1. Preâmbulo

O presente trabalho pretende reflectir acerca do valor literário da figura de Saigyō na idade-média japonesa, o qual penso que nunca deverá ser subestimado, sob pena de não se analisarem correctamente as posições dos literatos que lhe sucederam e que procuraram fazer obras que possuíssem um nível de espiritualidade semelhante ao de Saigyō.

Penso que a importância de Saigyō se resume a uma associação que se fez entre 3 pontos: a deambulação, a procura estética associada a uma reclusão (suki) e uma espiritualidade sincreticamente budista, voltada para o culto do natural. Os poetas que lhe sucederam, sejam Bashō, Sōgi, Nijō, ou outros que se inseriram nesta tradição de poetas viajantes, associam, graças a Saigyō, a excelência estética a atributos espirituais do artista. Assim sendo, seguir o caminho espiritual de Saigyō e deambular pela Natureza parece ser um meio de produzir boa poesia, assim como de produzir melhoramentos espirituais. A relevância da espiritualidade ou da literatura depende exclusivamente do autor de que se está a tratar. Para demonstrar a existência deste factor, uso dois exemplos distintos: Bashō, que dá mais valor à apreciação estética do mundo, e Nijō, que dá mais valor à espiritualidade que se obtém ao seguir o exemplo de Saigyō.

 

2. «A morte de um Buddha»

Saigyō (西行) foi o nome monástico escolhido por Satō Norikiyo, aquando do abandono da vida secular (shukke), no Inverno do ano de 1140. Os caracteres, significando «ir para ocidente» ou «caminho ocidental», atribuem-lhe, por um lado, uma clara associação ao budismo da terra pura do buddha Amitaba e, por outro, uma ideia de movimento que facilmente se harmoniza com a imagem do estilo de vida do monge e que se quedou para a posteridade. Da vida de Saigyō, sabe-se que foi membro da hokumen no bushi, a Guarda Nortenha do Imperador Toba, e sabe-se que abandonou o posto e a família, em tenra idade, para seguir um caminho religioso (Stoneman 2010, 69-70). Sabe-se também, pela sua consagração nas antologias Shinkokinshu e Ogura Hyakunin Isshu, que em vida a sua poesia era considerada como excelente. Mas, além disso, há e haverá sempre um grande vazio.

Esse vazio deriva, essencialmente, de Saigyō, vivendo no século XII da Era Comum, no final do Período Heian, ter visto, postumamente, a sua figura real adocicada pelo manto da hagiografia. Ao falar de «manto de hagiografia» refiro-me aos vários Saigyō Monogatar[1] que terão circulado durante toda a Idade Média japonesa e que, naturalmente, contribuem para uma santificação da figura de Saigyō que dificilmente corresponde à figura histórica. A disparidade entre o real e o ficcional obriga a que, ao falar-se de Saigyō, ou da influência de Saigyō, se deva ter em atenção que a imagem que se construiu acerca de Saigyō quase de certeza corresponderá a uma ilusão.

Por exemplo, pode-se conjecturar, a respeito do carácter repentino do shukke[2] de Saigyō, que o abandono de uma vida secular tão bem-sucedida de forma tão inexplicável se tenha tornado fascinante, tanto para os leitores seus contemporâneos como para os leitores subsequentes. Mas essa conjecturas, tal como Stoneman afirma, não ajudam a criar uma imagem de Saigyō, apenas ajudam no contínuo processo de criação da persona de Saigyō (saigyōzō) (Stoneman 2010, 72-3), a qual exerceu uma grande influência na associação da arte poética à peregrinação e à deambulação, graças aos textos das já referidas Saigyō Monogatari.

