Apólogo 1
O casaquinho de urtigas
Na minha juventude ― ia pelos quinze anos ― tive uma verdadeira paixão por Pasolini, por causa do Evangelho, segundo Mateus. Todos aqueles rapazes me maravilhavam, a começar pelo anjo Gabriel, que não parecia tão ameaçador como em muitas Anunciações na pintura (sendo o caso-limite o do retábulo de Isenheim de Grünewald). Pobre daquela mulher tão nova a quem vêm dizer que será mãe de Deus, ela que ignorava estar grávida. E o marido que também não sabia, além de perplexo, infeliz. A jovem mulher é igualmente de uma beleza inebriante. Judas é a excepção, tem a boca retorcida, um mal-amado. E a cólera de Jesus agradava-me sobremaneira.
Uma coisa achava muito estranha, a figura de Maria seguindo os tormentos a que é sujeito o filho: muito velha, os cabelos completamente brancos, o rosto tão engelhado, parecia mais avó dele. Descobri algum tempo depois que a mulher que fazia de mãe de Jesus era Susana Pasolini, a própria mãe do realizador. Não me preocupou, não tirei daí nenhuma conclusão.
Agora sinto que nessa escolha há uma tese e um desejo fundidos uma no outro: através do filme, a mãe de Pasolini tornava-se virgem, isenta da violação por um órgão sexual masculino e da gestação por ela provocada; quer dizer, graças ao filme, a mãe de Pasolini saía para fora do horror do casal heterossexual e da sua matriz exclusivamente reprodutiva (falsamente natural e moralmente repugnante) e desse modo Pasolini apaziguou o medo ancestral do macho predador que devora os filhos e libertou a mãe da vergonha da violação e da gestação forçada. Na verdade, a única perspectiva na qual a mulher tem direito a ser é a da virgindade:
Corolário de um tal bloqueio é uma traumática e profunda «sexofobia», que compreende a pretensão ― igualmente traumática e profunda ― da virgindade ou ao menos da castidade por parte da mulher. Tudo isso é verdade, verdade até demais. Mas é também a minha tragédia pessoal, sobre a qual me parece pouco generoso basear certas ilações ideológicas.
Pier Paolo Pasolini, Carta a Alberto Moravia (30 de Janeiro de 1975)[1]
Bloqueio, «sexofobia» traumática e profunda, e na sua sequência, a pretensão da virgindade ou ao menos a castidade por parte da mulher, são expressões de Alberto Moravia sobre Pier Paolo Pasolini, citadas por ele na carta de resposta, acrescentando «Tudo isso é verdade, verdade até demais. Mas é também a minha tragédia pessoal, sobre a qual me parece pouco generoso basear certas ilações ideológicas».
Claro que não há vestígios de sexofobia em Pasolini, a não ser que gostar de homens não seja sexofilia, o que não parece fácil de demonstrar. Mas ele diz que sim também à sexofobia: «Tudo isso é verdade, verdade até demais». Portanto, sexofobia está usado num sentido restrito, o de ter horror às relações sexuais com mulheres. Depois da confissão de aceitação dos epítetos a ele atribuídos sobrevém uma advertência ― aliás iniciada com um suplemento confessional pungente: «é também a minha tragédia pessoal» ―, que é já uma avaliação daquilo que Alberto Moravia está a fazer com eles: usá-los como sede para argumentação. O pomo da discórdia tem a ver com o aborto: Moravia é a favor, Pasolini, contra.
Demoremo-nos neste contra. Ele entende o aborto como incentivo ao alargamento sem freio dos poderes do casal heterossexual (numa tradução grosseira: «se fodem tão legalmente, ao menos que se reproduzam»). Sim, segundo ele, o aborto é uma astúcia do sistema capitalista, um efeito e um incentivo da sociedade de consumo. À culpa sentida pela mulher, Pasolini quer acrescentar o crime, pois a legalização do aborto «sancionaria como não sendo um crime uma culpa» (143). Fazendo por ignorar que as mulheres que mais sofreram e sofriam com a penalização criminal do aborto eram as pobres, as descamisadas, sujeitas a todas as espécies de abusos, como também na guerra acontece.
No entanto, sem mencionar isto exactamente, Pasolini acaba por apontá-lo nas entrelinhas, quando incita à luta «pela difusão do conhecimento dos meios de um “amor não procriador,” considerando (eu dizia) que procriar é hoje um crime ecológico» (144). Uma campanha televisiva bem orientada diminuiria, segundo ele, as gravidezes indesejadas e, portanto, evitaria o aborto e, de uma penada, também o nascimento que hoje «constitui uma ameaça para a sobrevivência da humanidade» (144).
A abjecção suprema estará na institucionalização do vaivém entre nascimento e aborto, objectivado no casal heterossexual. Havendo uma excepção, as prostitutas, um expediente feminino abjecto para fazer soçobrar a estratégia do casal heterossexual. Daí que os chulos sejam sempre tratados com vénia, por serem eles que põem à vista a abjecção daquelas mulheres, redimindo-a.
É claro que se trata de um pensamento pessimista, para o qual o amor duma mulher por um homem e o desejo de maternidade são inaceitáveis por razões e argumentos e, ao mesmo tempo, irrepresentáveis, dada a estranheza dessa forma de existência feminina. Forma de pensamento que recebe daquele que a pensa ― alargando-se a um exército de intérpretes hagiográficos ― a honra mortificante[2] de ser político.
Que fazer das mulheres que gostam de ser mulheres e gostam de viver com homens? Demonstra-se que contribuem para o descalabro ecológico do mundo, enquanto se entretêm a parir, e contribuem para a sociedade de consumo quando se atrevem a fazer aborto, depois de terem gozado das preferências masculinas.
Havia em Lisboa nas maternidades na época em que as usei, e talvez ainda haja, quem ― em particular, enfermeiras ― dissesse às mulheres que iam dar à luz: «Agora, aguenta a dor, não pensaste nela quando estavas a foder, não é? Tivesses pensado».
Ora aqui está um outro pensamento profundamente político, também libertador da ideologia reprodutiva que se consagra no casal heterossexual, embora, neste caso, os argumentos moralistas estejam demasiado escancarados, pois a mulher prenhe é um sinal de devassidão, coisa que é evitada em Pasolini. Nestes assuntos, é preciso ser complexo e subtil, mesmo que tudo vá desaguar no mesmo, não parecendo: o desejo feminino pelo homem e pela maternidade tem de ser refreado, se possível macerado com um bom casaco de urtigas tecido pela própria.
Coda
Aqui calha bem evocar o pessimismo de Guido Ceronetti[3] (a fonte é sempre Il silenzio del corpo, Piccola Biblioteca 75, Adelphi Edizioni, Milano, 1994) para comparação. Para este pensador ― estudioso do Qohélet «et pour cause» ― não há qualquer objecção ao casal heterossexual, ele gosta de mulheres, e, apesar de defender também a evitação da gravidez, não o faz por razões de ecologia, nem muito menos por defesa moral da virgindade e da castidade femininas. Com ele entramos numa esfera ontológica assente num dever existencial: impedir que venha ao mundo mais um que vai morrer, multiplicando incessantemente a angústia humana. Nesse sentido, para Ceronetti o aborto é um gesto de legítima defesa da mulher: não querer albergar dentro de si destinos de morte. Além disso, entre a gravidez do acaso e a sua programação, seja do foro doméstico seja do foro médico (sobretudo nos casos de engenharia genético-ginecológica), prefere a primeira, pois a segunda é um crime premeditado; e na origem da primeira pode ter havido um acto de amor.
Como quer que seja, ambos ― Pasolini e Ceronetti ― querem libertar a mulher dos constrangimentos da maternidade. Haverá mulheres que agradecem e haverá mulheres que rejeitarão esta invasão masculina do foro da sua intimidade. Mas também há mulheres a pensar assim. Ver-se-á que em A Ronda da Noite de Agustina se encontram ideias quase equivalentes, embora ela consiga acrescentar-lhes sempre um antídoto, sem o qual morreríamos envenenadas.
Apólogo 2
O grande pensamento[4]
No momento em que Maria Rosa observa Nabasco, o marido, a fumar uma cigarrilha como se beijasse demoradamente uma amante, o desentendimento entre mulheres e homens toma a dianteira através do seu ciúme despeitado. Ela via-o fumar como se fizesse amor, num estar fora de si em que se misturavam um «ardor contido» e um «silencioso pasmo de se sentir possuído». Nada disto sentia Maria Rosa que ele sentisse quando a beijava. «Nem eu queria». Arrastado pelo despeito vem-lhe à boca um vómito, que expulsa para a luz do dia a sua violação. Mas não é tudo, pois a consciência da violação traz com ela «qualquer coisa que a segurava à terra e punha dentro dela um insecto a que era preciso dar um nome e uma identidade», ficar prenhe, engravidar. Por ela acima sobe uma revolta hiante: «— Que querem de mim?».
