Este verão um americano queria ouvir fado, e eu mostrei-lhe Amália. Pus a tocar «Gaivota». Ah, e este fado em particular foi escrito por um poeta que vale a pena conhecer, disse-lhe em inglês. E enquanto o via ouvir o fado, apercebi-me de que não fazia o tipo de cara que uma pessoa faz quando lê Alexandre O’Neill. Ele disse que não percebia as palavras, mas adorava a música, fazia-o sentir coisas. Disse mais: que pela música e pela voz de Amália já compreendia um pouco o poema «Gaivota» e o poeta Alexandre O’Neill. Não o quis contrariar, mas fiquei com vontade de lhe dizer: pensas que ouves O’Neill, mas o que estás a ouvir é Allain Oulman. Esqueci-me de lhe perguntar o que achava que Amália dizia, e agora ele foi-se embora. Já sabendo que o poema era de um tal O’Neill, talvez imaginasse uma toada ligeiramente irlandesa. Talvez pensasse que Amália estava a dizer mais ou menos «I wish I was in Carrickfergus», que, vendo bem as coisas, não é assim tão diferente do que se diz em «Gaivota». O Sérgio Godinho, em ‘71 ou ‘72 também cantou uns poemas do O’Neill. Parecem-se eles, cantados pelo Sérgio, mais com o poeta do que «Gaivota»? Talvez, mas mesmo assim acho que se parecem mais com o cantor do que com Alexandre O’Neill. Não sei que cara se faz ao ler O’Neill, mas não é provavelmente a cara grave de quem ouve fado. No entanto, o próprio poema «Gaivota» também não se parece muito com O’Neill. Se não houvesse «Gaivota», a inteligência artificial não o conseguiria desencantar a partir da base de dados do estilo. Agora, depois deste encontro com o americano, não consigo deixar de imaginar que Alexandre O’Neill escreveu «Gaivota» como se fosse uma canção irlandesa que, passada a português se transformou em fado. Talvez até se tivesse pensado um Ulisses ao contrário que esperava que lhe trouxessem a casa ao exílio. Resolvi enviar ao americano, por email, o poema «Portugal» traduzido para inglês por Richard Zenith, assim ficava com duas ideias, uma do poeta e outra de Portugal. Expliquei-lhe que os dois poemas começam no modo conjuntivo «se». O que pinta na imaginação é não o que aconteceu, mas o que se deseja que aconteça. Que uma gaivota venha («If only a Seagull would come») e que Portugal não seja só o que o poema diz («If only, Portugal, you were just...»). O problema é que nem num a gaivota veio e nem noutro Portugal é só o que o poema diz, daí talvez o tom nostálgico de Amália e Oulman. Perguntei ao americano numa videochamada se ficou com uma ideia do poeta e de Portugal e ele respondeu-me que sim, mas difusa, tanto de um como de outro. O poeta, disse ele, tinha «an ongoing discussion with himself» relativamente ao próprio poema. Eu disse-lhe vigoroso que não era com o poema, era com Portugal. Ele respondeu que com «Portugal», claro, o poema: «Portugal, the poem Portugal». Esta minha tendência de tomar o particular pelo geral. É óbvio: se ao menos, poema, pudesses ser só o que és.