LaFleur crê que o precursor do processo de criação da saigyōzō seja a «santa» morte de Saigyō, utilizando como argumento a ideia de que Saigyō expressou desejo de morrer nas mesmas circunstâncias do Buddha histórico, Siddharta Gautama, com o poema:

Deixai vir a Primavera

E que por baixo das cerejeiras eu morra,

Enquanto a lua

Está perfeita a meio do mês, como

A pacifica abalada dele. (LaFleur 2003, 87.)[3]

Segundo LaFleur, este poema terá circulado durante a última década de vida do poeta, levando a que, pela notabilidade das circunstâncias da morte — que terão sido atestadas no templo de Horokawa-dera, em Osaka, como sendo as mesmas de Gautama —, se tenha criado um nexo entre Saigyō e Buddha, o qual terá contribuído para a valorização religiosa da vida de Saigyō.[4] Esta valorização, evidentemente, levou a que a arte poética, assim como as peregrinações, fossem, de certo modo, sacralizadas. A sacralização parece ser resultado dos comentários imediatos que Fujiwara Shunzei, Fujiwara Teika e o monge Jien fizeram do caso, os quais terão consensualmente dito que Saigyō teria, nesse poema, orado pela ocorrência da sua morte em circunstâncias semelhantes à morte do Buddha Gautama, acrescentando-se que apenas um ser completamente Iluminado poderia ter desejado e realizado tal sincronismo (Allen 1995, 70). Dado que o medium em que a oração é feita é um poema, tal situação terá levado, como conclui Allen (1995, 70-1), a que quaisquer dúvidas que pudessem surgir acerca da possibilidade de compatibilizar uma vida literária com uma busca pela salvação religiosa fossem completamente dissipadas. Como a Saigyōzō é gerada devido à existência da «excelente» poesia de Saigyō, e, por isso, pelo referido sincronismo, torna-se possível que se investigue a Monogatari com o explícito propósito de entender como terão os receptores de Saigyō pensado a relação entre espiritualidade e poesia.

 

3. Saigyōzō enquanto suki, em Saigyō Monogatari.

3.1 Súbito shukke de Saigyō

No que concirna a Saigyō Monogatari, embora seja um conjunto de textos conhecido, pouco se sabe acerca da sua autoria. Como se disse, Saigyō Monogatari é uma hagiografia. No entanto, noto que é uma hagiografia bastante peculiar, na medida em que parece enaltecer a vida literária de Saigyō, atribuindo-lhe um grau de importância igual ao grau que parece atribuir à sua vida religiosa, havendo momentos em que as sobrepõe. Isto leva a que a poesia possa ser considerada como um modus vivendi religioso. Penso que este enaltecimento derivará da sacralização que os seus contemporâneos terão feito, por um lado, do shukke e, por outro lado, da morte de Saigyō.

Na análise feita aos motivos que poderão ter levado ao shukke de Saigyō, Stoneman demonstra que houve uma corrente de pensamento — a teoria do suki[5]— que considerou que a perseguição de uma carreira poética poderia ser uma das motivações do shukke (Stoneman 2010, 83). De modo que não me é ilícito considerar que o enaltecimento da poesia presente na Monogatari deva derivar do facto de Saigyō, antes de ter sido um recluso exemplar, ter sido um poeta excelente. Ao dizer isto, estou a corroborar Hedlt, que afirma que as primeiras menções a Saigyō «(…)  advieram todas das mesmas pessoas, as quais foram responsáveis pela sua reputação poética, tendo o interesse na sua vida advindo de preocupação com a sua poesia em vez da sua»[6] (1997, 468). Heldt sustenta esta posição recorrendo a dois exemplos da Monogatari que procuram mostrar Saigyō como um suki que se dedica devotamente à poesia em exclusão de tudo o resto (Idem, 469). Esta é uma imagem de Saigyō que parece ter facilmente permeado a mente do público, de modo que Allen, ao analisar pinturas que acompanhariam o texto de Saigyō Monogatari, comenta que há de facto na imagética uma tentativa de conciliação da exemplar reclusão de Saigyō com a sua predisposição para compor poesia (Allen 1995, 66).

