Perdi meu livro no aeroporto.

— Mania de levar calhamaço em viagem — meu marido sentenciou.

Ele sabia: entre Lisboa e Madri havia apenas uma hora de voo. Com isso queria dizer: quinze minutos de decolagem e outros quinze de aterrissagem, durante os quais me dedicaria a testar incessantemente o cinto de segurança e a memorizar (sem sucesso) os gestos da aeromoça que no início alertara sobre o uso correto dos coletes salva-vidas.

No intervalo entre um assombro e outro, depois de estabilizada a aeronave e já sem qualquer ameaça de acidente aéreo, eu veria o passageiro ao lado despertar sob o susto das minhas ancas a meio palmo do seu rosto e teria de desculpar-me por pisar-lhe sem intenção os pés. É que eu decidira levantar do assento para abrir o compartimento das bagagens e, finalmente, alcançar, no primeiro zíper da minha mala, Los detectives salvajes, de Roberto Bolaño. Pouco tempo de voo em relação ao meio quilo de 624 páginas.

A casa dos meus sogros, para onde íamos, era tomada por manhãs tardias, longos almoços com sabor a cúrcuma, visitas ao ateliê de pintura onde disputávamos acirradas opiniões sobre a cor magenta, e viagens às mais recônditas vilas onde houvesse algum parente vivo. Naquela época eu pensava que as férias, antes de se ter filhos, era o tempo mais proveitoso para a leitura.

Mas já então estava enganada. Ali, os muitos livros que costumava levar na bagagem atrofiavam. Não só não os lia, como agregava novos espécimes no decorrer da visita. Carmen Martin Gaite, Calderón de la Barca, Nicanor Parra. O resultado, há anos meu marido constatava: meu ataque de impropérios contra o zíper impossível de fechar, os injustos 55 x 40 x 20 centímetros de mala onde não cabia nem mais um livro. Todo um mundo incompatível com qualquer bom viajante.

Que no, ya te dije que no entra — era a vez da minha sogra tentar me convencer a deixar alguns tomos. — Vais a perder el vuelo.

Nunca fui uma boa viajante.

Terá sido por isso que perdera um dos livros mais preciosos que já havia lido. Sobre as perambulações dos poetas do «realismo visceral» Ulisses e Arturo pela Ciudad de México, inabarcável, e a posterior emigração à Europa, onde um deles contrairia sarna e o outro viveria o resto da vida rodeado de comprimidos para o pâncreas.

Não devo ter sorrido muito ao desembrulhar um outro livro na noite de Natal. Era A solidão dos números primos. Ana, minha sogra, acercou-se para detalhar como ouviu falar de Paolo Giordano e o best-seller que publicara aos 26 anos, não sem vislumbrar para mim uma carreira literária igualmente precoce — que nunca viria a acontecer. Entre uma profecia e outra dela, meu sogro engatou, como invariavelmente ocorria, uma larga exposição sobre jazz, Chet Baker e cinema.

Nada daquilo me importava. É que Giordano e seu primeiro romance, que eu nunca chegaria a terminar, planejavam entrar em meu mundo com franca intromissão. Bolaño me exigia uma leitura dedicada, solitária, monogâmica. Tampouco prestei atenção à mudança de costumes que introduzi numa família que jamais celebrara o Natal, nunca havia montado uma árvore de plástico, via com grandes reservas os enfeites de Papai Noel — «cosa de los yanquis» — e guardava os presentes para o dia dos Reis Magos. Naquela noite, eu somente conseguia pensar como Arturo havia chegado a Luanda e se seria mesmo possível ler poesia debaixo do chuveiro, como fazia Ulisses.

Refaço os passos. A viagem de volta a Lisboa. Terei colocado o livro dentro do bolso do assento em frente, e ali ficara, encalhado, com seu peso de livro calhamaço. Mas talvez o tivesse levado comigo. Refaço os passos: no saguão de desembarque, entrara no banheiro e, como não houvesse gancho onde pendurar meus pertences, talvez os tivesse mantido no chão. O livro, o lápis. Sentia o desconsolo de Patti Smith quando notou suas mãos vazias ao entrar no voo de conexão em Houston: havia esquecido Crônica do pássaro de corda, de Haruki Murakami, no banheiro do aeroporto.

Não, não era possível. Jamais os deixaria desatendidos, e ainda menos em um banheiro. Devo tê-los abraçado enquanto meus joelhos faziam os malabarismos típicos das mulheres ante privadas públicas. Mas, se assim o fosse, como teria depois lavado as mãos, e as secado? 

— Mania de carregar tantas coisas na mão — meu marido alertava-me.

Nem eram assim tantas. Um livro, um lápis. Mania, sim, de levá-los à mão, como uma benzedeira que leva um ramo de arruda. O problema de carregar ambos, livro e lápis, é que em algum momento estaremos com as duas mãos ocupadas. Então soará o celular, precisaremos de sacar a carteira para comprar água, ou a mala cheia de fitas de Bonfim aparecerá na esteira das bagagens como um peixe metálico de cabelos tingidos e teremos de correr para resgatá-la. Decidiremos depositar os pertences algures. Será um passo em falso e definitivo.

Talvez a culpa tenha sido do lápis.

Quando comecei a buscar a famigerada seção Lost & Found entre as placas que anunciavam banheiros, saída e bagagem, tinha a ingênua convicção, partilhada somente por alguém muito obstinado, de reencontrar Arturo e Ulisses.

— Mania de não guardar bem tuas coisas — meu marido diagnosticava-me.

