De manhã, Mati Diop abre as persianas do apartamento, da esquerda para a direita, como quem escreve, obturador demasiado lento, janelas altas de um 24º andar. É demorado o percurso das lâminas, que, ruidosas e desengonçadas, se partem na última fileira. Ao redor da casa, estende-se o aglomerado de prédios do 13º arrondissement de Paris, gente rodeada por uma cidade que não pode visitar — caprichosos os que se dedicam demoradamente à circulação.
O mundo da alta-costura pediu a Diop, menina de ouro dos festivais de cinema, um filme de quarentena. Actriz e realizadora francesa, sobrinha do cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty, Mati Diop foi, em 2019, a primeira mulher negra, e uma das poucas mulheres até hoje, a ganhar a prata do Grand-Prix no festival de Cannes, pela sua primeira sua longa-metragem, Atlantique.
In My Room (2020) faz parte da série de curtas-metragens encomendada nos últimos dez anos pela marca de roupa italiana Miu Miu, intitulada “Women’s Tales”, que inclui trabalhos de realizadoras contemporâneas como Agnès Varda, Lucrecia Martel, Haifaa Al-Mansour, Ava DuVernay, Naomi Kawase, Lynne Ramsay.
Fechada em casa, Diop tinha começado a filmar os vizinhos durante a noite e a encomenda fá-la regressar aos registos áudio que, durante três anos, fez da agora morta avó Maji (Diop, 2020), confinada por vinte anos no seu apartamento do 17º arrondissement, lado noroeste do caracol, antípoda do 13º. Descrevendo um contraste com os meses nómadas de promoção da primeira longa-metragem, Diop diz encontrar liberdade na fixidez do sedentarismo, que lhe permite regressar ao que caracteriza como a essência da sua relação com o cinema: o acto de filmar (ibid.).
Essa liberdade começou por ser uma forma de constrangimento, já que Diop, ao receber a encomenda do filme, viu-se a mãos com os constrangimentos impostos pelo confinamento e o modo como este afectou as suas possibilidades em termos criativos: “What story can I tell now, with minimal means, alone in my studio, that resonates with what the world is going through while being intimate?” (ibid.).
A série “Women’s Tales” depende de uma premissa simples — que o filme se constitua como um olhar acerca do que é ser uma mulher no século XXI. Sob este ponto de partida, esconde-se um outro, enunciado com menos pompa — o de que as realizadoras incluam nas obras peças de roupa da Miu Miu, abalando qualquer leitura mais ingénua das boas intenções da marca.
Contrariamente à maior parte das curtas-metragens da série, justamente acusadas de servirem de montra para as roupas da Miu Miu, In My Room traz para a discussão um elemento importante para pensar a posição de qualquer mulher no mundo, nomeadamente, mas não apenas, de uma que se dedique a uma forma de trabalho criativo — a questão dos recursos de que dispõe para o fazer. Nesse sentido, transporta ecos de um outro objecto, que surgiu também ele, quase cem anos antes, como consideração acerca de como a liberdade intelectual e artística depende de aspectos materiais: duas conferências que Virginia Woolf apresentou, em 1928, em dois colégios da Universidade de Cambridge exclusivamente integrados por mulheres, Girton e Newnham, conferências que se transformariam depois no livro A Room of One’s Own, publicado no ano seguinte.