Na Monogatari, Saigyō é representado como cortesão excelente, quer nos saraus poéticos quer na habilidade militar, considerando-se que, embora reflectisse acerca da vida e de passagens das Escrituras, desejando seguir um caminho religioso, sentir-se-ia preso à vida secular por ter uma profunda gratidão ao Imperador Toba pelos favores que este lhe concedeu, assim como por receber muito amor da sua própria família. Conta-se que Saigyō sentiria que os dias iam passando em vão e que, por isso, se ia lamentado por não ter coragem suficiente e não conseguir quebrar os laços que o prendiam ao Século, pelo menos até à morte de Noriyasu (alegado melhor amigo de Saigyō, cuja existência carece de fundamentação histórica). A morte do amigo é descrita como causando grande comoção a Saigyō, levando a que o jovem poeta pedisse ao Imperador Toba permissão para fazer votos religiosos (Heldt 1997, 485-91). Segundo Stoneman, há uma certa lógica na associação do shukke à morte de um amigo, pois além de a morte de entes queridos ser um tópico comum para se seguir uma vida religiosa no período Heian, as narrativas de despertar frequentemente associam a morte de entes queridos a eventos que causam o despertar para a Verdade de Buddha (2010, 74). Esta associação entre o despertar e o contacto com a morte deve-se, naturalmente, à possibilidade de — através da morte de um ente querido — se obter, experimentando, o conhecimento exposto por Siddartha Gautama através das Quatro Nobres Verdades.[7]  

No entanto, a razão que leva a que se possa considerar que Saigyō é descrito como um grande renunciante da vida secular não é apenas o carácter súbito do shukke, mas sim a forma abrupta como renuncia à vida de corte e ao amor da família. Num passo espantoso, no final do primeiro capítulo, conta-se que:

Nessa noite ele tornou a casa. A sua filha, que ele muito estimara desde o nascimento, tinha agora quatro anos de idade. (…) Embora ele fosse superado pelo amor incondicional que tinha por ela, pensou para consigo mesmo: «É por causa da minha filha que abandonei a ideia de fazer votos religiosos no passado. É por isto que o Rei dos Demónios que reina sobre o Sexto Paraíso coloca aquelas amarras conhecidas como mulher e criança nos seres vivos para os impedir de atingir a budeidade, e para os prevenir de embarcar no caminho da separação, atingindo a budeidade. Sabendo isto, como posso continuar a acolhê-los com carinho? Este é o primeiro laço a cortar na minha guerra contra as paixões que me iludem.» Frio, sem coração, ele pontapeou a sua filha da varanda. (Heldt 1997, 493)[8] 

Neste passo, Saigyō (ou saigyōzō) demoniza a vida familiar que claramente apreciava, de modo a sentir-se emocionalmente justificado a cortar relações, seguindo, por fim, uma vida religiosa. Embora se possa considerar bizarro que pontapear uma filha da varanda seja um acto religioso, a verdade é que, utilizando um meio tão violento como modo de eliminar a tentação que é anteriormente atribuída ao demónio, a figura de Saigyō é santificada. Para um leitor da primeira metade do século XIII, início do período Muromachi, Saigyō é visto como alguém que foi capaz de, para seguir a Vida de Buddha, pontapear a filha adorada. A violência dramática é aqui utilizada de modo a enaltecer a determinação com que Saigyō, quebra as amarras que o prendem à vida secular. Porém, de acordo com Hedlt, este passo ainda poderá ser mais do que aparenta, na medida em que aparece em todas as versões da Monogatari e porque está implícito que o abandono da filha por Saigyō poderá ter um paralelo no abandono do próprio filho, Rahula,[9] pelo Buddha Gautama (Heldt 1997, 476).

De acordo com a Monogatari, o shukke, embora liberte Saigyō dos encargos seculares, não o leva a uma vida monástica mas a uma vida de reclusão no meio da Natureza. A reclusão, assim como as várias peregrinações que Saigyō leva a cabo, terão obrigado a que os leitores de Saigyō sentissem que ambas teriam contribuído bastante, por um lado, para a espiritualidade do monge e, por outro, para a qualidade da poesia — que numa visão contemporânea de Saigyō seria resultante da espiritualidade.