Como boa leitora, sempre tive más manias. Mania de ler livros inadequados para minha idade. Mania de atar títulos corretos a autores errados. De misturar personagens de histórias distintas. Mania de ler livros que nada têm a ver com a tese de doutorado que preciso escrever.

Sobretudo, mania de escrever nas margens dos livros.

E era justamente por isso que tratava-se, aquela, de uma perda irreparável. Transcrevi nas margens dos Detectives nomes espetaculares como Cesárea Tinajero, rua Hashomer, colonia Mixcoac e tantos outros de que não me acordo. É na margem esquerda dos livros onde anoto o encontro com metáforas, com a melodia de uma frase cantada, a índole de expressões como «a salto de mata» —  os livros vão, assim, nascendo pelas margens. Estão nelas o patrimônio da minha história intelectual. 

É mais do que isso. Povoados, os livros com minhas anotações são também o tecido de minha vida afetiva. A letra apressada escrevera «SEF 07/11 - 9h15» na página 21 de Malone Morre: ela me fará lembrar da manhã do meu aniversário de 27 anos, a renovar meu visto nos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras em Lisboa.

Em Photomaton & Vox de Herberto Helder havia espaço na margem norte para notas de última hora: «dezembro de joelhos». É essa caligrafia que se perde ao perder um livro. Minha letra de repente miúda atesta o definhamento de quem anseia voltar aos trópicos, mas não consegue. Na época eu pensava jamais me acostumar com aquele sol que debochava de mim, obrigando-me a várias camadas de roupas e cobertores.

Quando por fim regressasse ao Brasil, com que terror haveria de me abrigar debaixo do toldo das lojas para fugir do sol a pino?

É sempre triste perder um livro.

Os livros mais importantes são aqueles com os quais vivemos. Los detectives salvajes havia me acompanhado durante todo o inverno, quando eu imaginava que somente uma tapioca de carne seca curaria meu banzo. Levei Bolaño na viagem à família espanhola simplesmente porque já não podia ficar longe dele. Devorei as últimas páginas da obra magistral sobre um hospício, uma universidade chilena invadida nos anos 1970 e dois jovens que roubam um automóvel em busca de uma poeta em Sonora. Cheia de loucos e desvairados. De América Latina. Cheia, sobretudo, de livros.

Devorei-a enquanto não ajudava minha família a colocar os talheres na mesa, enquanto não recolhia as chaves que alguém deixara cair sobre o tapete, enquanto me fechava no quarto, fingindo fazer a sesta, e as páginas eram intercaladas pelas listras do sol de inverno a cruzar as persianas.

Na noite de Reyes, quando as conversas sobre uma tia enviada à Galícia para não morrer de fome durante a Guerra Civil espanhola preencheu a vastidão da sala e o rosto de Ana, era nos Detectives que eu pensava. Lia-o mentalmente. Mas a tristeza da minha sogra não passou incólume por mim. A vida do livro abriga as pessoas com quem vivíamos enquanto vivíamos com ele.

— Pelo menos agora já pode começar a ler 2666 — disse meu marido, em referência à última obra de Bolaño. Com seu discurso otimista de superação, como quem diz de um tio-avô «ao menos morreu feliz», ele terminara por consolidar meu sofrimento.

Dirigi-me à seção de Achados e Perdidos, cujo nome desonesto é o mesmo em todas as línguas vivas. Nunca lá encontrei nada que houvesse perdido. A funcionária, com a experiência de sete anos em regime de jornada completa, declarou que com sorte recuperavam-se malas de rodinhas, abrigos, documentos. Até mesmo celulares. Livros, jamais. Eu insisti. Era um livro muito importante, ainda por cima em espanhol, quem sabe alguém mo devolveria.

— Mas a menina não está a dizer que já o leu?

Ela não entendia meu lamento. Porque alguém lamentava a perda de um livro lido eu não lhe poderia explicar. Precisaria falar das margens, desse espaço em branco da página que se dilata com nossos garranchos e constrói a memória de uma vida. Precisaria também falar de Ana e seu desconsolo ao relatar o destino da irmã mais velha, filha de família republicana, pai preso, apartada da mãe ainda bebê para sobreviver à guerra espanhola, e que anos depois acabou casando-se com um general do regime franquista. Precisaria falar da saudade que eu teria anos mais tarde daquele mundo que me acolhera enquanto lia Bolaño. Uma saudade que na altura eu mesma desconhecia.

Preenchi o formulário como a um certificado de óbito, atravessei o corredor sob a  placa «nada a declarar», cruzei a porta automática. Lá fora, lembrei do banco metálico com encosto onde me sentara para amarrar os sapatos. Porque os meus eram sapatos de estudantes. Isso foi depois do desembarque, antes de ir ao banheiro, quando a viagem ficava para trás e, junto com ela, as férias, o Natal, os Reyes Magos.

Já não era possível regressar.

Parte do luto de perder um livro é perceber que, uma vez apropriado o significado da leitura, a posse do exemplar físico torna-se dispensável. Essa era provavelmente a lição de Patti Smith, mas eu já me havia filiado antes a Proust. Os livros que lemos são como simples «calendários que guardamos dos dias perdidos», ele diria. Por isso, folheá-los de novo é como reencontrar o tempo que passamos ao seu lado. O tempo e as pessoas que nos rodeavam.

Quando eles já não estão ao nosso alcance, resta-nos tentar rememorar sem qualquer ajuda como foi aquele último Natal em família, em que nos embrenhamos em meio às páginas de um livro grande demais enquanto a vida acontecia do lado de fora.

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