Sim, que querem todos eles dela? Nenhuma resposta é dada, mas sobrevém uma variação do grande pensamento que sossegará todos os vómitos: «A ideia de que um dia não daria à luz, nem teria prazer nem dor, agiu nela como um sedativo. Libertação do desejo e da morte» (palavras que um budista não comporia melhor).
Sempre que a sua vida está em causa de uma maneira premente e insolúvel, Maria Rosa faz uma pergunta a que ninguém vai responder, perguntas que são gritos que não saram as feridas, libertações temporárias da dor. Mais à frente encontraremos uma outra dessas perguntas sob a forma de declaração premente e fatal.
Qual é o grande pensamento de que aquele é uma variação? (Ainda voltarei à variação.)
Por duas vezes se fala de aborto em A Ronda da Noite,[5] uma no início e outra a meio do romance. Embora as mulheres tenham nomes diferentes, respectivamente, Patrícia e Margô, parecem ser a mesma personagem, a cunhada ou uma das amigas íntimas de Maria Rosa, talvez uma hesitação ou uma duplicação de personagens. Em ambos os casos, o aborto é mal parado e quer Patrícia quer Margô morrem dos seus efeitos.
Por duas vezes são inequívocos a tolerância e o lamento de Maria Rosa. Porém, literariamente falando, os ingredientes emocionais e argumentativos não se equivalem. A notícia da morte de um «aborto mal parado» de Margô é antecedida por um breve diálogo, cheio de riso e de sub-entendidos:
— Para onde vais Margô? — dizia Maria Rosa […]
— Para o coração do mundo.
— O coração do mundo é Paris. E Patras o olho do cu.
— Disparate! Queres alguma coisa?
— Alguma coisa… um cachorro quente com muita mostarda. Não estou a brincar. São os melhores que há.
Mas Margô não voltou lá a casa, morreu dum aborto mal parado. O enterro dela não foi concorrido.
Já entre Maria Rosa e Patrícia entabula-se uma conversa, precedida pelos pensamentos sombrios e inquietos de Maria Rosa, que nenhum salão setecentista desdenharia. O aborto parecia-lhe fazer parte «duma maldição que pesava sobre as mulheres». E logo de imediato, sem anúncio nem trombetas, o grande pensamento: «Alguém lhe tinha dito que o mundo só tinha salvação quando as mulheres deixassem de ter filhos e os sexos fossem só um. Era inconcebível, mas talvez se chegasse lá um dia».[6] Deixar cair a maternidade, renunciar ao desejo de uma outra vida dentro do corpo, implica ter outro corpo, e desagua na redução dos dois sexos a um, fazendo desaparecer a diferença entre mulheres e homens.
Claro que Maria Rosa não está a pensar em operações feitas às mulheres para lhes arrancar o útero, quem faria as operações e a que título? O grande pensamento é uma ideia e não um programa de acção, do mesmo modo que a concepção do bom selvagem em Rousseau não é uma descrição de facto, mas uma ideia relativa à origem do ser humano, tal como a surpreendemos já no primeiro poema da humanidade, o Gilgamés. Quer dizer, a origem não pertence a nenhuma cronologia evolutiva, é mais uma categoria que acompanha a visão de como seja o ser humano. Claro que Hobbes tinha outra ideia de origem, a do homem lobo do homem, e o seu conceito de soberano pretende corrigir até certo ponto essa determinação, que não se pode erradicar da vida humana. Escolha quem possa.
As ideias vão direitas à realidade e são forças motrizes da razão (usando e abusando, respectivamente, de Wittgenstein e de Kant), quer dizer, por um lado, as ideias acertam na realidade e logo se vê o que acontece; e, por outro, ao moverem-se as ideias movem o espírito, são fontes de luz. Esta ideia do apagamento das diferenças entre os sexos é, como diz Maria Rosa, «inconcebível» e contém, ao mesmo tempo, uma expectativa de actualização sob reserva: «talvez se chegasse lá um dia». Coisas geradas pelo imenso cansaço da mulher que foi declarada culpada por dar à luz e, ao mesmo tempo, culpada por abortar, esgotamento que se torna uma náusea sem fim para aquela que sente como violação a primeira relação sexual com um homem ― e talvez todas as que se lhe seguem ―, e como um abuso à integridade da sua própria vida — «um insecto a que era preciso dar um nome e uma identidade» ― a gestação da criança.
Agora percebe-se porque é que livrar-se do desejo e da morte, no pressuposto de que um dia ela (ou qualquer outra mulher) já não desse à luz, nem conhecesse prazer nem dor, seja uma variação do grande pensamento que, a realizar-se, faria descer sobre os humanos, indiferenciados e despojados de desejo, a ataraxia, o nirvana ou outra versão qualquer de quietismo. Seria seguramente o fim da história humana, supondo que o nascimento, e com ele a morte, teria sido abolida.[7] Eis, para Hannah Arendt, o pensamento do horror absoluto, que ela apresenta como argumento para não aceitar o ponto de vista de Hermann Broch sobre a morte como mal absoluto, em carta de 20 de Fevereiro de 1949 a ele dirigida.[8] Sem a morte (e, portanto, sem o nascimento), a vida humana seria insuportável, seria como convivermos, em regime de sujeição, com a coisa em si.
Você diz: se não houvesse morte não haveria terror na terra, não haveria medo na terra. Por mim estou em crer que, se não houvesse morte, o terror na terra seria insuportável. Não haveria possibilidade de relativização, nós estaríamos então, por assim dizer, à mercê da coisa em si, estaríamos confrontados com a coisa em si.
Voltemos à Ronda. Não será de mais sublinhar que neste diálogo entre Maria Rosa e Patrícia são as mulheres que se ocupam dos problemas próprios das mulheres. O que alcança o seu clímax no modo como Patrícia remata a conversa com a amiga: «Não houve o primeiro Adão mas a primeira Eva[9] [uma crítica àquele “burro do Lawrence”, o de Lady Chatterley] Dá-me mais uma pinga de chá.»
Antes deste final apaziguado, Patrícia ficou estarrecida com «essa do sexo único. […] Fazes ideia do que estás a dizer?», não sem outra pergunta prévia: «— O que andas tu a ler, menina? Depois da Lady Chaterley julguei que já tinhas lido tudo.» E a resposta pronta e clara de Maria Rosa deixa-a muito hesitante sobre a sua decisão: «— Faço. Já não te metias em sarilhos nem ias parar a uma clínica onde te remexem nas entranhas como se estivessem a abrir um cofre em oito segundos! Já é ser perito de arrombamento!» Os «oito segundos» foram indicados por Patrícia como o tempo recorde do médico Rogeiro Conceição para resolver aquilo. Quanto ao arrombamento, disso sabem todas as mulheres, pois, para se lhes chegar às entranhas do sexo — observações clínicas, chama-se —, é preciso arrombar, entrar, remexer por dentro, e as entranhas estão à mercê, numa mistura, em diversos graus, de temor, dor e humilhação. Maria Rosa não se fica por aqui, ou melhor, acrescenta ao grande pensamento uma adenda, também nossa conhecida: ser mulher está na origem de todo o mal, devido aos efeitos que a atracção feminina provoca nos homens, nos seus desejos e prazeres que fazem crescer o séquito de excitantes, crueldades imprescindíveis. Assim, se houver uma redução dos dois sexos a um, o mal será também erradicado. Também estas palavras semeiam grande perplexidade em Patrícia Gouveia, que, passados dias, «morreu e aquilo entendeu-se como um desastre. Os médicos calaram-se no diagnóstico, o que levantou mais suspeitas, tanto mais que ela tinha recorrido a uma parteira e não teve a assistência do tal experiente arrombador de cofres.»