Vendo-se também ela na necessidade de criar algo que responda a um conjunto de limitações, ali o tema “Women and Fiction,” a protagonista do livro de Woolf, Mary, regressa às deambulações pré-conferência, dando conta das coordenadas que lhe permitiram procurar forma no meio do informe, assumindo a dúvida e aceitando que perante problemas ou questões insolúveis, é por vezes necessário adoptar novos métodos: “Drawing pictures was an idle way of finishing an unprofitable morning’s work. Yet it is in our idleness, in our dreams, that the submerged truth sometimes comes to the top” (1929: 41). As duas questões insolúveis que Mary tem em mãos, ou aquilo que ela não consegue circunscrever, são “the true nature of woman” e “the true nature of fiction,” os temas sobre os quais lhe pediram que falasse, portanto — temas ou título que parecem esvaziados pela sua vastidão e nebulosidade:
The title women and fiction might mean, and you may have meant it to mean, women and what they are like, or it might mean women and the fiction that they write; or it might mean women and the fiction that is written about them, or it might mean that somehow all three are inextricably mixed together and you want me to consider them in that light. But when I began to consider the subject in this last way, which seemed the most interesting, I soon saw that it had one fatal drawback. I should never be able to come to a conclusion. I should never be able to fulfil what is, I understand, the first duty of a lecturer—to hand you after an hour’s discourse a nugget of pure truth to wrap up between the pages of your notebooks and keep on the mantelpiece for ever. (3-4)
Consciente da distância que a separa de uma resposta conclusiva, Woolf está antes preocupada em estabelecer as condições de possibilidade da sua busca, e em última instância da criação artística, acomodando elementos que poderiam parecer alheios à seriedade do tema: “But, you may say, we asked you to speak about women and fiction—what has that got to do with a room of one’s own?” (3), antecipa.
A explicação que propõe é de ordem absolutamente prática: “All I could do was to offer you an opinion upon one minor point — a woman must have money and a room of her own if she is to write fiction” (4), apontando implicitamente para o momento em que Mary, sentada na margem do rio, começa a pensar sobre a conferência e a prepará-la — para o fazer precisa de tempo, de um lugar, e de algo que sustente a sua inactividade. Ao sublinhar a importância de as mulheres disporem dos meios financeiros para desenvolverem o seu trabalho, Woolf inverte de forma curiosa os termos: costuma ser o trabalho a providenciar o dinheiro, e não o dinheiro a permitir o trabalho, como acontece aqui.
Woolf regressa ao mínimo, ao material, porque na lógica do seu ensaio, coisas aparentemente pequenas revelam aspectos mais amplos acerca do mundo, ou são, pelo menos, causadas por eles. O que se come e o que se bebe nos colégios dos homens e nos das mulheres relaciona-se com o dinheiro de que cada um deles dispõe. A mesa frugal que Mary encontra em Fernham surge como resposta necessária à falta de fundos a que o colégio, à semelhança dos colégios reais em que se inspira, estava votado. Nada se faz sem o dinheiro e Woolf lembra que é preciso tê-lo para nos podermos libertar dele, evitando interferências suas nos nossos afazeres, como na passagem em que a chegada do empregado com a conta interrompe o pensamento (48).
É a mesma espécie de pragmatismo que vai presidir ao regresso de Woolf ao quarto. Reconhecendo a absurda dimensão da empreitada a que começou a dedicar-se — “And if I could not grasp the truth about W. (as for brevity’s sake I had come to call her) in the past, why bother about W. in the future?” (40) —, Woolf questiona a possibilidade de sintetizar uma noção de mulher, sugerindo que o mais sensato será abandonar uma tarefa à partida impossível. Mas tendo-lhe sido pedido que estabelecesse, através da conferência, uma ponte com as mulheres do futuro — as alunas de Girton e Newnham que vêm depois de si — o que Woolf indirectamente parece rejeitar aqui é uma hipótese de experiência partilhada, essa ponte.
No entanto, o seu baixar de braços é mais generoso do que aparenta à primeira vista. Falar sobre a importância de um quarto e da existência desse quarto para o desenvolvimento do trabalho individual instituiu o recolhimento num espaço restrito, o regresso ao domínio do particular como parte do caminho necessário para chegar a outros pontos.
A estratégia da escritora é fazer com que o W de women passe a ser o W de Woolf, ao mesmo tempo que, mantendo a inicial, sugere algo semelhante àquilo que encontrámos no início do livro, quando Mary diz, “Here then was I (call me Mary Beton, Mary Seton, Mary Carmichael or by any name you please — it is not a matter of any importance)” (5), transformando um nome próprio, marca de uma identidade individual, no nome de diferentes mulheres, introduzindo uma continuidade, algo comum no seio da diferença. Como veremos, será o reconhecimento da condição individual, no caso da narradora, uma condição privilegiada, a permitir a aceitação de uma responsabilidade colectiva.