 

3.2 Poesia e nirvana

Sendo Saigyō representando como um dramático e violento abdicante da vida secular que deseja dedicar-se à perseguição de objectivos religiosos e estéticos, a violência da abdicação resulta, proporcionalmente, numa grande valorização de ambas.

No entanto, na contemporaneidade de Saigyō, a perseguição de ambições estéticas não era somente vista como um modo perfeitamente aceitável de se procurar atingir o nirvana, era também um caminho verdadeiramente valorizado. Como Allen sintetiza, por um lado, o poeta, monge e crítico literário Fujiwara no Shunzei associava a habilidade para se distinguir a boa da má poesia à prática budista de contemplação, sugerindo que a poesia, tal como a contemplação, permite a visualização da verdadeira essência das coisas; por outro lado, Mujū defendia que a poesia, nomeadamente o waka,[10] devido a uma longa tradição em que se associa ao Shinto,[11] possuía qualidades que levariam a que pudesse ser considerado, pela sua profundidade, como análogo aos versos sagrados dhāranī[12] (Allen 1995, 93-7). Embora a justificação de Mujū difira da justificação de Shunzei, ambos crêem que há uma «profundidade espiritual» na poesia. Note-se, porém, que estes autores não são aqui apresentados como precursores do pensamento de Saigyō ou da Monogatari. É, contudo, possível (e até provável) que tanto Shunzei, como Mujū, caso não tenham, diretamente, influenciado a redacção da Monogatari, sejam o reflexo de uma corrente de pensamento que sacralizava o trabalho artístico, uma sacralização que vejo como a principal influência dos inúmeros monges que, durante toda a Idade Média, dedicaram a sua vida a compor poesia.

Em 1212 da Era Comum, cerca de três décadas antes da redacção da Monogatari, o monge e recluso Kamo no Chōmei escreveu um texto paradigmático chamado Hōjōki, acerca da sua própria experiência como recluso, preconizando uma reclusão associada a uma vasta sensibilidade artística. Quando se analisa o Hōjōki, pode-se dividir o texto em três partes. Na primeira parte, Chōmei faz uma descrição elaborada das várias tragédias que presenciou, aludindo ao sofrimento e à ansiedade que o apego à vida e aos bens materiais causa aos seres humanos. Na segunda parte, descreve a pequena ermida que construiu em Toyama, e a felicidade que ela lhe deu, por lhe ter permitido viver em paz, longe dos desastres que assolavam a cidade (maioritariamente incêndios). Na terceira parte, em poucas linhas, Chōmei desfaz o argumento que vinha cunhando de que o leitor teria mais paz e viveria mais de acordo com a via de Buddha caso escolhesse viver numa ermida, ao lamentar-se de toda a felicidade, de toda a paz e de toda tranquilidade que da ermida obtém:

No silêncio do Ocaso, pondero e questiono meu próprio coração: «Tu fugiste do mundo para viver entre as florestas e a montanha, de modo a disciplinares a mente e praticares a Via de Buda. Mas, embora tenhas as ocupações de um homem santo, o teu coração é corrupto. O lugar onde moras poderá aspirar ao da ermida do próprio Vimilakirti, mas a prática que manténs não poderá ser comparável nem à daquele tolo chamado Suddhipanthaka. Terás alguma vez, após todo este trabalho, deixado que a pobreza de pecados anteriores te distraísse? Ou ter-se-ão as tuas ilusões convertido em loucura?» Quando conforto o meu coração, ele não pode responder. Ao menos esta língua mortal poderá terminar o seu discurso invocando o sagrado nome de Amida. (Chōmei 2013, 18)

Este passo é importante para a questão do suki por vários motivos. Por um lado, embora seja um texto com uma grande influência budista, é um texto literário. Por outro lado, a perseguição de interesses literários e musicais (o narrador toca biwa e koto) nunca são condenadas no decorrer do texto, nem tampouco neste último momento em que o narrador considera a sua conduta pecaminosa. A única condenação, feita à própria conduta, parece advir de o autor crer-se pretensioso por tentar ser como os monges reclusos do passado e sentir que a sua prática religiosa é muito inferior à que eles haviam mantido. Crendo-se sem respostas, Chōmei conclui o discurso perante a incerteza, decidindo terminar o texto com um nembutsu, um mantra de recitação do nome do Buddha Amida. 