Neste ponto Maria Rosa empreende uma extraordinária meditação sobre o descuido humano, neste caso feminino, sobre a falta de atenção ao perigo, o desleixo em relação à ameaça que nunca cessa, estar vivo é isso, e o mais arcaico crocodilo dos pântanos nunca o esquece. A amiga Patrícia tinha-o esquecido. Sim, a natureza no que respeita aos humanos «cometeu erros uns atrás dos outros» e nós não nos aperfeiçoámos. Trocado por miúdos, a luta pela vida cedeu à filosofia da finitude e seus delíquios: «Que vida! Patrícia Xavier ia impecavelmente penteada quando foi para o caixão, e parecia bem, que era o que ela mais desejava.»[10]
Talvez tenha a ver com o segredo das entranhas a pergunta e a resposta que Martinho faz e dá: «O que é uma mulher? Não era, bem vistas as coisas, um predicado real.» Não será impróprio vincular esta suspensão de predicado real à constelação formada pelo escondimento das entranhas sexuais da mulher ― «a mulher está no útero, já diziam os romanos», declara ainda Martinho, em conversa com o doutor Horácio ― e o seu gosto pelas aparências.
Da menstruação ao climatério e à menopausa solta-se uma quantidade de dores de cabeça para os homens que nelas pensam ou que sentem neles os seus imperscrutáveis efeitos, é o caso de Martinho. O Doutor Horácio Assis tenta prepará-lo para o que ainda tem de aprender com Judite. É que, segundo ele, as mulheres sabem que os homens pressentem que há nelas um ponto de ruptura a que ele e outros a médicos chamam climatério (período que antecede ou prenuncia a menopausa), «em que as mulheres deixam a sua dimensão terrestre e todas as ligações com a terra lhes são indiferentes. Não sem sofrimento, não sem desordem profunda. A transformação dos fenómenos do corpo são a mudança que se opera na sua mente.» As consequências eram imprevisíveis, tanto se poderiam manifestar por um desejo de interioridade, e até de clausura, como pela vontade irrefreável de fuga. E para Horácio Assis o climatério de Judite já tinha começado. Muitas vezes a solução para essa angústia, essa previsão de abandono, está num gesto equivalente do homem, que um dia sai precipitadamente de casa, talvez para constituir outra família. Como sublinha Agustina, Martinho aceitaria melhor a morte da mulher do que ser abandonado por ela. É o que acaba por acontecer.
E, no entanto, há uma proximidade entre Martinho e Judite, com quem casou e por quem foi abandonado, entre Martinho e todas as mulheres que ele vislumbra e surpreende, desde a avó Maria Rosa, o seu mais alto amor, até às criadas que cuidaram dele na infância, entre elas, Elisa e Armanda e, finalmente, Josefa, a serva mais recente, mais moderna, que não aguentará a falta de compaixão que ela sente na obsessão dele pela Ronda da Noite, isto é, que uma obra de arte possa vencer o amor que ela tem por ele. Martinho há-de passar pela agonia de perder a pintura que lhe deu vida, lhe ensinou a vida, e na qual desejava ardentemente entrar e não mais sair, mas não soçobra e aceita por algum tempo amar aquela mulher, que também o há-de abandonar.
Martinho é uma criatura única em toda a obra de Agustina, sobretudo por ser um rapaz que se sente atraído pela obscura passividade feminina, o poder de um medium ― é mais comum na obra de Agustina o homem ter qualquer coisa dessa passividade ―, e que a escritora acompanha desde o início até ao fim, embora lamente no final do romance não ter começado onde devia. Ela sente uma enorme curiosidade por Martinho, que anda por assim dizer ao deus-dará de propriedade em propriedade, seguindo os passos das mudanças de lugar do quadro de Rembrandt. Ninguém o perceberá melhor do que Agustina, mas também para ela ele é um enigma, um mutante, diz ela.
Entre as páginas 111 e 113, com um breve prolongamento na página 342, fala-se de mutantes. Mutante é alguém que ama as ruínas, pois nelas surpreende que o «sentido relativo da vida» está prenhe de fracasso. Pergunta por duas vezes Agustina:
E se Martinho fosse um mutante? Desde criança que ele agia nas pessoas com alguma projecção que lhe era estranha. [...] Lembrava-se de como as outras crianças (algumas pobres, filhos de lavadeiras e de operários que Maria Rosa chamava como para dar exemplo de beatitude social) o rodeavam automaticamente, como se todos os conteúdos interiores fossem um só fenómeno desde o fundamento da vida.
[...] E se Martinho fosse um mutante? Nada de transcendente e de superior, mas uma centelha de animação que a tudo dá movimento e sentido.
Martinho é um ouvidor, um observador gracioso e inclemente, uma força que, por amor de não ter lugar fixo, isto é, por aceitar o que a vida lhe traz, ferindo-se e nunca lambendo as feridas, anima, atira para a frente, atrai, seduz e deixa cair quem se aproxima dele, sempre num estado de paixão sonâmbula, uma reencarnação do eros platónico.
Finalmente Agustina resume a sua ideia de mutante: «um visionário, que vive do poder da neurose». Assim se passa da força grega de viver que dispensa qualquer finalística, às doutrinas psicanalíticas, bem apreciadas por Agustina, e não sem razão, pois é o termo visionário que permite esse salto mortal. Por conseguinte, um mutante é um humano que sofre de uma forma particular de neurose, que vê o que está diante dele sem voltar a cabeça para o lado, adivinhando as metamorfoses que estão para vir sem mexer um dedo que seja para contribuir para que o mundo altere a sua feição. Não por soberba ou indiferença, mas porque não foi fadado para tal, o destino dele é ver e soldar uns aos outros aqueles que vão atravessando o romance, passando na sua vida. Talvez seja ele a lançadeira da teia de Agustina nesta obra.
De início achavam que a estranheza de Martinho vinha de ele gostar de rapazes, mas, em breve, abandonam a ideia, pois este rapaz mostra um gosto inequívoco pelo cheiro exalado pelas pernas das mulheres que visitam a avó e é difícil fazê-lo sair do esconderijo debaixo da mesa do jantar. É pelo seu cheiro e não pelo que elas dizem que os homens ligam às mulheres. Isto declara Armanda a Elisa, duas das criadas de Maria Rosa que cuidaram de Martinho na infância (Elisa reage, abrupta: «— És uma porca.» O comentário de Armanda é consolador: «— Sou assim.»)
Porém a determinação de mutante, mesmo que a palavra não seja usada, recobra os seus direitos de cidadania na formulação sem rodeios do grande pensamento, mesmo envolvida em roupagens eruditas, a saber, pela voz da Medeia de Eurípides. Foi a Martinho que a avó ouviu tal enormidade:
— Há umas palavras da Medeia, de Eurípedes, em que ela diz que preferia ir para a frente de batalha a dar à luz. Penso que isto explica a irreconciliação entre as mulheres e nós. Só teremos paz quando as mulheres deixarem de parir.
— Isso é assustador, mas não se pode ir mais longe. Onde leste isso?
— Não sei, nem quero saber.
— Está feito, está feito! — disse ela como se concluísse de repente alguma coisa que lhe repugnasse. [...] Martinho pensou: «Tudo o que se faz por elas é pouco, são mal-agradecidas e gostavam de nos banir do mundo, tanto nos acham imperdoáveis, tanto nus como vestidos.»
Apesar de citar uma mulher, infanticida pela loucura do amor, e de por ela recolher a explicação para a «irreconciliação entre as mulheres e nós», o ponto de partida é masculino, pois é dele e dos seus pares que se trata: «Só teremos paz quando as mulheres deixarem de parir.» Maria Rosa reage às palavras do neto como Patrícia tinha reagido às dela, assustada e curiosa. Ambos, avó e neto, parecem querer a mesma coisa, a saber, a paz à custa da abdicação de um dos partidos em guerra. Só que, no caso de Maria Rosa, trata-se de reduzir os sexos a um; no de Martinho, as letras superaram definitivamente a alusão: para haver paz entre os sexos, é preciso que as mulheres prescindam de parir. O símbolo da redução, que é uma espécie de retorno à forma redonda dos primeiros humanos, tal como Aristófanes os descreve no Banquete, desvaneceu-se. A resposta à pergunta da avó: «— Onde leste isso?» é voluntariosa e agreste: «— Não sei, nem quero saber.» A isso ela exclama, num ataque de fúria e ressentimento: «— Está feito, está feito! — disse ela como se concluísse de repente alguma coisa que lhe repugnasse.», equivalente à pergunta: «Que querem de mim?» «— Está feito, está feito!»: ter nascido mulher, ter tido uma filha, ter aceitado criar o neto que a mãe pôs de lado, consciente de que nada poderá ser alterado na vida dela e no mundo em que vive. Martinho sente que foi longe de mais e, ao mesmo tempo, que nunca chegará a captar aquela mulher, as mulheres, que a irreconciliação é irremediável, ele sabe que o obstáculo ao bom entendimento não é elas parirem, é eles acharem-se banidos do mundo, achados por elas ― insaciáveis e ingratas ―, «imperdoáveis, tanto nus como vestidos».
