O meu avô era maquinista da CP. Corria Portugal de Norte a Sul. Era daqueles cenários de guerra: a minha avó, arranjada como uma actriz dos anos 40, parecendo ter saído de um filme a preto e branco, ia esperá-lo à estação, de farnel nas mãos, dando-lhe um beijo de raspão e passando-lhe a merenda enquanto a locomotiva atravessava a plataforma, ainda mais lentamente do que nos dias de hoje, expelindo uma massa industrial de fumo, que se misturava com o perfume dela (Audace eau de toilette). Depois ele ia para parte incerta e ela esperava, qual Penélope, accionando com os pés secos a máquina de costura, cosendo pela madrugada afora, enquanto eu tentava adormecer ouvindo o ritmo do pedal e da roda. Possivelmente terei familiares bastardos em várias localidades de Portugal, pelo que, se alguma vez decidir percorrer o interior, ou se algum deles decidir juntar-se ao êxodo rural, há uma grande probabilidade de vir a desposar um primo incógnito e conhecer os horrores da consanguinidade. Quando o meu avô saía de casa não se sabia se iria voltar. Não havia telemóveis para comprovar a continuação da existência de uma pessoa ou para descobrir através do GPS que estão, não numa travessia complicadíssima da serra, mas numa albergaria com a Dona Custódia de Jesus, meretriz. Não assisti a nada disto, contaram-me. A infidelidade do meu avô é puramente especulativa, por ser descrito como um galã. Tinha menos de um ano quando o meu avô morreu. Nas fotografias era um homem sépia, de lábios finos e olhos de melro, cinzentos, e cabelo claro, com uma poupa em forma de onda, amestrada pela laca. Na parede da casa da minha avó, um comboio entrava pela direita de um quadro, deitando uma almofada densa de fumaça, cortando matagais silvestres, inviolados excepto onde tocavam os carris, reclamando o ferro para a terra. Ponderava se era este o comboio conduzido pelo meu avô, que estaria algures por detrás da negritude da janela do condutor, invisível.

Às vezes, eu e a minha avó subíamos um degrau demasiado alto para as minhas pernas, carregadas de malas, e sentávamo-nos em comboios com assentos de estofos castanhos, espaçosos, com uma pequena protuberância amovível debaixo da janela, onde se podia escrever. Algumas carruagens tinham alcovas em beliches de dois andares e porta corrediça, e, numa divisão onde mal se conseguia entrar, uma casa de banho que nos arremessava de parede em parede, com um buraco de onde saía um barulho atemorizador, como o som de um aspirador de boca num dentista, o puxar de saliva misturado com água a descer o ralo e o tinido amplificado de ferro a ser batido. Da abertura, viam-se os carris e as pedras sobre os quais o comboio avançava.

Um vulto com dois cilindros nas mãos fazia movimentos para sinalizar a passagem de comboios, como se segurasse dois pedaços de dinamite. Casinhas albergavam os guardiães da passagem, que ali viviam, tendo feito um voto à ferroviária. A minha casa ficava ao lado de uma passagem de nível. Tinha um passadiço em madeira, que se elevava em relação às pedras, e estava protegida por uma cancela de cada lado. Da casinha branca emergia uma senhora anafada, de bata rosa, que parecia estar a trabalhar sob coacção, dado o seu ar permanentemente insatisfeito. Pare, escute, olhe, avisava uma tabuleta. Da minha casa sempre ouvi a passagem dos comboios. Com o hábito torna-se um som anónimo, como o sino de uma igreja a bater as horas ou o pedalar da máquina de costurar da minha avó.

Ao longo das viagens, víamos alterar-se a vegetação, os animais, a altitude e o terreno, parecia que atravessávamos o tempo à medida que mudavam os fenómenos meteorológicos, o Sol punha-se, a chuva batia na janela, formava-se um arco de cores no céu, fazia-se noite e, durante horas, tempestades fustigavam os vidros. Parecia que íamos para o fim do mundo. O comboio parava ominosamente em ermos com sofás a marcar paragens. Outros tinham casinhas brancas com o nome a azul em azulejo. Tínhamos espaço de sobra para nos refastelarmos, mesmo com as enormes trouxas dos passageiros. Quando tínhamos calor abríamos as janelas, respirava-se ar. E, de repente, o comboio parava e, sem que tivéssemos dado por isso, tínhamos sido transportados para o futuro.

Já na época as carruagens eram antigas e permanentemente fora de horas, mas as viagens regionais eram idílicas em comparação com as urbanas, onde nos condensamos em caixas metálicas com janelas que não abrem, entre sacos e carne, glândulas sebáceas e sudoríferas, com o nariz encostado na axila de alguém que se segura numa barra de metal, inutilmente, uma vez que os próprios corpos suportam a verticalidade uns dos outros.

A minha avó tinha uma afeição pelo comboio. Nunca tivera carta. Para ela, o comboio era um meio de ser independente, um elo com a civilização. A mesma coisa que lhe tinha dado o meu avô (conheceram-se numa estação), levava-o. Foi o fumo das máquinas que lhe deu o cancro que o levou definitivamente. Ela continuou a bater o pedal, à espera. A minha avó tinha uma resignação que lhe dava tempo para tudo. Para quem já esperara toda uma vida pela própria vida, esperar por um comboio não era nada. Já foi para outras paragens há muito tempo. O frasco do perfume é menos intenso de ano para ano. As fotografias sépia têm buracos de traça. Estações fecharam, comboios modernizaram-se. Ninguém pára, escuta e olha. Não há nenhum sítio onde queira ir, mas, por enquanto, continuo percorrendo a urbe num assento coçado. Inspirando odores não requisitados.

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