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On Spring


At a certain point in Late Spring (1949), during Shukichi and Noriko’s journey by train, while standing looking through the window, the daughter is framed from a low point close to the ground. The low level of the camera suggests her father’s point of view, as he sits in one of the benches reading. Despite Noriko’s eyeline reasserting Shukichi’s position, as soon as her father is framed, the reverse shot is not the perfect match for the first shot. The camera should be placed at a higher level in order to suggest Noriko’s point of view, now off screen, somewhere implied by his eyeline. But this is not what happens. Actually the camera stands even lower than before. How should we describe this thwarting of expectations? And how should we describe Yasujirō Ozu’s persistent framing of people and vases, bicycles and buildings at such a height that it always feels like everything is touching the ceiling, air below instead of above?

We could start by saying that this persistent framing at a low height (different, one should say, from a low angle shot) is one of Ozu’s formal trademarks. But how should we understand “form”? As the causing of sensations so particular and unique that they become unintelligible? Or as a system, a film “language” where works of art (the only truly particular and unique entities here) are subsumed under very tedious categories? Leaving aside the complex reasons why one would prefer to say, with T.S. Eliot, that poetry is not the expression of personality but an escape from it, it seems to me we really have no other way of thinking about Ozu’s persistent low camera height except as one of his traits, which is to say as an aspect of his personality.

To describe his way of framing, but also the screenplays he jointly wrote with Kogo Noda or his behaviorist conception of acting (so much for the distinction between “form” and “content”) is to speak of actions, many of which customary and, as so, predictable. Actions whose intentions can be more or less clear – from the building of a claustrophobic space, relatable to family melodrama, to the downright preference of certain images over others – in such varied contexts as Chaplin, Lloyd and Lubitsch’s classical cinema, post-war Japan or the awareness of the transience of all things. There are no sensations (much less special ones), nor languages (terrible analogy), but only actions we describe as saying something in the only natural language we have been endowed with. Better make sure we do not ruin it with terms such as “syuzhet” or “parametric” (David Bordwell, I’m looking at you) and struggle to create a paraphrase which might be, while not indisputable, at least another work of art.


PT

A Propósito da Primavera


A certa altura em Primavera Tardia (1949), durante a viagem de comboio de Shukichi e Noriko a Tóquio, a filha, de pé a olhar pela janela, é enquadrada por uma câmara colocada a baixa altura do chão, sugerindo o ponto de vista do pai, sentado num dos bancos a ler. Mas se a direcção do olhar de Noriko confirma esta posição de Shukichi, assim que o pai é enquadrado, o contracampo não constitui o exacto inverso do campo. A câmara deveria estar colocada a uma altura elevada, de modo a sugerir o ponto de vista de Noriko, agora fora de campo num lugar indicado uma vez mais pela direcção do olhar. Mas não é o que acontece, a altura da câmara permanece baixa. Como descrever esta frustração das nossas expectativas? Como descrever a existência sequer dessas expectativas? E como descrever a constância com que Yasujirō Ozu enquadra desde pessoas a vasos, bicicletas ou edifícios com a câmara colocada a uma altura tal que tudo parece estar sempre a rasar o tecto, o ar em baixo em vez de em cima?

Podíamos começar por dizer que esta constância do enquadramento a baixa altura (distinto de um ângulo contrapicado, note-se) é uma das características formais de Ozu. Mas como entender «forma»? Como a criação de sensações tão únicas e irrepetíveis que se tornam ininteligíveis? Ou como um sistema, uma «linguagem» cinematográfica, onde as obras de arte, essas sim únicas e irrepetíveis, são subsumidas em entediantes generalidades? Deixando de lado as complexas razões por que preferiríamos dizer, com T.S. Eliot, que a poesia não é a expressão da personalidade mas a fuga dela, parece-me que não temos realmente outro modo de pensar a constante baixa altura da câmara senão como um dos traços característicos de Ozu, o que é dizer da sua personalidade.

Descrever o seu modo de enquadrar, mas também os argumentos escritos em parceria com Kogo Noda ou a concepção behaviorista da representação de atores (lá se vai a distinção entre «forma» e «conteúdo») é falar de acções, muitas delas habituais e por isso previsíveis, realizadas com fins mais ou menos claros em vista, que podem ir desde a criação de um espaço claustrofóbico, relacionável com o melodrama familiar, até à mera preferência por certas imagens em detrimento de outras, no contexto de cenários tão variados como o cinema clássico de Chaplin, Lloyd e Lubitsch, o Japão do pós-guerra ou o sentimento da transitoriedade de todas as coisas. Não há aqui nem sensações (muito menos especiais), nem linguagens (péssima analogia), mas apenas acções que pomos a dizer alguma coisa com a única linguagem natural de que fomos dotados. Melhor não a estragar com termos como «syuzhet» ou «paramétrico» (David Bordwell, é contigo) e lutar por criar uma paráfrase que, não sendo talvez incontestável, seja pelo menos outra obra de arte.