Haveria muito a dizer (tanto impensado que é apontado e este é um impensado constante nas discussões sobre homens e mulheres, mulheres e homens) no que toca à tentativa de separar o sexo da violência. A vida é cheia de violência, como eximir o sexo dela? Maria Rosa sabe agudamente que é assim e isso explode, como se viu, aqui e ali, mas ainda há o caso do perigo a que estão sujeitas crianças e recém-nascidos, por exemplo, a sua filha Paula, que ela vigiou noites e noites, insone, temendo o macho, o predador. E conclui, entre um lampejo de fúria e uma carícia à gata: «— Não somos nada de bonito. É pena. Mas isto há-de melhorar.» Que isto há-de melhorar liga bem com a expectativa que a enfermeira, e talvez também Agustina, tem de Martinho se recompor da pneumonia da qual morrerá.
«Vista de perto, a vida das pessoas só era seguida à linha de água, as profundezas não se enxergavam, lá aonde passam os peixes cegos e as raias gigantes.» Eis um pensamento de Martinho, inconfessado. Sabemos que Agustina é capaz de descer a estas profundezas, embora não se demore muito nelas, pois seria sufocada pelo lodo ignoto e perderia a visão (mutante deve ser ela). Por isso, vêmo-la regressar à linha de água, entreter-se com cachorros-quentes ou introduzir a compaixão onde ela não era esperada: «Sem compaixão, o sexo é uma batalha vulgar, um crime como não há outro igual.» E, através de Martinho, as mulheres, incompreendidas, desejadas, veladas como mortas, que atravessam a sua vida, são surpreendidas como «preciosas, justas, condimentadas com pimenta e giroflé. Sem elas só havia cavalariças no mundo.» A cada um o seu cheiro.
Eis alguns antídotos para o grande pensamento e as suas variações. Mas falta o mais silencioso e o mais doce de todos os antídotos (embora as profundezas se continuem a enxergar), a cena da mãe (que trabalha fora de casa todo o dia e só chega para a ceia) a amamentar o filho:
A mãe só chegava para a ceia, tinha a blusa molhada de leite que se soltava e punha a criança ao peito. Deitava-lhe por cima da cabeça um lenço de assoar e, na sombra, protegida, atenta aos ruídos da casa, a criança mamava. Ela, a mãe, sentada na soleira, ou numa cadeira baixa, a falar alto, a contar vidas. Se a voz era zangada, a criança chorava, ela embalava-a, ajeitando na mama a cabeça do menino. Os morcegos começavam a voar baixo, pressentindo o gado que saía para beber.
Apólogo 3
A canção perpétua
É na música que o motivo da mulher abandonada conhece o seu clímax mais frenético e pungente através da forma emotiva e estilística do lamento que só a voz humana, no caso, as vozes das mulheres, restitui. Evoco «O lamento da Ninfa» de Monteverdi, a ária em que Dido lança o seu grito lamentoso pelo abandono de Eneias, na ópera de Purcell, e «A canção perpétua» de Ernst Chausson.
Apesar do filme de Kirio Urayama se intitular «A mulher que eu abandonei» (1969) e ser a descrição que um homem, Tsutomu Yoshiska, faz de um gesto irreparável da vida dele, o título que escolhi para este apólogo, dedicado a esse filme, tenta fazer justiça ao lamento que se solta da mulher abandonada, Mitsu Morita ― uma adolescente provinciana, tímida, meia-inadaptada e perdidamente apaixonada pelo homem, na altura ainda um estudante, que a abandonou ―, e se ouve no filme inteiro. Tsutomu Yoshioka também o escuta, está sempre a escutá-lo.
Entre os realizadores japoneses que fazem parte do cânone aclamado, o que não é o caso de Urayama, apesar de admirar muito Ozu, a minha preferência vai para Mizoguchi, cujo olhar sobre as mulheres e os seus pontos de vista, os seus sofrimentos, os seus segredos, numa sociedade em que o desejo masculino é tão soberano, parece um milagre. Também em Urayama se reencontra esse olhar, embora não conheça em Mizoguchi uma figura feminina equivalente à de Mitsu Morita.
Devo a Miguel Patrício[11] a possibilidade de conhecer este realizador e este filme. Devo-lhe ainda uma série de considerações muito elucidativas sobre a cultura japonesa, em particular relativas ao fundo religioso cristão no qual assenta a concepção do filme, seguindo um argumento elaborado a partir do romance de Shusaku Endô cuja filiação religiosa é precisamente católica. Miguel Patrício lembrou-me em conversa electrónica que o escritor refere no posfácio que «a Mitsu é o Jesus que todo o cristão abandona todos os dias», o que, segundo ele, se comprova no filme por ela «desencadear, pelo seu sofrimento aparentemente absurdo, a consciência de todos os intervenientes que lidam com ela».
Por meu lado, como se verá, não darei relevo suficiente a este aspecto, pois há outros que me interessam mais, embora sejam inevitáveis as alusões a ele, como é o caso das cerimónias fúnebres de Mitsu Morita, onde a presença do crucifixo irradia consequências simbólicas evidentes. Também ficará entre parêntesis a interioridade de Tsutomu, que Kirio Urayama nos dá a conhecer, através dos seus sonhos e do papel da máscara de teatro Nô, que o assombra, e sobre os quais haveria muito a dizer que não será dito. Talvez seja da minha parte uma decisão selvagem, mas não a quero evitar.
O que é que me interessou? A paixão de Mitsu por Tsutomu, o abandono dela por ele, o lamento sem fim desta adolescente a tornar-se mulher que nunca ultrapassa esse tornar-se, nunca chega a crescer, escutado pelo homem que a abandonou e não a consegue esquecer, os sofrimentos por que ela passa, a morte dela, o que ele diz que ela é e o que ele diz que ele não é, e a violência do desejo.
Em todo o caso, não será demais sublinhar que «o Jesus que todo o cristão abandona todos os dias» é uma mulher (vejo-a sempre como uma adolescente, uma criança mesmo), Mitsu, possuída por um amor inextinguível que torna o corpo soberano regendo e obedecendo a todos os impulsos do desejo e dos seus prazeres. Talvez aqui seja de seguir a declaração de Hamann, nunca suficientemente citada: «Não consigo imaginar a divindade sem pudenda.»
Nos finais dos anos sessenta, Tóquio é um composto americanizado ― aliás, as resistências que se fazem sentir são mostradas, sobretudo imagens de manifestações contra a influência do poder americano ―, onde os homens, de todos os géneros e feitios, gostam de sexo e de beber, obcecados pelo trabalho, e a economia está numa expansão desenfreada, em particular a indústria automóvel. Não sei se estará certo dizer obcecados pelo trabalho, seria mais certo falar da importância de ter um trabalho e da luta pelas hierarquias.
Farei a descrição de sete cenas: a primeira, no dia em que Mitsu e Tsutomu se vêem pela primeira vez e que acaba com ela a esquivar-se, assustada, firme e já disposta à sujeição, às violentas investidas de Tsutomu, que quer arrastá-la à força para os seus bras nerveux.[12] Kirio Urayama sabe filmar como ninguém as expressões do desejo, os seus efeitos nos músculos do rosto e do corpo de Tsutomu, e nos de Mitsu, gerados pelo medo, a vontade de obedecer àquele rapaz irresistível e o ímpeto espontâneo de fugir. Ela promete voltar: Et puis je ne sais plus comment / Il est devenu mon amant.
Na segunda cena confirmamos que eles se tornaram amantes. Quase não são ditas palavras (a não ser as da canção japonesa de influência ocidental, cujo ritmo chamará por Mitsu, que sabe a letra de cor e dança, dança). Antes disso, os deliciosos ― e inquietantes, pois sente-se transbordar a tensão taciturna de Tsutomu ― momentos no mar, onde reina a disposição infantil dela, uma espécie de travessura, reveladora da crença inabalável na benevolência do amante. É então que ela ouve a canção e, rápida, sobe com determinação as dunas para se juntar ao grupo de jovens que cantam e dançam. Impressiona o modo desajeitado, convicto, abandonado e sensual como Mitsu dança, Tsutomu deixa-se ficar a ver, talvez antecipando já o que irá perder, percebendo para sempre que ela é inapreensível, indomável. Segue-se, no dia seguinte, o abandono. De manhã ela vê-se sozinha, procura e chama por ele em vão: Mais lui, sentant son cœur éteint / S’en est allé l’autre matin/ Sans moi, dans un pays lointain.[13]
Todo o corpo dela sente o abandono, engravidou e faz um aborto. Nunca o esquece, por isso é incapaz de ceder às instantes formas de aliciamento para se tornar prostituta, tentadas repetidas vezes por uma mulher com quem ela chega a viver no mesmo quarto e que a perseguirá até à sua morte.