Veja-se também que, na parte dois, ao descrever os textos sagrados que possui na sua ermida, Chōmei fá-lo do seguinte modo:        

(…) coloquei uma pintura de Amida junta com uma outra do bodhisattva Fugen ao lado dela, e uma cópia do Sutra da Flor de Lótus colocado antes deles. No canto mais a Este, tenho estendido um emaranhado de feno que serve de cama. Uma estante está pendurada desde o tecto, no canto a sudoeste, guardando três caixas de cabedal preto que contêm excertos de antologias poéticas, tratados musicais, o Ōjōyōshū, entre outros. (Hōjōki 2013, 12)

Neste passo, torna-se percetível que os extratos de antologias poéticas sejam colocados junto ao Ōjōyōshū (Os Princípios Essenciais à Salvação), que é um texto bastante importante, referente ao budismo da terra pura.  Naturalmente que, se o deleite da poesia fosse uma prática condenável, Chōmei não aproximaria fisicamente textos poéticos de textos de estudo religioso, nem tampouco os possuiria. Aliás, a proximidade física poderá demonstrar que, sendo suki, Chōmei utilizaria os textos poéticos como forma de progredir espiritualmente, uma prática bastante comum entre os monges da época.

 

a.     Saigyō e suki

Interrompi, brevemente, a discussão acerca de Saigyō Monogatari para referir as posições de Shunzei, Mujū e reflectir acerca do carácter suki de Chōmei, concordando com Allen, Stoneman e LaFleur acerca de a reclusão estar associada a uma perseguição estética nos tempos de vida de Saigyō e do(s) autor(es) da Saigyō Monogatari. Torna-se agora possível que, atendendo a este plano contextual, se reflicta acerca do alcance da Saigyō Monogatari, que penso ter levado a que a reclusão associada a uma perseguição estética se difundisse ainda mais, chegando a inspirar gerações inteiras de poetas-viajantes, como foi o caso de Sogi e de Bashō.

Mas vejo que a causa dessa inspiração não se encontra, por completo, na Monogatari; creio encontrar-se, sobretudo, na leitura conjunta que se faz da Monogatari e da obra poética de Saigyō. Porém, essa leitura só se torna possível atendendo a que, por um lado, Saigyō, como personagem da Monogatari, seja representado segundo o mesmo ideal de reclusão de Chōmei. Por outro lado, atente-se a que os poemas de Saigyō sejam, em grande parte, pejados de uma visão budista da realidade, podendo mesmo dizer-se que funcionem como meio de busca espiritual. A visão budista de Saigyō é, fundamentalmente, correspondente a uma fase tardia do budismo Tendai. Com a chegada e desenvolvimento do budismo Tendai a uma terra que já possuía uma espiritualidade local (o arquipélago nipónico), o sincretismo seria inevitável, de modo que os Kami passaram a ser pensados e entendidos como fazendo parte do «panteão» budista. Veja-se, como um bom exemplo desta integração, que Mujū considera que os Kami não são senão formas de os Buddhas se manifestarem e de guiarem os seres humanos (Mujū 1985, 163-4).[13]

Por outro lado, há que recordar, tal como o faz LaFleur, que havia na época uma grande discussão acerca da possibilidade de seres não-sencientes atingirem a budeidade. Houve vários contendores, dos quais os principais foram Chujin, Kukai e Ryogen. Barbaramente resumindo: 1) a tese de Kukai é a de que os seres não sencientes são ontologicamente idênticos ao darmakaya, ao Absoluto, e portanto não podem ser desprovidos da budeidade (LaFleur 1973, 98); 2) a tese de Ryogen é a de que o ciclo de vida de uma planta é idêntico ao ciclo de treino de um monge, na medida em que as plantas aspirariam à budeidade quando procuravam desenvolver-se, aguentavam as austeridades do mundo, atingiam a budeidade quando floresciam e também entrariam em extinção (LaFleur 1973, 102); 3) a tese de Chujin é a de que os seres vegetais já são buddha actualmente (porque todos os seres são buddha), e que serem vistos ou pressentidos como buddha dependeria do grau de elevação espiritual que o contemplador possuísse. Isto é, embora as plantas e árvores não demonstrem activamente a budeidade que, tal como todos os seres vivos, possuem no acto de existir, são efectivamente buddha na medida em que, se um contemplador senciente for um ser iluminado, poderá efectivamente constatar que as plantas e as árvores têm budeidade (LaFleur 1973, 106).[14]