Procurar recolhimento no quarto depende, claro, de se ter um. O mesmo se dirá da protecção oferecida pela fortuna. No caso de Mary, a carteira despreocupada de onde tira o dinheiro para pagar a conta que lhe interrompeu o raciocínio foi herdada de uma tia que morreu, caída de um cavalo. As notícias da herança chegam-lhe, diz Mary, pelos mesmos dias de 1918 em que, no Reino Unido, as mulheres passavam a ter finalmente direito ao voto, num paralelo entre a chegada de dois instrumentos que possibilitam a emancipação.
A coincidência e as condições da morte da tia, levada da vida no meio de um passeio a cavalo, ofuscam a lógica de substituição, um pouco sombria, que rege a passagem da herança, lógica segundo a qual a existência de uma mulher depende do desaparecimento de outra, e que torna necessária uma dinâmica de responsabilidade comum.
Também a pergunta de que Diop parte — “What story can I tell now, with minimal means, alone in my studio, that resonates with what the world is going through while being intimate?” — traduz a procura de um ponto comum entre o mundo e o eu, nomeadamente através da ligação de Mati com a avó, Maji, o que de certa forma significa aceitar a pertença a uma linhagem feminina. Mas, se o modo como a realizadora formula aquela pergunta sublinha sobretudo uma disjunção entre dois pólos, o seu trabalho, como o de Woolf, propõe a atenção ao particular, àquilo que se conhece bem, como forma mais produtiva de aflorar qualquer espécie de consideração que se queira tecer sobre o mundo.
In My Room foi filmado no apartamento de Paris que serviu também de estúdio à realizadora durante o confinamento. A curta-metragem retrata as actividades de Diop na casa, cruzando-as com registos de áudio da avó, e com imagens dos edifícios circundantes e dos vizinhos, vistos pela janela.
O apartamento do filme não é aquele onde a avó morava, mas Diop cria a impressão de uma unidade espacial, ao mesmo tempo que, participando nessa unificação, o próprio título aponta em múltiplas direções, como o título da conferência de Woolf. Poderíamos perguntar: a que quarto se refere o título? O de Diop? O da avó? Igualmente importante será a preposição. O que fazem elas nos seus quartos?
Diop, por exemplo, entretém-se a olhar pela janela, a mexer no telemóvel, a ir ao frigorífico, de onde traz qualquer coisa para comer. Dança, edita filmes, passa o tempo, como vemos os vizinhos fazer também. A avó, que só conhecemos através de gravações de áudio e de algumas fotografias, fala principalmente sobre o passado, e as suas histórias parecem assombradas pelo seu estado de inacção ou impotência. Muitas vezes, aponta os momentos em que estava ocupada como os mais gratificantes da sua vida: “Moi, j'ai commencé à avoir des bonnes amies quand j'ai commencé à travailler comme hôtesse d'accueil.” Mais tarde, será o seu privilégio de classe a afastá-la do trabalho e de uma vida onde o trabalho poderia significar uma forma de libertação.
Se não fosse a Segunda Guerra, diz-nos, e o facto de se ter casado aos 20 anos, a avó teria gostado de ser actriz, falando de uma vida que deixou por viver, e que Diop, que se dedica à representação, parece de algum modo continuar. A outra forma de inatividade que paira sobre a avó é a parcial clausura a que se viu forçada, por motivos de saúde, durante quase 20 anos. Ouvimo-la dizer o quanto a entristece não poder ir à ópera, sugerindo à neta que vá no seu lugar, espécie de pedido para que a rapariga seja uma continuação de si, fazendo as coisas que a avó já não pode fazer. Como Diop, que tenta resistir ao presente durante a pandemia, sobreviver-lhe para chegar ao que vem depois, a avó expressa o seu desejo de continuar a viver, apesar da clausura e, em última instância, da sua morte iminente.