Anos mais tarde, dá-se um reencontro por acaso, entramos na terceira cena. Não, não é Mitsu que o encontra, é Tsutomu que de súbito, enquanto guia ― sentado num carro ao lado de uma mulher, secretária na empresa onde ele trabalha e sobrinha do patrão, Mariko, cujo noivado vai ser anunciado formalmente em casa dos pais e parentes dela ― a surpreende entre ruas, casas e pessoas em movimento, num extraordinário exercício de pequenas percepções. Ele arranja um pretexto para parar e sair do carro, corre desvairadamente para tentar seguir o rastro de Mitsu e consegue apanhá-la numa espécie de beco, no momento em que ela está quase a ficar fora de campo, preparando-se para virar à esquerda, talvez para entrar na casa onde vive. Segura nas mãos as compras que acabou de fazer e, mal o vê ― não me lembro se ele chama pelo nome dela, em todo o caso está diante dela parado, a poucos metros de distância ―, detém-se como atravessada por um projéctil que a atinge, ardente. Olham-se longamente, embora tudo se passe em breves segundos, ele faz as perguntas banais, essas que não é possível evitar, e despede-se. Então ela deixa cair todas as coisas que tinha nas mãos como se um tremor de terra as fizesse desmoronar, os joelhos vacilam e o corpo todo desliza até ao chão, arrastado pela força da dor que chama sempre pela outra, sempre à espreita, a da gravidade. Momento sublime.
Quinta cena (que se mistura com outras do mesmo género), Mitsu é induzida a prostituir-se, através de argumentos e de actos de coacção, e resiste. Eis um motivo recorrente no filme desde que ela foi abandonada por Tsutomu; prostituir-se é um recurso de sobrevivência de muitas adolescentes à deriva como ela. Levada para o prostíbulo pela mão da tal amiga angariadora, sedenta de a ver ganhar a vida, Mitsu recusa uma vez mais as propostas da mulher que a fecha num quarto, ao lado daquele onde ela e o amante ou o chulo ou o cúmplice (não é comum os chulos serem amantes daquelas de quem são chulos) se entretêm sexualmente, gritando e espojando-se um sobre o outro ruidosamente. A mulher talvez diga (ou será o homem?): «― Seria melhor não fazermos tanto alarido, que Mitsu está do outro lado da porta.» Ao que ela ou ele responde: «― É bom que vá aprendendo.» Do outro lado da porta, Mitsu retorce-se desesperada. Como isto me fez lembrar aquela passagem de Voyage au bout de la nuit de Céline, em que um casal obriga a filha, uma menina de sete anos, a assistir às suas violentas sessões de sexo. O que mais a faz estremecer é o que ela ouve, suplica-lhes que não gritem, não repitam aquelas palavras. Para eles essas súplicas são outros tantos excitantes. O silêncio empestado pelo horror de Mitsu deve produzir o mesmo efeito. Kirio Urayama não se demora nesse jeu de massacre.
Sexta cena, estilhaçamento completo da decisão mútua de um último encontro previsto (deixarei na sombra tudo o que prepara este encontro). Mitsu e Tsutomu (ele já casado) acabam de se despedir e de se assegurar mutuamente que nunca mais se veriam e logo se agarram um ao outro. Nunca foi tão tumultuoso e compassivo o amor entre eles. Talvez por isso não se apercebam de que estão a ser fotografados pelo cúmplice-chulo da mulher que parece ter como fito na vida atrair Mitsu para o abismo.
Aproximamo-nos do momento mais potente, onde a dor, a ousadia e o delírio se conjugam numa dança agónica e mortífera. Eis a sétima cena escolhida. Mitsu vem a saber pela boca de Mariko, já casada com Tsutomu, que ela foi sujeita a chantagem através de cartas escritas por ele a Mitsu. Mariko está convencida de que Mitsu está na origem da chantagem. E esta percebe que a tal amiga, com o seu cúmplice, conseguiu apoderar-se das cartas ― supõe-se que no quarto que habitaram juntas ― e decide fazer-lhes frente. Descobre então que eles não só possuem as cartas como as fotografias do seu encontro amoroso com Tsutomu.
Não é tanto a chantagem feita com as cartas que ele lhe escreveu nem com as fotografias tiradas durante o êxtase amoroso que horroriza Mitsu, mas que o mistério do amor, com o seu tesouro de segredos incomunicáveis, possa ser exibido e vendido por não iniciados. Ela daria a vida para que isso não acontecesse. E é o que será. Dá-se uma luta entre Mitsu e aqueles dois anjos malditos, onde uma chave, uma gaveta e uma faca se elevam a mestres coreográficos. Mitsu parece uma guerreira, toda ela se transfigurou, saltando, levitando, chegando ao tecto, à parte de cima da janela, eles estiveram já vencidos, mas o homem conseguiu reaver a faca, então Mitsu balouça-se na parte de cima de janela, sonâmbula, justiceira, sabendo-se vencida, balouça-se e volta a balançar-se, uma brincadeira de criança, e despenha-se na rua. Vêm todos a correr, incluindo os chantagistas, muito comovidos. Para eles morreu a galinha dos ovos de ouro.
Quem é Mitsu Morita? A primeira vez vêmo-la, ao lado de uma amiga, fustigada já pelo olhar decepcionado de Tsutomu Yoshioka, que preferiria para companhia essa amiga, como percebemos pelo cobiçoso movimento de câmara subindo lentamente pelas pernas dela acima até ao peito e ao rosto. Ao contrário da amiga, daquele estudante e de todos os outros, Mitsu é sensível, tímida, provinciana e ignorante da vida. Mesmo quieta, ela parece estar sempre a correr, a seguir em passinhos curtos os passos largos dos homens. Caminha ligeiramente inclinada para a frente à maneira das mulheres tradicionais japonesas, mas mais desajeitada e mais desprotegida, ao deus-dará, confiante, submissa e revoltada, corajosa e inocente, compassiva, a vítima sacrificial que afecta todos aqueles que se cruzam com ela.
«Quem é Mitsu Morita?» Pergunta Mariko ao homem que deixou morrer a mulher que abandonou, com quem nunca casou, mas que ficou grávida dele e se viu obrigada a abortar. Ele responde: «Eu não sou a Mitsu, mas a Mitsu sou eu.» E acrescenta: «Tu também és a Mitsu.»[14] Demoremo-nos aqui. Por um lado, Mariko, a mulher do homem que abandonou a mulher que amava, passa a ser reconhecida como Mitsu, a amada que ele abandonou. Será que todas as mulheres se transformaram nela? Talvez ela seja aquele conteúdo e aquela articulação que liga todas as mulheres, a que Heraclito chamou ksunós (embora, claro, ele não se refira às mulheres, e fale, antes, de todas as coisas) e que pôs acima do logos que tudo governa. Mitsu é o ksunós num sentido excêntrico, entre o anonimato e o símbolo que o seu nome carrega consigo, indómita e doce, ela serpenteia entre todas as mulheres. Por outro lado, Tsutomu, não sendo Mitsu ― como poderia ele ser ela? ele que é homem e não conseguiu corresponder à atracção que ela exercia porque o amava, não havendo afrodisíaco maior ―, diz que Mitsu é ele, isto é, ela encarna o desejo dele, o seu anseio. Em rigor, Tsutomu não quer renunciar ao seu desejo. Mitsu pertence-lhe, e ele sabe que não a compreenderá nunca.
Apólogo 4
Variações sobre a mulher como uma imagem do homem.
Se eu não tivesse lido Louise Bourgeois,[15] não saberia quem foi Gaston Lachaise e não teria conhecido as suas esculturas, aliás, apenas através do ecrã, pois não me lembro de alguma vez as ter visto em museus em Paris ou Nova Iorque, apesar de elas pertencerem às respectivas colecções.