De acordo com LaFleur, a perspectiva de Chujin deverá derivar da acomodação entre xintoísmo e budismo, uma perspectiva com a qual licitamente se pode concordar e que facilmente traz alguma reminiscência do pensamento de Mujū, supracitado. LaFleur considera que o valor espiritual que Saigyō atribui à Natureza é claramente superior ao valor que lhe é atribuído por Chujin, pois embora Chujin atribua aos seres não-sencientes um grau de iluminação que equivale ao do ser humano, de acordo com LaFleur, Saigyō parece atribuir um grau maior de Iluminação à Natureza do que ao ser humano (1973, 112-3) por considerar que o Tathāgata e a Natureza são um e o mesmo (1974, 234). Aceitando-se a hipótese de LaFleur, a reclusão, a deambulação e a poesia de Saigyō passarão a ter o mesmo significado, serão, essencialmente, três elementos que facilitam o acesso à realidade de Buddha. E nesse sentido concordo com a posição de Mujū, segundo a qual, pelo menos do ponto de vista de Saigyō enquanto escritor, os waka poderiam equivaler aos versos de dharani, porque enquanto Saigyō os escrevia estaria a aceder, espiritualmente, a uma realidade fora de si. Porém, as referidas circunstâncias, tanto do momento do shukke como do momento da morte, permitem que Saigyō possa ser percepcionado ou como um boddhisatva ou como um buddha. Assim sendo, sou levado a pensar que os poemas de Saigyō poderiam ser lidos com verdadeira devoção, tal como penso que terão sido. Exemplos desta posição são abundantes. Veja-se que, no Oi no Kobumi, Bashō escreve:  

Com as minhas cicatrizes tão doridas quanto as de Saigyō, lembrei-me da dificuldade que teve ao cruzar o Rio Tenryū. Por isso aluguei um cavalo com a história do homem escandaloso em mente. Mirei e contemplei a habilidade da Criação na beleza, nas das montanhas, dos campos e da costa; segui as passadas dos peregrinos livres de amarras; e persegui a verdade dos mestres da via estética. Tinha abandonado a minha casa, não necessitava de conveniências. (Bashō 2005, 39)[15]

Ao longo dos diários de viagem, Bashō compara-se frequentemente a Saigyō. Mas repare-se que neste passo específico, após comparar as suas circunstâncias às de Saigyō, Bashō associa claramente a energia criativa que vê emanar do universo à beleza natural e faz uma apologia da liberdade que se ganha ao abandonar-se as conveniências da vida secular. Esta liberdade é associada à mestria estética, porque, para Bashō a mestria espiritual e a mestria estética estão interligadas. Atente-se ao início deste mesmo livro, onde Bashō escreve:

O waka de Saigyō, O renga de Sōgi, a pintura de Sesshū e a cerimónia do chá de Rikyū — uma linha atravessa as Vias artísticas. E este espírito estético segue a Criação, para ser companheiro do virar das quatro estações. Nada que alguém vê não é uma flor, nada que alguém imagina não é a lua. Se o que se vê não é uma flor, é-se um bárbaro; se o que seimagina não é uma flor, é-se uma besta. Abandonai a barbaridade, afastai-vos da bestialidade, segue a Criação, regressai á Criação.[16] (Bashō 2005, 29).[17]

Esta é uma passagem frequentemente citada, tanto pela sua importância cultural — na medida em que o poeta Matsuo Bashō se vai, conscientemente, inserindo numa tradição estética —, como também porque, neste passo, o poeta faz uma clara associação entre o conceito de suki e a cultura/espiritualidade. Ao dizer-se que o esprito estético segue o Criativo, está-se a afirmar que a habilidade de apreciar esteticamente o mundo circundante depende do grau de espiritualidade que alguém possui. Daí que a única solução para se deixar de ser um bárbaro ou uma besta (seres que não têm capacidade de apreciação do mundo circundante) seja a de cultivar-se espiritualmente.

