Nos cantos mais distantes deste mundo, nos mais perdidos, maravilhamo-nos de a ver florir espontaneamente, tal como num vale afastado uma papoila semelhante às do resto do mundo, ela que nunca as viu e nunca conheceu mais que o vento que por vezes faz estremecer o seu solitário capuz vermelho. Ainda que essa bondade, paralisada pelo interesse, não se exerça, a verdade é que existe, e sempre que nenhum móbil egoísta a impede de o fazer, (…) ela desabrocha e (…) vira-se para o fraco, para o justo e para o perseguido. 

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – À Sombra das Raparigas em Flor

 

Após a notícia da morte inesperada do Ocidental, o narrador de Mongólia, procurando entre os papéis que em tempos trouxe de Pequim quando se reformou da carreira diplomática, encontra os diários que haviam pertencido ao seu antigo colega e que este tinha redigido aquando de uma viagem à Mongólia, para a qual o próprio narrador o tinha encaminhado. Nessa viagem, o Ocidental tinha como missão encontrar um rapaz brasileiro desaparecido em território mongol. Entre esses mesmos papéis, o narrador encontra também o diário de viagem escrito por esse rapaz durante a sua travessia, que tinha, por sua vez, servido ao Ocidental durante a sua busca.

O narrador colige, assim, três vozes que acompanharão o leitor ao longo do texto e que se distinguem através de manchas tipográficas diferentes: a sua própria voz, incumbida de unificar e comentar as outras duas (Carvalho 2007, 235), a do Ocidental (epíteto conferido a esta personagem pelo povo mongol e adoptado pelo narrador sempre que se lhe refere) e a do rapaz desaparecido que designaremos, daqui em diante, por Desajustado (designação também criada pelo povo mongol).

O narrador propõe-se, desta forma, «transcrever e parafrasear» os diários das outras duas personagens. Porém, mais do que uma paráfrase, o exercício por ele efectuado é de edição e reconfiguração dos textos base, de modo a desconstruí-los como uma espécie de puzzle (Caldas 2012, 222), um caminho que caberá ao leitor percorrer em busca do sentido e da compreensão da história.

O romance inicia-se com a voz do narrador, que, após alguns parágrafos introdutórios, afirma:

 

Só ao deparar com a notícia da morte dele [do Ocidental], mais de seis anos depois do incidente, quando de repente lembrei dos papéis que ainda deviam estar comigo, e depois de começar a lê-los, é que me passou pela cabeça que talvez ele não os tivesse esquecido antes de voltar para Xangai, mas que os tivesse deixado de propósito, para mim, como uma explicação. (Carvalho 2007, 16)

 

É partindo desta ideia de explicação, de resolução de um mistério ou de uma incompreensão latente, que o narrador decide construir com esses papéis uma obra, aquela que havia adiado, como nos diz inicialmente, ao longo de toda a sua vida.

A incompreensão que se estabelece entre as personagens é, como veremos, um tópico que atravessa todo o texto e se configura de modos distintos em cada uma delas.[1] Neste ensaio tentaremos explicar essencialmente as principais — o narrador, o Desajustado, o Ocidental e Purevbaatar, o segundo guia do Desajustado e do Ocidental na viagem pela Mongólia —, tentando desvendar quais os percursos que cada um deles faz em busca da compreensão do outro, e quais os outros que os levam inevitavelmente à incompreensão e à intolerância. Tentaremos entender também como cada um desses caminhos, todos inseridos no espaço geográfico da Mongólia, é também uma viagem ao âmago de cada indivíduo, um percurso de desvendamento da própria personalidade — viagem tortuosa, árdua ou mesmo impossível, mas também deslumbrante como a paisagem mongol em que se integra.