«Então Gaston Lachaise tinha um deus. E era uma mulher, a sua mulher.» Assim começa Louise Bourgeois o seu extraordinário escrito sobre este escultor único, sujeito a uma soberania, fonte e alimento de toda a sua vida artística, a da sua mulher. Tudo começou em Paris no ano de 1903 num encontro inesperado com a americana (com origem no Canadá francês), Isabel Dutaud Nagle (o nome do seu deus), dez anos mais velha do que ele (na altura com vinte anos), casada e com um filho. Isabel regressou a Boston. Passados três anos, Lachaise seguiu-a, mas apenas casou com ela em 1917 (sete anos de pastor Jacob servia...), depois do seu divórcio e do filho ingressar na Universidade.
Como recurso de sobrevivência e submissão amorosa, «para financiar as exigências intermináveis da sua mulher», ele fez de tudo «desde placas de cimento para uma casa em Long Island até desenhos do zodíaco para portas de elevador, até uma gaivota de asas bem abertas para o Cemitério de Arlington». Mas também retratos em escultura, entre eles, os bustos de Georgia O’Keefee, Alfred Stieglitz ou E. E. Cummings, porém Louise Bourgeois dedica a sua preferência ao de John Marin, e com razão, pois sente-se nele uma força de combustão, que vem de dentro e parece fazer arder aquela cabeça. Segundo ela observa,[16] são os últimos retratos em escultura de que há notícia. E, no entanto, a parte de leão da obra de Lachaise é constituída por um conjunto de esculturas monumentais de mulheres ou de uma mulher, a sua mulher,[17] a maior parte delas realizadas nos últimos anos da sua vida (ele morre em 1935).
Em rigor, nos retratos em escultura Bourgeois vê Lachaise «prisioneiro do seu próprio talento», dependente do gosto dos clientes e do esforço em lhes agradar, quer dizer, de um ponto de vista artístico sente-se uma estagnação (derivada da boa adaptação aos fins culturais, à vaidade dos retratados e ao mercado). Já nas esculturas monumentais de mulheres, de corpo inteiro, de partes do corpo, sobretudo nas amálgamas sensuais de seios, braços e pernas, rabos e vulvas, é impossível não reconhecer a sua força genuína, o seu poder transfigurador, a liberdade expressiva, tanto mais ampla e profunda quanto mais «se restringia ao pensamento da sua musa», quanto mais entrava num êxtase provocado pela compulsão sexual. É Isabel, a sua mulher, que leva este homem a fechar-se no seu estúdio, a desenterrar-se, por assim dizer, do túmulo de qualquer intenção finalística, desde a sobrevivência ao agrado social, incluindo a satisfação da própria mulher. Ele está só e ela reina nessa solidão, uma variação singular de um pensamento muito caro a Louise Bourgeois: «O artista insiste em fazer o que quer do modo como quer e quando o quer, é egocêntrico [...] ocupa-se de si próprio [...] funciona no vácuo» (Destruction of the Father... 98).
... as últimas obras: Peitos com órgão feminino no intervalo (conhecida também como Figura abstracta; versão grande), 1930-32, Mãe dínamo, 1933, In extremis, ca. 1934, Mulher ajoelhada, mãos na cabeça, ca. 1930-35 ― reflectem uma visão extremamente poderosa e original da sua relação com esta mulher.[18] É nestas obras que Lachaise exprime a sua emoção mais profunda acerca da mulher ― como mãe, amante, como ideal, como deusa.
Mãe, amante, ideal, deusa, emoções-acto dotadas do poder de engendrar e expandir imagens, as duas últimas já consequência de imagens formadas a partir das duas primeiras emoções-acto, com a particularidade da penúltima ser um conceito filosófico e poético. Ensaio algumas determinações, obedecendo à sequência: fonte, origem, aquela atrás da qual não se pode recuar; desejo sexual, atracção, sedução, possessão, submissão; limite e superação do limite, aquilo que nunca aconteceu e acompanha o que acontece; adoração, veneração, entrega sem reservas, obediência, sacrifício.
É de salientar a afinidade, a proximidade íntima de algumas destas esculturas de Lachaise com as de Louise Bourgeois (por exemplo, «Janus Fleuri», 1968; «Cumulus I»; «Mamelles», 1991, entre outras obras).[19] No que se refere ao tema da obsessão (que dá o título a este escrito), ele não poderia estar em melhores mãos do que as dela, o mesmo se aplicando à disposição artística do masoquismo, da qual se falará mais adiante. A arte tem a ver com sexo, com sedução (não com amor, embora, ainda segundo Louise Bourgeois, tenha a ver com compaixão). Muitas vezes foi ela interrogada sobre arte e feminismo, se a arte tinha género. Ela prefere sempre falar de género associado à sexualidade de mulheres e de homens.
Nas esculturas de Lachaise, a mulher, como um deus, é posta «num pedestal, ao mesmo tempo figurativa e literalmente. O que é que ele precisava da parte dela? O que é que ela lhe deu? Este continua a ser o misterioso mecanismo de uma relação que funcionou.» Daqui engendra-se o tema do masoquismo, disposição que Louise Bourgeois conhece por experiência própria (não é preciso ir ler Masoch através de Deleuze), quer dizer, o masoquismo é entendido como uma disposição artística que se pode resumir nestes termos: ser um pedinte. O artista masoquista é um eterno pedinte, um esfomeado em busca de quem o alimente. Percebe-se que Lachaise permaneceu toda a vida um pedinte. Ele só cresce, só amadurece no interior do seu estúdio, mas, mal sai, volta a esse estado de imaturidade do qual não se livra (Louise Bourgeois diz em relação a si própria que a ferida volta a abrir).
Segundo ela, os artistas que descobrem uma razão para sofrer, uma causa, obtêm um prazer perverso nesse sofrimento, em nome dessa causa. Só através da dor e da superação da dor, conseguem amar-se a si próprios; farão tudo para ser «ouvidos, considerados e notados» e pagarão a dívida em «tempo, labor e perícia». Lachaise devotou trinta e três anos da sua vida a Isabel Dutaud Nagle. Trabalhou incansavelmente para a sustentar. E exercitou as suas capacidades de angariador de encomendas, perseguindo habilmente coleccionadores e comissões de compras. Trata-se do pagamento de uma dívida que nunca será saldada: «A forma do masoquismo de Lachaise era a de aceitar ser o escravo desta mulher. Ele foi sorvido pela sua deusa, sacrificou-se a este deus.»
E, no entanto, aquele mecanismo da relação entre Isabel e Gaston, que continua misterioso, não se esgota no sacrifício e na escravatura desejada, pois observa-se uma simetria cuja proporção só pode ser calculada mediante perguntas-espelho. Uma delas já foi citada acima: «O que é que ele precisava da parte dela? O que é que ela lhe deu?» A outra é já a transformação da pergunta-espelho em consciência dela, tornando-se um inquérito intencional: «A pergunta na arte e na vida de Lachaise é quem alimentou quem?»
Como quer que seja, a dívida nunca foi saldada, artistas como ele sofrem e suplicam sempre, não conhecem cura (fórmula que Louise Bourgeois aplica a si própria).
Portanto «Obsessão» é o nome de um artigo sobre um artista que serviu a sua mulher a vida inteira, quer para lhe pagar os caprichos e fantasias, quer para descobrir em si próprio o que tinha vindo fazer a este mundo: dar a ver aquela mulher pelas suas esculturas. Mas, em rigor, nenhuma mulher poderia corresponder àquelas esculturas. Como perguntaria Alberto Giacometti: «Onde é que já se viram mulheres assim?» A pergunta de Giacometti é dirigida às pinturas de Ticiano e inscreve-se na sua distinção entre pintar ou esculpir aquilo que se vê e pintar e esculpir através dos créditos de uma técnica estudada de ver, com o fito de produzir certos efeitos. Em todo o caso, o gigantismo, as deformações e as amálgamas que caracterizam as esculturas mais sublimes de Lachaise, não visando restituir o que ele vê, são seguramente o efeito daquilo que só ele surpreendia na mulher, por isso, as suas esculturas têm ao mesmo tempo um carácter experimental e arcaico, reenviando-nos para esculturas pré-históricas e, antropologicamente falando, primitivas. Sentimos nelas uma energia mágico-religiosa, trespassada de cabo a rabo por uma forte componente sexual.
Aliás, Louise Bourgeois acentua aquela falta de correspondência entre as esculturas de Lachaise e o aspecto de Isabel, como o mostram as suas fotografias, «nem imponente nem heroica [...] longe de ser impressionante e monumental [...] era uma mulher pequena e despretensiosa.[20] E, no entanto, para Lachaise ela era “a Deusa que eu anseio exprimir em todas as coisas”.» Sim, as esculturas de Gaston Lachaise não são retratos, são revelações.
