, dedicado a promover a igualdade entre homens e mulheres e entre raças. Tal como John Rawls, apoiou várias mulheres nos seus estudos, encorajando-as a falar e a escrever, a tirar doutoramentos; tivemos a honra de publicar muitas delas, na HUP: Sianne Ngai, Yi-Ping Ong, Nancy Bauer. Ele penetrava profundamente a alma dos carácteres masculino e feminino. Penso nele como na heroína do filme recente, Ladybird, primeiro superficialmente, porque ele era de Sacramento, mas depois há mais: ele mudou de nome, como ela, e enfrentou as divergências com os pais. Não tentou erradicar o cepticismo. Eu via, quando conversávamos, que do mesmo modo que eu queria disfarçar todas as diferenças, ele queria encará-las, tal como aconteceu connosco um dia, numa discussão acerca do tipo Kiss Kiss Bang Bang da escrita crítica de Pauline Kael. Eu queria contornar o abismo, mas ele queria olhá-lo e falar dele.

Um dia, não há muito tempo, tive a oportunidade de colher os frutos desta sua forma de vida. Penso neste seu ensinamento do ponto de vista do «Filósofo como Produtor», que retiro da ideia de «O Autor como Produtor», de Benjamin, em que ele declara que podemos avaliar obras de arte olhando para as obras de arte de outros a que as primeiras deram origem.  Julgo que podemos avaliar se um filósofo é produtivo se ele ou ela fizerem com que outros conversem: e não apenas que conversem, mas que mudem as suas vidas. Quando li a frase que Stanley escreveu em Little Did I Know acerca de como conseguia precisar o momento em que se apercebeu de que o pai o detestava, isto é, que queria que ele morresse, liguei imediatamente ao meu único irmão (tenho sete irmãs), li-lha, e o Kevin respondeu «Eu consigo precisar o momento em que soube que o pai me detestava. Foi do outro lado do celeiro e…» Foi assim que começou a troca de ideias mais fértil que alguma vez tivéramos, e que tem continuado até hoje. Tínhamos passado a maior parte das nossas vidas sem conversar. Isto é filosofia produtiva.

A relação que Stanley e eu tínhamos não era apenas uma «boa» relação profissional. Se se julga que Harvard significa prestígio e hierarquia, peço que se considere a vida e os ensinamentos de Stanley Cavell. Quando eu era novo, não me tinha apercebido bem de que ser editor de alguém era um trabalho que se fazia até a morte nos separar, mas estou muito feliz, de um modo triste, por anunciar que Stanley está enterrado naquele que deveria ser chamado Monte da Filosofia, no cemitério de Mount Auburn, onde descansa perto de John Rawls, Bob Nozick e de outros grandes pensadores. Ele era uma estrela.


[1] Expressão por que eram conhecidos Mick Jagger e Keith Richards. (N. da T.)

[2] Tradução de Margarida Vale de Gato dos versos originais do poema In Memory of W. B. Yeats: «You were silly like us: your gift survived it all.»  (N. da T.) 

* Tradução de Maria Rita Furtado; texto original publicado no Blog da Harvard University Press: «Stanley Cavell, Philosopher Untamed».

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