 

O primeiro momento de incompreensão e dificuldade comunicativa com que  deparamos dá-se quando, depois de o Ocidental se ter dirigido a Pequim e ter aceite realizar a viagem à Mongólia, se recusa a fazê-la sem oferecer motivos válidos ao diplomata/narrador a quem essa recusa repentina parece «gratuit[a], um mero capricho que se recusasse a acatar uma instrução expressa e extraordinária do Itamaraty» (Carvalho 2007, 16). O desentendimento engloba ambos, já que nem o Ocidental se preocupa em fornecer os seus motivos, nem o narrador se mostra disponível para os investigar: «Fingi que não tinha ouvido. Repeti a instrução. Não perguntei mais por que ele não podia ir. Repeti a instrução — ele embarcaria em dois dias — e pedi que se retirasse, eu tinha outros assuntos a resolver» (20).

O Ocidental parte, por isso, contra a sua vontade e ao longo do primeiro capítulo da obra teremos os preparativos para o início da sua viagem em busca do Desajustado. Neste capítulo, as passagens dos diários deste último são predominantes e são encaixadas, de modo geral, naquilo a que o narrador chama uma «paráfrase» dos diários do Ocidental (mas que poderá ser entendida, devido à dimensão opinativa que engloba, como uma recriação desses diários). São introduzidas em momentos em que o Ocidental se lembra (ou poderia lembrar) delas perante os acontecimentos da sua própria viagem e movimentações ou quando precisa de recorrer a essas passagens para tentar compreender o mistério do desaparecimento e da busca do Desajustado, completando as informações que lhe são fornecidas pelos guias. Este primeiro capítulo expõe-nos, portanto, a viagem motivadora de todas as outras — a viagem em busca de sentido levada a cabo pelo Desajustado.

A viagem que executa divide-se em dois momentos equivalentes; na verdade, a dois itinerários dentro de um mesmo território mongol. O primeiro itinerário é uma viagem de cariz turístico e artístico — a personagem vai à Mongólia a serviço de uma revista brasileira para fotografar os povos nómadas tsaatan (Carvalho 2001, 42; 46-47; 49). Este é o percurso bem-sucedido em que, ao contactar com os nómadas, completa o registo fotográfico com a escrita diarística em que descreve com interesse (embora partindo sempre de um ponto de vista etnocêntrico) os seus costumes e a sua vida (por exemplo, 49-51 ou 55-56). Como refere Andras, os «arquivos de viagem» surgem normalmente «fracturados»:

 

Too often, we think, confesses Duncan, that “journals, letters and published writings are assigned to literary scholars and historians; sketches, watercolours and paintings to art historians; and photographs and postcards to historians of photography. We suggest that the alternative strategy of attending to the physicality of representation imposes the obligation to read these different media together”. (Andras 2006, 164)

 

No projecto do Desajustado também parece existir esta fractura, já que este consistiria num livro de fotografias em que o seu diário não estaria, presumivelmente, incluído. Essa fractura é, porém, no contexto completo de Mongólia, paradoxalmente superada (como sugere Duncan citado em Andras) e reforçada, porque o leitor é confrontado com a existência de fotografias e de um diário, embora as fotografias sejam, na verdade, o elemento a que não pode ter acesso, só contactando directamente com a escrita diarística.

O interesse pelos povos nómadas, por sua vez, diferenciar-se-á dramaticamente do desinteresse total do Ocidental que só conseguirá ver grupos de pessoas iguais onde o Desajustado vê indivíduos:

 

Entre os nômades o interessante não é o sistema e os costumes, que são sempre os mesmos, mas os indivíduos. A graça de visitar as iurtas é a surpresa do que se vai encontrar, a diversidade dos indivíduos que ali estão fazendo as mesmas coisas. (Carvalho 2007, 179)

 

A paisagem tem, por sua vez, ao longo do primeiro percurso, um carácter predominantemente estético (dando-se primazia ao deslumbramento que provoca) que o Desajustado parece considerar, paradoxalmente, não fotografável: «Na Mongólia, a terra reflete o céu. A sombra das nuvens corre pelo deserto e pelas estepes. O céu está sempre tão perto. A paisagem não se entrega. O que você vê não se fotografa.» (52-53) A paisagem é objecto de contemplação artística e não parece imbuída ainda, como ficará mais tarde, de significados místicos. Porém, o percurso já é descrito como difícil, ingrato e perigoso para o viajante (53).