In My Room tenta descobrir paralelos e formas de transmissão entre a vida da avó e a de Diop. Uma peça importante é a ópera de Giuseppe Verdi La Traviata, que a anciã ensinou à rapariga quando esta era pequena, lembrança de que a sua perda de memória a priva constantemente. Diop recupera a música e canta-a em playback, como se encarnasse o espírito da avó, enquanto interpreta a ária à sua maneira.
Herdar uma música, uma história ou um quarto significa receber um objeto ou um espaço que passa a ser nosso, mas que contém necessariamente um legado e uma conexão com outras gerações, passadas e futuras. No filme de Diop, essa transmissão não significa que algo permaneça para sempre inalterado, mas, pelo contrário, acarreta um princípio de mudança e de movimento.
O quarto, a casa que durante tanto tempo foi uma prisão para alguém — e a casa aqui é também um símbolo da reclusão da avó devido ao casamento — torna-se, para Diop, um lugar de liberdade, um lugar onde ela pode trabalhar, não apesar das circunstâncias, mas através ou por causa das circunstâncias, que se transformam no seu material fílmico.
A realizadora explora diferentes maneiras de trabalhar naquele espaço, de reconsiderar o que de desfavorável possa haver no seu carácter insular, da mesma forma que tenta trabalhar com os requisitos de Miu Miu e reivindicar não só o seu próprio espaço dentro do filme, mas o próprio filme.
Em algum ponto de seu ensaio, Woolf diz:
And with Mrs Behn we turn a very important corner on the road (…) Mrs Behn was (…) a woman forced by the death of her husband and some unfortunate adventures of her own to make her living by her wits. She had to work on equal terms with men. She made, by working very hard, enough to live on. The importance of that fact outweighs anything that she actually wrote (…) for here begins the freedom of the mind, or rather the possibility that in the course of time the mind will be free to write what it likes. (84-85)
Em In My Room, Diop parece posicionar-se naquele ponto de transição, tentando fazer duas coisas: ganhar a vida através do seu talento, ao mesmo tempo que assegura a possibilidade de, no futuro, passar a poder fazer o que quer, o que significa não depender dos constrangimentos impostos por quem possui o dinheiro.
A maneira que Diop encontra de fazer “aquilo de que gosta” é sondar o terreno onde se encontra e as raízes da sua posição actual. A título de exemplo, revela abertamente as restrições com as quais tem de trabalhar — o tipo de atividades que preenche os seus dias, os limites do seu mundo actual, a imposição de incluir roupas Miu Miu no filme.
A maneira como a própria Diop enverga aqueles vestidos, permite tornar o próprio filme em algo mais do que um artigo passageiro. Enquanto a maior parte da série “Women’s Tales” existe unicamente para mostrar as roupas da marca, o filme de Diop inverte essa dinâmica, tornando-as parte integrante da estrutura da obra. A inclusão da troca de e-mails com Verde Visconti, directora da marca, é usada por Diop como uma espécie de isenção de responsabilidade. Apresenta-a antes de introduzir as roupas no filme, de forma meio lúdica, meio displicente. Usa os vestidos a caminho do frigorífico, deflaccionando o glamour que se poderia esperar de tal traje, ao mesmo tempo que relaciona o pagamento associado a essas roupas com a subsistência proporcionada pela alimentação. As jóias bordadas nos vestidos não são ali sinal de luxo, mas simples reverberação das outras luzes que interessam mais a Diop, e que ela persegue com a câmara ao longo de todo o filme: a bela luz do sol, reflectida nas dezenas de janelas que cercam seu apartamento ou as luzes noturnas dos edifícios.
Através de pequenas formas de transmissão e de reconfiguração de objectos, Diop tenta definir o seu lugar no mundo, procurando transformar os constrangimentos numa forma de libertação, tal como a avó, que diz não se importar de apanhar táxis — para si a imagem do demónio — desde que seja para ir fazer coisas bonitas.