Isabel Dutaud Nagle foi uma imagem de Gaston Lachaise? Converter-se numa imagem é um destino ao qual ninguém se pode esquivar. Mas, quando um homem diz que a mulher é uma imagem ― talvez equivalente a «não ser um predicado real» ―, saímos para fora do destino fatal e entramos na esfera da guerra entre homens e mulheres, que segundo Martinho em A Ronda da Noite só terá fim quando as mulheres deixarem de parir.[21] Isabel Dutaud Nagle tivera um filho do primeiro casamento, mas não foi mãe de nenhum filho com Lachaise. Talvez eles habitassem nesse campo pacificado, em que a mulher, com as suas despesas e fantasias, se tornou o buraco na algibeira do homem (expressão de Louise Bourgeois) e em troca foi sugada por cada uma das esculturas que ele concebia e moldava na solidão do seu estúdio, aceitando que ele fizesse dela uma deusa, a deusa da sua própria fertilidade. Não sei o que pensaria ela das esculturas dele, mas talvez não me engane supondo que se sentia profundamente lisonjeada.
«Obsession» é o escrito de uma mulher artista, Louise Bourgeois sobre um homem artista, Gaston Lachaise. Ambos escultores. Convém não esquecer que este texto foi redigido quando ela já ia nos oitenta anos, na sua maturidade alta. Não conheço outro equivalente e, apesar de ela mencionar várias vezes Picasso e Francis Bacon como os seus artistas preferidos, acrescentando em certas ocasiões algumas considerações esclarecedoras, não se dedicou a escrever sobre eles. Em todo o caso, porém, aqui, em «Obsessão», Bourgeois recorre a Francis Bacon para demonstrar a ideia da arte como pagamento de uma dívida, uma homenagem ao sedutor, a obra como objectivação de uma sedução sexual. As obras de Lachaise têm origem numa obsessão pela sua mulher e pelo seu corpo, pelo corpo das mulheres, por certas partes do corpo das mulheres: mamas, vulvas, braços, pernas. «Tenham paciência!», como diria Agustina.
Contrariamente a Don Juan, e ao que muitas feministas possam sentir, Lachaise não explorou as mulheres, mas fruiu delas. Ser um objeto sexual é uma experiência lisonjeira. Porquê ela e não eu? As suas esculturas são o maior cumprimento às mulheres, tal como o trabalho de Francis Bacon ou o livro Crazy Horse de Gary Indiana é um cumprimento aos homens: é um cumprimento que visa conceder ao objecto sexual o poder de desencadear uma tão grande paixão.
Há uma sequência que nenhuma lei poderá abalar: atracção, sedução, obsessão. A arte tem a ver com sedução, como a que leva os pássaros a entrar na boca das serpentes. Escavando nela própria, nas suas próprias obsessões, as teses de Louise Bourgeois sobre Lachaise sofrem, por assim dizer, uma torção, pois a ela não apareceu nenhuma Isabel Dutaud Nagle. Essa diferença é de monta e intensifica-se justamente por percebermos que Bourgeois é profundamente tocada por essa dívida que ela nunca teve de pagar.
Daí que, embora por vezes salte à sua vista uma espécie de espasmo criativo, no sentido da repetição, que talvez tenha a ver com uma impotência evolutiva, Louise Bourgeois acha que a obsessão inextinguível de Gaston Lachaise pela mulher impede qualquer juízo avaliativo das suas obras, quer dizer, é a própria obsessão que salva a repetição de ser um impulso esclerótico, tornando-se um segredo que pode ser comunicado, enquanto os nossos olhos se prendem às suas esculturas, mas não decifrado, um dom: «Quais são os demónios secretos na relação de Lachaise com a sua musa? Porquê a obsessão com peitos e vulvas? Porque é que ele teve de continuar a repetir-se e o que é que ele tinha de provar? Aqui, reside o segredo da sua vida.»
Apólogo 5
Coroa interdita
(dedicado a Joana Emídio Marques)
Eva é Rainha
foi coroada,
enrolou a serpente
à volta da cabeça.
A seus pés, Adão castrado
rói o caroço da maçã
que lhe caiu da mão.
Ivette K. Centeno, «Coroação», Março de 2021 (no dia da Mulher, 8 de Março), Existir, Eufeme Poesia, Lisboa, 2022.
Eis o Paraíso despojado de pecado original. Neste quadro secretíssimo, Eva não se lamenta nem tapa as partes íntimas, bem pelo contrário, gloriosa, talvez de pé, coroou-se a si própria (sim, porque foi ela que enrodilhou a serpente à volta da sua cabeça, e a serpente deixou-se ficar, coroa interdita). Adão também não se lamenta, nem nada se diz sobre a sua vergonha, mas emparveceu, a dentada na maçã parece ter tido um efeito anti-erótico, um efeito letal, «Adão castrado», escreve a poeta. É ele que, contrariando toda a tradição icónica relativa à Virgem Maria, está aos pés de Eva, é ele o vencido, não a serpente. Deixa cair a maçã, longa mitologia, roendo o seu caroço (que as maçãs não têm caroço, mas caroços, vários e pequenos, mas, como diz quem sabe, na pintura nem tudo é como se vê).
Nunca gostei de haver um Dia da Mulher, nunca festejei o dia 8 de Março, e respondi torto a convites feitos a propósito. Mas, como quer que seja, se há esse dia terá de ser nesse dia que vem a calhar a elevação de Eva a rainha, sem plebiscito nem aplauso, enquanto num único gesto lúdico e soberano ela enrola à volta da cabeça a má da fita.
Anexo ameno
(dedicado a Pedro Galé)
Na França, durante a Revolução Francesa, quando centenas de cabeças inocentes rolavam decepadas pela guilhotina, alguém de gosto duvidoso lançou a moda de pequenas guilhotinas, como broche, para enfeitar as mulheres do povo. E para maior realismo no enfeite macabro, pintavam-no de vermelho cor de sangue. O surpreendente não é a imaginação doentia de quem criou os broches trágicos. E sim a coragem das mulheres que os usavam. E não eram poucas! Era moda!
«Coisas da vaidade feminina», (Helen Palmer, 30 de Dezembro de 1959) Só para mulheres, 100
Para ganhar a vida, Clarice Lispector escreveu sob pseudónimos ― Teresa Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares (nome de uma actriz muito popular, vedeta da TV Tupi, de quem Clarice será a escritora-fantasma) ― sobre assuntos femininos em vários periódicos, respectivamente Comício, (durante alguns meses de 1952), Correio da Manhã (coluna «Correio Feminino – Feira de Utilidades», de 1959 a 1960) e Diário da Noite (coluna «Só para Mulheres», de 1960 a 1961).[22] Em 2006 foram publicados dois volumes que reúnem tematicamente estas crónicas escritas por Clarice sob pseudónimo, a saber, Correio feminino e Só para mulheres.[23] Conheço apenas o segundo, cujo título não poderia calhar melhor.
O livro está dividido em «Conselhos», que ocupa com «Segredos» a maior parte do volume, dedicando-se a secção menor, central, a «Receitas». Demorar-me-ei num breve vaivém, uma promessa de correspondências, entre conselhos e segredos. O mote poderia resumir-se a «parecer bem ou o gosto pela boa aparência e a importância das aparências». Não sendo despropositado, pois é isso que está sempre em causa, ele ficaria a meio do caminho, se às aparências não fosse acrescentada a promessa de um vislumbre dos mistérios da vida das mulheres, nos quais se inclui a sua relação com os homens.
Nesse sentido, a ideia de que «a mulher não foi aprisionada pelo homem, mas pela sua própria fisiologia» («A mulher e o preconceito», Helen Palmer, 16 de Março de 1961, 99) deve ser entendida como um factor de constituição de uma história natural da mulher, inseparável dos efeitos provocados pela resistência imaginativa a esse aprisionamento. Em rigor, a moda, a maquilhagem, os enfeites fazem parte de um método, lúdico e reparador, de libertação.[24]
Tal como a doutrina talmúdica quanto à significação de cada passagem da Tora, também o humor tem os seus 49 graus nestas crónicas, o que faz derrapar muitas vezes a conclusão óbvia, a interpretação convencida e precipitada. Releia-se a brevíssima crónica em epígrafe. Não é só arrepiante saber por Helen Palmer que, durante a fase de carnificina da Revolução Francesa, alguém teve a ideia de inventar um «enfeite macabro» destinada «às mulheres do povo», uma guilhotina em miniatura, pintada de vermelho cor de sangue para espevitar as sensações. Também se experimenta uma contracção, lendo o comentário livre, ousado e certeiro (cheio de riso) como só Clarice é capaz de fazer. Se ela considera a invenção fruto de uma «imaginação doentia», já o uso pelas mulheres, «e não eram poucas», é tido como um acto de coragem. «Era moda», isto é, através do uso daquela miniatura da condenação sangrenta, sinal de uma torção social e política com todo o seu horror, aquelas mulheres tornam o ar do tempo, por assim dizer, absorvível. Isso causa na cronista maior admiração do que a perversidade do inventor. Ali e sempre, a vida está a passar, um dia a brevíssima guilhotina deixará de fazer sentido, não será mais usada, guarda-se, deita-se fora, substituída por outro enfeite. É a moda.