É durante esta primeira viagem, contudo, que se vão acumulando os elementos que levarão o Desajustado a desejar fazer a segunda e, por fim, a desentender-se com o seu primeiro guia, Ganbold. Numa das paragens do primeiro itinerário, as duas turistas americanas que encontra no mosteiro de Erdene Zuu acompanhadas de Purevbaatar (que virá a ser o seu segundo guia) prefiguram, de algum modo, a busca que ele próprio acabará por fazer:

 

Envolveram-se com grupos budistas em San Francisco e decidiram vir à Mongólia e ao Tibete em busca de não sabiam bem o quê. Em tom de chacota, diz que já cataram ossos de animais pelo deserto e que agora estão obcecadas por coisas do budismo a que ele não sabe responder. (Carvalho 2007, 77)

 

O primeiro contacto com aquele que se tornará para o Desajustado o mistério mais profundo e desconcertante do budismo — a deusa Narkhajid e as histórias que circundam o seu culto — dá-se ainda em Ulaanbaatar, no Museu de Belas Artes, e repete-se em Erdene Zuu:

 

É uma entidade demoníaca, com uma coroa e um colar de cinquenta crânios, que tenho a pachorra de contar. Tem o sexo exposto e entreaberto. Numa das mãos, traz o tampo de um crânio cheio de sangue, como uma cuia da qual ela bebe. Na outra, segura um cutelo. Com o pé direito pisa num corpo vermelho e com o pé esquerdo, num corpo negro. Dois esqueletos dançam entrelaçados entre suas pernas abertas. (Carvalho 2007, 75)

 

A recorrência da figura da deusa ao longo do primeiro percurso, a ignorância que sobre ela demonstram ou fingem as monjas que se dedicam ao seu culto no mosteiro de Narkhajid Süm e, sobretudo, a história que lhe é contada pela «monja careca» sobre o monge Dorj Khamba e sobre Suren, estimulam a curiosidade do Desajustado. Entendendo todas estas ocorrências como coincidências significativas (Carvalho 2007, 114-115), ele confere-lhes um sentido sobrenatural e o desejo de desvendar esse mistério budista torna-se uma obsessão (123).[2] Narkhajid transforma-se no mote do seu segundo percurso (84), em que será acompanhado por Purevbaatar perante a recusa de Ganbold em acompanhá-lo numa busca que não compreende, agravada pelo perigo da aproximação do Inverno (61).

Este segundo itinerário pelos montes Altai inicia-se, assim, sob o signo da procura e do desejo de compreensão, da busca desesperada de sentido. Há vários elementos que contribuem para o interesse do Desajustado: por um lado a figuração demoníaca da deusa inevitavelmente associável a figuras infernais e, por isso, a um culto do mal dificilmente compreensível na cultura ocidental; por outro, a representação estética de uma sexualidade despudorada e, sobretudo, a associação da prática sexual ao culto religioso, sem que isso pareça ser chocante para o povo mongol (78); finalmente, a relação do culto de Narkhajid com a história de violação e privação a que a jovem monja Suren teria sido submetida para que o principal monge do mosteiro de Ariin Khuree — Dorj Khamba — pudesse alcançar a «iluminação», além da posterior fuga da perseguição política que o monge só teria conseguido fazer com a ajuda de Suren em 1937, durante a qual ele teria tido uma visão de Narkhajid (91; 107-113). [3]

O interesse do Desajustado é estimulado, por sua vez, pelo jogo de revelação/ocultação em que parece estar enredado: a revelação desta história é precedida de vários silêncios e evasões que lhe aumentam o mistério e o impulso de desvendamento (89), além da impossibilidade de comunicação directa com os interlocutores, cuja informação depende da tradução do guia (90).