O pináculo do cultivo espiritual parece ser, para Bashō, o exemplo de Saigyō, a quem atribui a capacidade de produzir arte inclusive nos momentos mais banais da vida quotidiana. Veja-se a seguinte passagem:

Há uma corrente no final do Vale de Saigyō. Como eu visse mulheres lavando batatas;

Mulheres lavando batatas

Estivesse Saigyō aqui,

E ele comporia um Waka. (Bashō 2005, 29)[18]   

Mas se Basho dá primazia à habilidade de Saigyō de produzir arte, procurando identificar-se com Saigyō a um nível artístico (que não excluí a espiritualidade), Nijō parece atribuir um valor maior à beleza daquilo que Saigyō foi capaz de ver, identificando-se com Saigyō a um nível tanto mais espiritual quanto humano.

Foi talvez quando eu tinha oito anos que li uma biografia ilustrada de Saigyō. Numa dessas ilustrações, Saigyō é mostrado num chuveiro de folhas de cerejeira, com uma montanha atrás e um riacho por diante. O poema ilustra e descreve uma cena feliz, a beleza que é exaltada leva-o a parar, impedindo-o de cruzar o riacho,

                         Espalhadas por uma brisa,

                        As pétalas caiem no riacho,

hesitando perante a cena,

                        Os viajantes param e olham,

                        Sem querer cruzar a corrente.

A pintura deu-me desejo de seguir o modo de vida itinerante de Saigyō. (…) Eu queria renunciar ao mundo e viajar pelo campo, compondo poemas em gotas de orvalho, tanto por baixo das flores de cerejeira, durante a primavera, como por baixo de folhas vermelhas caindo no outono. Eu estimava deixar para a posteridade um livro de viagens, tal como o dele. (Nijō 1974, parágrafo 17)[19]

Neste passo do capítulo VIII do seu Towazugatari, Nijō sente-se bastante oprimida pelas suas obrigações sociais e demonstra ter aspirações semelhantes às de um suki, sentindo-se verdadeiramente inspirada pelo exemplo de Saigyō, que colheu de uma pintura de um episódio da Saigyō Monogatari.[20] Mas tenha-se em atenção que as confissões se enquadram num momento em que a narradora defronta o sofrimento provocado pela morte do seu pai, o sofrimento de desconhecer o paradeiro da filha que tivera às escondidas e o sofrimento causado pela vergonha de ter sido obrigada a mentir ao imperador retirado para com quem tinha várias responsabilidades. Todas estas situações causam tristeza e aumentam o desejo de Nijō de se retirar da vida da corte, de abandonar o mundo secular e tomar um caminho religioso. Veja-se que no final do tomo primeiro, Nijō diz:

Como o ano estivesse a aproximar-se do fim [1274 E.C.], a minha miséria ia crescendo. Não me era possível encontrar nenhum contentamento no palácio, e também não conseguia voltar a casa. Num fim de tarde, a Senhora da Ala Este teria de visitar o ex-Imperador, eu tornei ao meu quarto sob o pretexto de ter dores de estômago. No final dessa noite o meu amado veio à minha porta. (…) Eu deixei-o entrar. A tristeza com que o vi ir-se embora de madrugada foi infinitamente maior, nesse dia, do que a que senti com o passar do ano anterior. (…) Quando ainda hoje penso nestas coisas, comovo-me. (Nijō 1974: parágrafo 19)         

