E Pimpão sente-se sozinho. É apenas natural, nadavam os dois no mesmo tanque e a vida habitua-se à vida. A avó iça a criança e ajuda-a a subir a escadinha de plástico, mobilizada para o óculo de cada tanque. O dedinho apoia no botão, acende-se a luz. A menina espreita pelo óculo, o olho azul varre o cubículo. Espécie de espécie nenhuma. Que é do cavalo marinho? Nada. Ao lado do tanque, a seco, a imagem eterna do cavalo marinho lembra o excêntrico animal. Das duas lontras, com seus incisivos incisivos, o mais que se pode dizer é que apenas os espíritos assombram o lugar e as fotos datando quase da fundação do aquário há muito deixaram de valer. Tartarugas, cuja longevidade é famosa, resta uma, metida na carapaça. E o mero? A moreia? Por enumeração, acumulação do efeito e pela progressão natural das coisas, imagine-se um aquário inteiramente povoado de tanques vazios, água lisa e notícias necrológicas de peixes bem ilustrados e defuntos. Quando digo imagine-se, digo imaginem, imagine o leitor, como se não tivesse estado a imaginar até agora. Apenas uma chamada de atenção e já é uma outra forma de imaginação que eu lhe peço. É uma alegoria, não? E a alegoria depende da sua capacidade alegórica, tem de se iluminar no leitor outra parte do pensante, e essa alegoria vai depender muito mais da sua experiência que da minha. Porque haverá quem considere um aquário sem peixes um lugar contraditório e cómico que se resolve num encolher de ombros, e quem o veja na forma da hecatombe, um sinal dos tempos, uma imagem da perda e do abandono a que tudo está votado. O pragmático, esse, verá um recomeço, um condomínio de luxo onde de imediato sonha viver. Do tanque faz piscina, e mergulha.

Pimpona é nome que em nada descreve a garoupa. Zuraida, talvez. O que Zuraida tem, o sabor orientalizante de peixe que se dissimula nas rochas, o seu carácter esquivo, a reserva de quem flutua parado, parecendo sempre observar, nunca ser observado. Zuraida é auto-suficiente. Vive bem sozinho. Porque Zuraida é homem e mulher, daí a ilusão do nome. Esta Pimpona é anterior à extinção da sua espécie, o que não constitui truísmo, mas a primeira perna de uma ironia. Ela não foi dessa espécie de garoupa que se vende nas nossas praças cultivada ao quilo em tanques de aquacultura e alimentada a hormônio. Foi uma das últimas da sua espécie, se não a última, pelo menos a última nesse aquário em ruínas. E Pimpão sente-se sozinho, posto que não esteja nem ele, nem a sua espécie, em vias de extinção. Pimpona, que não dava confiança, nem nada na sua pessoa apontava para uma solidão, quando morreu, levou a espécie com ela. E Pimpão sente-se sozinho. Não é uma garoupa, o Pimpão, o nome é mais uma vez equívoco. Mas a espécie de Pimpão não está em extinção. É carapau. Carapau ainda há. Carapau ainda vai havendo.

 
 



Conversa de Mesa

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