A paisagem e a fotografia tomam, neste segundo percurso, um novo rumo: deixam de ser simplesmente objectos de contemplação estética e produção artística, para passarem a estar imbuídos de um carácter místico-religioso.[4] A paisagem passa a ser o lugar onde aconteceu algo que o Desajustado pretende captar em fotografia — o lugar onde o monge em fuga teria tido uma visão de Narkhajid que lhe teria revelado o Antibuda. Pensa inclusivamente em construir uma verdadeira obra com sequências fotográficas que intitularia O Anti-buda, como se a paisagem — que acima considerava não se render à fotografia — pudesse agora entregar-lhe, ainda, uma essência ou um resquício de um acontecimento de que estaria penetrada e que possivelmente o ajudaria a compreender este mistério do budismo (Carvalho 2007, 123).

Esta viagem torna-se, assim, também a busca de um lugar incerto, fundando-se numa história em que o Desajustado deposita a sua obsessão, mas que nunca chegamos a saber se, de facto, é verdadeira — tanto Ganbold como Purevbaatar a consideram uma criação alucinatória:

 

Ganbold se recusou a compartilhar do delírio infantil do brasileiro e o obrigou a cumprir o que estava programado. (Carvalho 2007, 123)

 

(…) mas era ele que criava a história com as suas perguntas. A história estava na cabeça dele. (…) Era ele que levava todo o mundo a contar o que ele queria ouvir. Aquilo era uma alucinação. (219)

 

Embora não chegue à compreensão daquilo que desejava entender, ao longo da sua procura o Desajustado acaba por adoptar um modo de vida que se assemelha ao dos povos nómadas: dirigindo-se ora para um local, ora para outro, ao sabor das informações que vai recebendo ao cruzar-se com várias pessoas, em busca de um lugar e da revelação completa de uma história. O cruzamento com Baitolda, o falcoeiro cazaque, é, por sua vez, o momento fatídico do seu desentendimento com Purevbaatar: ao contar-lhes uma versão homossexual e desmistificadora da história do monge e de Suren, segundo a qual Suren não seria a jovem monja por ele violada, mas um jovem lama que ele iniciava, e a visão de Narkhajid se resumiria à tatuagem da deusa no sexo do rapaz quando o monge, aterrado, o tinha visto despido, Baitolda incita ainda mais o interesse do Desajustado que, perante esta versão subversiva daquilo que teria sido uma visão religiosa, parece encontrar mais um elemento que o determina à procura de sentido e veracidade naquela história (Carvalho 2007, 218-219). Purevbaatar, insultado com as referências à homossexualidade entre religiosos (poderemos dizer, aliás, entre mongóis), recusa-se a acompanhá-lo em mais buscas e, retirando-lhe o passaporte, deixa-o seguir caminho sozinho, condenando-o à adopção da vida nómada entre os cazaques que o recolhem na neve.

 

O segundo capítulo da obra é aquele em que predominam os excertos do diário do Ocidental e em que a sua viagem pela Mongólia com Purevbaatar em busca do Desajustado é relatada. Personagem já fortemente etnocêntrica antes de partir para a Mongólia, como várias vezes afirma o narrador, sem escrúpulos em exprimir opiniões infundadas e controversas acerca das culturas asiáticas, a sua posição cultural perante o povo mongol será ainda mais acirrada. A procura pelo rapaz desaparecido obliterará a sua já escassa disposição para compreender e apreender a cultura estrangeira. A agravar esse etnocentrismo está, aliado ao sentido de missão diplomática importante, o facto de saber de quem vai à procura — o seu meio-irmão que havia visto uma única vez.

Embora este elemento da história só seja desvendado ao leitor no final da obra, podemos identificar indícios desde o início, retrospectivamente, de que o Ocidental sabia quem era o Desajustado. No final é revelado que tinha havido entre eles um encontro breve, quando este último tinha apenas cinco anos, no momento em que o Ocidental tinha procurado pela primeira vez o pai para lhe comunicar a morte da mãe e o seu desamparo, tendo sido por este rejeitado (Carvalho 2007, 237-238).