Mas é em «A sós» (de novo Helen Palmer, 10 de Junho de 1960, Diário da Noite, 113) que o efeito do humor, numa rítmica de staccato, alcança o grau do irresistível. Não conseguimos reprimir as gargalhadas. Pergunta Helen logo no início: «O que a mulher faz, quando o marido não está em casa e vice-versa?» Na verdade, na primeira cena, o homem chega a casa e a mulher não está, ao passo que, na segunda cena, o homem sai e a mulher fica em casa (estamos na situação do homem que trabalha fora de casa e da mulher «doméstica»). Começa-se pelo homem que, obstinado, vagueia pela casa, entre a cozinha, abrindo, revistando e fechando com força a porta da geladeira, e o quarto, onde retira e revista uma das gavetas da cómoda, descobrindo três bolas de ténis, que volta a colocar na gaveta, metendo-a de novo na cómoda; no intervalo, agarrando na primeira revista que encontra, tenta fumar cachimbo e, para descobrir o limpador, deixa cair todas as coisas guardadas no «bufê» da cozinha, amontoando-as a trouxe-mouxe de seguida. Também repetidas vezes vai até à janela olhando para fora. A sequência parece durar indefinidamente. E a mulher? As palavras de Clarice são um convite à citação: «nos primeiros trinta minutos depois que o marido saiu de casa, arruma o cabelo em frente ao espelho, vai até à cozinha e põe as panelas no fogo, desentope o bico de gás com um grampinho de cabelo, volta ao quarto e experimenta mais uma vez o vestido novo, para ver o efeito. / Depois então, conversa com uma amiga ao telefone, guarda os jornais que estão espalhados pela casa, mas não antes de ler todos os anúncios sobre modas e assuntos idênticos. Abre a porta da rua, para ver quem tocou a campainha, lê a correspondência, arruma o quarto, experimenta de novo o vestido novo e em seguida, todos os outros que estão no armário, / Como podem ver, não existe assim tanta diferença entre um e outro...» Ao contrário do homem, a mulher não vagueia como um estranho na própria casa, começa por dedicar-se à sua aparência, penteando o cabelo ao espelho. Em seguida dirige-se à cozinha para preparar comida, usa a imaginação de modo eficaz para desentupir o bico do gás com um gancho tirado do seu cabelo. Regressa ao quarto para provar de novo o vestido novo. Convive sem sair de casa, pois o mundo de fora vai ter com ela através do telefonema à amiga e da campainha da porta que lhe traz as novidades do correio; põe ordem nos jornais espalhados pela casa, não sem antes tomar conta de todos os anúncios sobre moda e quejandos; volta ao quarto, arruma-o e sente de novo o apelo da aparência, experimenta uma vez mais o vestido novo, em seguida, experimenta todos os vestidos que há no armário.
Aqui, eleva-se o espelho, no dizer de Alain (em Propos sur la nature) aquela coisa a que nada falta e depende de todas as outras. Sim, como também ele diz imediatamente antes, um reflexo não é coisa pouca.
Comparem-se Vénus Olhando-se ao Espelho de Velázquez e o Último Auto-retrato (duplo, 1925) de Lovis Corinth. A mulher descansa no espelho e toma-o como instrumento de exame morfológico e fisionómico, seguindo os sinais do tempo para os celebrar, prevenir e dissuadir, metafísica amiga do abismo.[25] Trata-se de movimentos de sondagem curiosa, analítica, a que se misturam umas gotas de embriaguez imprevidente, pois a inspecção convida ao devaneio, que pode levar ao encontro com os enigmas da vida à espera de convívio. Eis a frivolidade feminina nas suas altas torres de menagem. Inversamente, através do espelho o homem descobre-se como outro, desnorteia-se e sucumbe. E aqui se observa a diferença entre o homem amarrado ao seu cadáver e a mulher diante do seu espelho, isto é, a diferença entre o condenado e a amiga da aparência, que não procura nada atrás do espelho, uma vez que ela sabe que é na sua superfície que tem lugar a magia, uma arte em que a disciplina e o dom disputam a supremacia, sem vencido nem vencedor. Numa imobilidade flutuante, a coisa sem identidade a que não falta nada, o vazio especular, é um caçador sem arma que prende a caça ao seu próprio reflexo. A mulher aceita esse destino, disciplinando-o com gestos e fórmulas, convertendo-o numa arma de combate contra o tédio. Quer dizer, a mulher sabe que, além de reflectir, o espelho celebra a aparência. Porém, este dizer sim à aparência é tão excessivo que provoca um desvio na adesão natural a ela, é um dizer sim desassossegado.
Não será da ordem do acaso que a primeira crónica de Só para mulheres seja de 10 de Fevereiro de 1961, uma das últimas publicada na coluna de Ilka Soares em Diário da Noite. Observa-se, inequívoca, uma maturidade, onde à-vontade e confiança se chamam reciprocamente. Eis o título: «Aparência: tudo tem jeito» e a pergunta-chave: «Você é “moralmente” tão antiquada a ponto de considerar vaidade feminina uma frivolidade?» A vaidade feminina não é só um recurso de sobrevivência, no sentido de ser uma variante do cartesiano larvatus prodeo, uma máscara que protege a mulher e agrada aos homens. Ela é também um modo secreto e desviado de lidar com a identidade.
Uns anos mais tarde, em 1968, Clarice escreve na primeira secção (intitulada, et pour cause, «Ritual») de uma crónica do Jornal do Brasil: «Enfeitar-se é um ritual tão grave.»[26]
Não, a vaidade feminina não é uma frivolidade. Se o espelho é o seu operador, também ele não sabe o que é ser mulher: «Bonita? Nem um pouco, mas mulher. Meu segredo ignorado por todos e até pelo espelho: mulher.»[27] Vale a pena citar na íntegra esta secção dedicada ao acto de se enfeitar das mulheres, onde Clarice, numa abreviatura cintilante, rememora e transfigura as colunas só para elas.
Enfeitar-se é um ritual tão grave. A fazenda não é um mero tecido, é matéria de coisa. É a esse estofo que com meu corpo eu dou corpo. Ah, como pode um simples pano ganhar tanta vida? Meus cabelos, hoje lavados e secados ao sol do terraço, estão da seda mais antiga. Bonita? Nem um pouco, mas mulher. Meu segredo ignorado por todos e até pelo espelho: mulher. Brincos? Hesito. Não. Quero a orelha apenas delicada e simples ― alguma coisa modestamente nua. Hesito mais: riqueza ainda maior seria esconder com os cabelos as orelhas. Mas não resisto: descubro-as, esticando os cabelos para trás. E fica de um feio hierático como o de uma rainha egípcia, com o pescoço alongado e as orelhas incongruentes. Rainha egípcia? Não, sou eu, eu toda ornada como as mulheres bíblicas.[28]
Ser mulher é o segredo dela, de Clarice, e de todas as mulheres, sem qualquer pretensão de universalidade, segredo ignorado, mas não incógnito, pois todos os gestos, hesitações, decisões, preparam a inteligibilidade dessa cujo corpo dá corpo aos tecidos, aos brincos, à lavagem do cabelo. Neste caso são os brincos, que congregam todos os gestos pelos quais as mulheres dão vida às matérias, fazendo-as irradiar, são eles que estão na origem de tantas hesitações, das quais irrompe, soberana, uma decisão severa. Dessa inteligibilidade faz parte uma comunidade, sempre em estado nascituro, a formar-se mediante comparações: com rainhas egípcias, com mulheres bíblicas. É isso que o espelho, enquanto poder de reflectir, não sabe, quer dizer, o reflexo especular não é exposição intacta, está sempre maculado pelo olhar: «Rainha Egípcia? Não...» E então tomam a dianteira as raízes hebraicas de Clarice Lispector: «sou eu, eu, toda ornada como as mulheres bíblicas». Eva coroada.