Ora, primeiramente, depois de ter aceitado a proposta do narrador/diplomata para ir à Mongólia, o Ocidental recusa-se a fazê-lo quando o narrador lhe dá acesso aos documentos da missão, entre os quais poderia encontrar a fotografia do Desajustado, acompanhada certamente do nome do seu pai, que havia «encomendado» a missão de resgate:

 

Expus o caso, disse que era urgente e extraordinário, e ele se mostrou receptivo, me tranquilizou, não tinha o menor problema. Não parecia constrangido com o carácter anormal da missão. Iria à Mongólia. Perguntou-me o nome do rapaz. Eu não me lembrava. Disse-lhe que deixaria o dossiê completo na sala dele. Não era muita coisa, alguma correspondência entre o pai do desaparecido e o Itamaraty (…) e uma fotografia (…). No meio da tarde, ele foi à minha sala, com a expressão transtornada e o dossiê na mão. (…) Ele estava nervoso. Não conseguia parar quieto. (…) ele me encarou e disse que não podia cumprir a missão, pedia desculpas, mas não estava em condições de ir à Mongólia. (…) ele balançava a cabeça. Estava alterado. Disse que não era nada. Era ele. (Carvalho 2007, 18-19)

 

Depois, no final do romance, quando encontra o irmão, as suas notas diarísticas sugerem, embora não directamente, um conhecimento prévio da pessoa que procurava, quer através da figuração do Desajustado como uma imagem reflectida de si próprio — «Estou há dias sem me ver, há dias sem me olhar no espelho, e, de repente, é como se me visse sujo, magro, barbado, com o cabelo comprido, esfarrapado. Sou eu na porta, fora de mim» (Carvalho 2007, 228) —, quer pela sugestão de um reconhecimento que implicaria um encontro prévio — «Mas, ao contrário de mim, ele não me reconhece» (228) — e, finalmente, a referência a esse encontro longínquo — «Nossos olhares se cruzam e, pela primeira vez, ele sorri. Como na primeira e única vez que o vi antes desta viagem, quando ele tinha apenas cinco anos e não podia entender quem eu era nem o que estava fazendo ali. Estamos voltando para casa.» (234)

 Este pormenor confere à sua viagem um cariz bastante diferente da do seu meio-irmão: além de o tornar potencialmente ainda menos disponível para conhecer e compreender o povo estrangeiro que o rodeia, transforma o seu percurso numa espécie de busca por si próprio (Ferreira 2009, 58), de reencontro com um passado perdido involuntariamente e que, algo paradoxalmente, depois de uma rejeição inútil, lhe é imposto e por si cada vez mais almejado ao longo da viagem.

Assim, a paisagem, após um breve reconhecimento, quase desinteressado, da sua beleza (Carvalho 2007, 148-149;150-151), é progressivamente transformada num ambiente hostil ao viajante; as descrições do Ocidental focam-se cada vez mais nos pontos negativos que ela apresenta — o clima intolerante, as «cidades-fantasma» quase vazias e miseráveis (171; 196), a profusão de insectos assustadores (173), os hábitos alimentares exóticos e, para ele, intragáveis. Do mesmo modo, os nómadas perdem rapidamente o seu interesse exótico, tornando-se tão cíclicos como os seus próprios movimentos no espaço: as paragens que é obrigado a fazer quando encontra uma família nómada parecem-lhe atrasos desnecessários e forçados (151); a sua hospitalidade ao oferecerem abrigo e comida a todos os viajantes transformam-se numa imposição inconveniente (161); a curiosidade dos tsaatan por ele e pelos turistas (152-153; 159), bem como o seu fascínio por fotografias de família, apenas contribuem para a irritação e impaciência do Ocidental (155; 176-177), que neles só vê bêbedos potencialmente violentos e ameaçadores (162) e que não os consegue reconhecer enquanto individualidades porque «não estava interessado nas pessoas. Não tinha tempo a perder. Estava à procura de uma pessoa» (180), não compreendendo «nada do que acontecia a sua volta» (189).

Da mesma forma, a desconfiança para com o guia Purevbaatar, o motorista Baua e todos os informantes com quem se vão cruzando no caminho vai crescendo com os movimentos lentos e parcialmente circulares da viagem (Carvalho 2007, 171). A incapacidade de compreender o que significa viajar pelos montes Altai em busca de alguém,[5] algo que implicaria o contacto e a procura de pessoas e não de lugares específicos, predispõe-no a desconfiar de Purevbaatar e suas intenções (149; 191) (embora tenha realmente razões para o fazer, como veremos adiante), não percebendo que o guia, no fundo, cumpre o que foi acordado inicialmente — refazer o percurso do Desajustado (192). Purevbaatar afigura-se-lhe como o guia que se aproveita da vulnerabilidade do viajante e que o faz sentir-se impotente perante a contrariedade (148; 172; 192-193).

Neste contexto, aquilo que poderia ser uma componente de aproximação e comunicação bem-sucedida entre o Ocidental, o guia e os outros mongóis com quem vai contactando — a linguagem e a tradução do guia que, como se diz no início, falava quase perfeitamente o inglês (Carvalho 2007, 69; 71) — torna-se antes uma agravante da suspeita de ludíbrio, já que a possibilidade de comunicação directa não assegura a compreensão da intenção por detrás das palavras, levando a que tudo possa ser considerado mentira: «Estou nas mãos de Purevbaatar. Dependo dele para tudo e não confio no que diz ou traduz.» (154)

 

Algo semelhante se passará, porém, com o próprio Purevbaatar, provando que a incompreensão e o conflito culturais não são exclusivos do Ocidental, nem do Ocidente. É, aliás, a sua atitude xenófoba relativamente aos nómadas cazaques (atitude mais acentuada que o etnocentrismo do Ocidental), bem como a sua homofobia, que, em última análise, o levam a recusar continuar o percurso pelos montes Altai com o Desajustado e a abandoná-lo em Ölgiy sem passaporte. Como ele próprio revela, num momento de revolta em conversa com o Ocidental e perante o reencontro com Baitolda e com o facto de este afirmar não se lembrar de nenhum rapaz, nem dos escritos ou da história de Dorj Khamba (Carvalho 2007, 209), Purevbaatar, ao ouvir a versão homossexual da visão do monge, teria evitado traduzir para o Desajustado as palavras do falcoeiro até chegarem a Ölgiy. Esta nova versão da história foi por sua vez, provavelmente, o que o motivou a não seguir mais o Desajustado, a recusar-se a acompanhá-lo na busca daquilo que para si era inconcebível:

 

E, por mais que eu tentasse convencê-lo de que o falcoeiro só mentia e nos humilhava, que não havia lugar nenhum, e possivelmente tampouco tivesse havido alguma vez algum monge ou visão, ele insistia em voltar. (…) era ele que criava a história com as suas perguntas. (…) E eu disse que não voltava. Se ele quisesse, que fosse sozinho. E ele foi. (Carvalho 2007, 219).

 

Havia considerado aquela nova interpretação como um insulto que Baitolda dirigia a ambos, entendendo-a como a insinuação de que eram também homossexuais (Carvalho 2007, 216-217) quando, afinal, «Não existem homossexuais na Mongólia. (…) Talvez em Ulaanbaatar, escondidos — os jornais falam de uns escândalos de vez em quando —, mas no campo, nunca» (214). Purevbaatar pensa, além disso, que essa insinuação se deve ao facto de ser mongol — «Ele só queria nos humilhar. Porque sou mongol» (217) —, transpondo, deste modo, para Baitolda a sua própria xenofobia.

A agravar o choque provocado pela revelação de Baitolda está o seu preconceito para com o povo cazaque que, à semelhança do Ocidental em relação ao próprio guia e aos nómadas mongóis, faz com que «não aguent[e] os cazaques, que são todos uns safados» (Carvalho 2007, 205), ou com que afirme «Você nunca deve confiar nos cazaques. São todos uns mentirosos» (216); «Havia uma diferença irremediável entre mongóis e cazaques, especialmente quando o mongol era Purevbaatar.» (210) Além disso, a linguagem é, novamente, um entrave à compreensão mútua que acentua esses preconceitos culturais:

 

Embora de início não tivessem certeza de estar diante da pessoa que realmente procuravam, o falcoeiro logo lhes confirmou a história de Ayush, ou pelo menos foi isso que Purevbaatar depreendeu do que ele dizia, já que o falcoeiro não falava bem mongol e Purevbaatar não falava cazaque. (Carvalho 2007, 194)

 

O próprio guia confessa adiante ao Ocidental: «E, para completar, eu também posso não ter entendido tudo o que ele estava dizendo. Esses filhos-da-puta não sabem nem falar mongol.» (Carvalho 2007, 218) Tudo isso leva a que desvalorize a informação que Baitolda lhes dá antes de partirem — dizendo que havia encontrado um estrangeiro a caminho do Döröo Nür — e que considere como mentira a pista que realmente os conduzirá ao Desajustado (211-212).

Por outro lado, o desejo de não se responsabilizar pelo desaparecimento deste último (ajudando, ainda assim, o Ocidental a procurá-lo), aliado aos seus preconceitos culturais, levam-no a não revelar ao Ocidental a verdade acerca do desaparecimento do Desajustado (Carvalho 2007, 80; 219) e a não o levar directamente para as imediações do local onde se tinham separado, cumprindo antes todo o percurso que havia previamente feito, como solicitado pelo Ocidental.

 

Todavia, a incompreensão e a comunicação falhada não são resultado exclusivo de confrontos culturais sem solução. Como já brevemente mencionei, o narrador/diplomata, provindo do mesmo contexto cultural brasileiro que o Ocidental, não consegue estabelecer com ele uma comunicação eficaz, não o compreende e desenvolve por ele, após um breve contacto amigável, até alguma repulsa (Carvalho 2007, 14-15; 16).

Por outro lado, os diários do Ocidental, que o narrador várias vezes diz suspeitar terem sido deixados de propósito em Xangai como uma explicação para a recusa em ir à Mongólia (Carvalho 2007, 20; 42), não servem, realmente, o seu suposto propósito, já que o narrador só compreende tudo o que se havia passado quando, na missa dedicada ao Ocidental, depois da sua morte e do funeral em que não esteve presente, encontra um diplomata que havia sido amigo do falecido e que lhe entrega as últimas peças do puzzle: «O facto é que, por uma coincidência espantosa, os dois irmãos só foram se reencontrar vinte anos depois, na Mongólia, veja só. O mundo dá voltas» (238):

 

e, de repente, (…) senti uma vergonha imensa. Da minha ignorância, da minha insensibilidade, de tudo o que não fiz e de tudo o que não disse a ele enquanto estava vivo. Lembrei do retrato do desaparecido. Senti vergonha de não ter compreendido antes e de não ter pedido desculpas ao Ocidental. Ele me tinha deixado suas anotações de viagem para que eu compreendesse, como uma explicação. (Carvalho 2007, 238)

 

É o choque que a morte prematura e violenta do Ocidental causa no narrador que lhe reaviva o interesse pelo antigo colega e o leva a procurar os documentos que ele havia deixado em Pequim. Nada sabemos do regresso do Ocidental a Pequim, mas o narrador parece não se ter querido envolver mais, não ter feito um esforço para compreender tudo o que sucedera e não ter dado importância aos documentos que o Ocidental havia deixado para trás (Carvalho 2007, 16).

A composição do seu livro é, assim, o resultado dessa viagem ao passado, que culmina no momento em que o amigo do Ocidental lhe faz a revelação do parentesco e que o leva a perceber que não havia compreendido nada (Júnior 2009, 71). A respeito do narrador, Ferreira observa pertinentemente que se trata de uma personagem focada mais em si própria e no seu projecto de escrita tardia do que na história do Ocidental, como parece querer fazer o leitor acreditar (2009, 16-18). De facto, nos últimos passos do romance, a reconfiguração dos seus actos involuntários permite-lhe encontrar a redenção para a sua intolerância e cegueira passadas:

 

No táxi, de volta para casa, tentei me convencer que, de alguma maneira, apesar da minha incompreensão e da minha estupidez, sem querer, eu os tinha reunido, sem querer, ao enviar o Ocidental à Mongólia, eu o obrigara a fazer o que devia ser feito. (Carvalho 2007, 239)

 

Em Amarbayasgalant, antes de ter iniciado a sua segunda viagem, centrada na deusa Narkhajid, o Desajustado havia passado por um templo a ela dedicado:

 

o qual, no entanto, passou despercebido ao rapaz, porque na época ainda não tinha se interessado pelo mistério da deusa, ainda não havia passado por Erdene Zuu ou visitado Narkhajid Süm, e não podia ligar uma coisa à outra. (Carvalho 2007, 198-199).

 

«A gente só enxerga o que já está preparado para ver» (Carvalho 2007, 238), diz o narrador perto do fim.

 

[1] Como refere Mata: «(…) a imagem utilizada por Bernardo Carvalho para falar das tentativas de interpretação, ou busca pela verdade, que resultam na incompreensão é a da viagem» (2005, 19).

[2] D’Angelo cita um passo de uma entrevista ao próprio Bernardo Carvalho que parece estar relacionado com essa obsessão do Desajustado: «“Não existe literatura, nem arte sem paranóia. Provavelmente não haveria nem civilização. A paranóia é a tentativa de dar sentido ao que não tem, ao desconhecido” (Folha de São Paulo, 2004, p. 4-5), declara em uma entrevista Carvalho, à publicação de Mongólia.» (2008, 89) Parece ser essa «paranóia» que em parte conduz o fotógrafo à busca de sentido para Narkhajid e o seu culto dentro da religião budista. O desejo de compreensão é tal que se eleva a esse estado quase irracional, conduzindo-o a decisões insensatas que desembocam, em última análise, no seu desaparecimento na Mongólia.

[3] Ferreira entende esta parte da viagem como «uma busca de testemunhos» em que o fotógrafo se empenha na recuperação das «histórias perdidas que a ninguém mais interessam, das quais ninguém se lembra ou não se quer lembrar» e que ele, estrangeiro na Mongólia, quer desesperadamente preservar do esquecimento (2009, 62). Vê, deste modo, Narkhajid como «uma metonímia da cultura budista mongol em geral: o destino pô-la no seu caminho e ele sente-se por isso compelido a saber mais sobre ela, a narrar uma história e, narrativamente, prestar tributo a uma memória» (73). Embora esta pareça uma observação pertinente acerca do interesse do Desajustado pela deusa budista, torna-se algo redutora. Primeiramente porque, segundo o que o romance parece fazer crer (e a própria história de Suren), o culto de Narkhajid só seria dado a conhecer àqueles que o praticavam no que tocava aos seus rituais práticos e nunca quanto ao seu significado cultural ou místico, pelo que considerá-lo uma memória perdida pode ser erróneo. Depois, a curiosidade do Desajustado parece localizar-se, mais do que no desejo de conhecer o budismo em si, sobretudo no de conhecer e compreender aquilo que vai para além dos limites da sua própria cultura e que é incompreensível dentro dela, sendo necessária uma busca fora da cultura de origem, uma espécie de recolocação cultural.

[4] Diz-nos Miceli: «[A paisagem mongol] é, efectivamente, encarada como objecto de uma indagação de natureza hermenêutica, orientada para a atribuição e a fixação do sentido, como a abundância das metáforas da leitura e o uso do dispositivo fotográfico revelam.» (2016, 182)

[5] Como lhe diz Purevbaatar: «Você me pediu para fazer o mesmo percurso que fiz com ele há seis meses. Acontece que esse percurso depende das pessoas que encontramos no caminho. Num país de nômades, por definição, as pessoas nunca estão no mesmo lugar. Mudam conforme as estações. Os lugares são as pessoas.» (Carvalho 2007, 149)

 

Bibliografia

Carvalho, Bernardo. 2007. Mongólia. Lisboa: Biblioteca editores Independentes.

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