Com este trecho, Nijō demonstra que não ambicionaria seguir o exemplo de Saigyō apenas para perseguir uma causa estética, uma vez que Nijō veria sofrimento (dukhka) no mundo circundante e quereria curar-se através do abandono dos desejos (trsna), alcançando o satori. Nijō não utiliza esta terminologia, porém o reconhecimento de dukhka parece-me auto-evidente. E ao longo do relato vai sendo intensificado até que num capítulo do tomo segundo Nijō finalmente consegue abandonar a vida de corte e tornar-se no que tem sido referido como onna Saigyō.[21]

4. Considerações Finais

Dada a relativa contemporaneidade entre as questões búdicas referidas, entre Saigyō e entre Saigyōzo, e por se dar o caso de a obra de Saigyō estar, inegavelmente, pejada de uma sensibilidade, de um respeito e de uma concepção da Natureza que a colocam num plano religioso sincreticamente budista, não é descabido pensar, tal como LaFleur, que várias destas concepções do mundo seriam partilhadas por Saigyō. A compreensão deste conjunto de correntes de pensamento torna-se necessária aquando do contacto com os textos produzidos por Saigyō e, em especial, quando tratando de concepções que se crê que Saigyō hipoteticamente deteria. Atribuo alguma importância ao termo «hipoteticamente», pois entre tudo aquilo que existe no ideário de Saigyō, naturalmente, pouco será o que não levará a uma importante leitura hipotética. No entanto, a disparidade também será aqui importante porque ao construir uma imagem de Saigyō enquanto homem e enquanto poeta, foi-a convertendo em lenda e levando a que servisse de inspiração a poetas posteriores, que, sendo fascinados por um exemplo considerado «santo» e tomando os relatos como verdadeiros, fizeram percursos de vida que procuraram assemelhar ao do exemplo — Saigyō. Dei os exemplos de Bashō e de Nijō por terem tido ambições diferentes ao seguir o exemplo do nosso poeta, mas poderia ter dado outros exemplos, poderia ter discutido, por exemplo, Sōgi ou Buson. A respeito desta matéria não faltam exemplos. Nesse sentido, urjo a que não se coloque de parte o conceito de Saigyōzo nem a poesia de Saigyō ao analisar poetas que tenham efectivamente viajado pelo Japão. Penso que, sem o fazer, se obterá apenas uma imagem deturpada do escritor que se pretende estudar. Embora as motivações possam divergir, a sombra de Saigyō permaneceu durante toda a Idade Média japonesa como um grande factor de influência na redacção de poesia.

O fascínio pela figura de Saigyō derivará dos dois factores já referidos: suki e excelência de waka. O suki, associando-se à reclusão e à excelência do waka, terá ajudado a valorizar o trabalho poético como ofício de salvação. O shukke e as circunstâncias peculiares da morte de Saigyō, os quais aparecem exaustivamente descritos na Monogatari, criam uma inequívoca relação entre waka e satori. Consequentemente, a inegável valorização espiritual que a poesia de Saigyō, assim como os relatos da Saigyō Monogatari atribuem à Natureza, levam a que o waka e o satori também se relacionem com a Natureza. Em suma, a imagem de Saigyō que se quedou para a posteridade foi a de um hijiri (homem santo) que, vivendo em reclusão, dedicou a sua vida à composição de poesia com um elevado grau de espiritualidade, quer na interpretação dos fenómenos da natureza, quer em autorreflexão. Penso que isto deve ser tido em conta e que raramente se devam analisar textos de escritores que quiseram assemelhar-se a Saigyō sem ponderar sobre o conceito de Saigyōzo — a imagem que ficou para a posteridade de Saigyō. 

 

[1] Um conjunto de vários relatos de cariz hagiográfico que começaram a ser produzidos cerca de 50 anos após a morte de Saigyō.

[2] Shukke escreve-se 出家, o primeiro caracter significa saída e o segundo significa casa. A saída de casa é uma metáfora muito utilizada ao longo da tradição budista para designar o abandono da vida secular e a entrada na vida espiritual budista. 

[3] Tradução da minha autoria a partir da língua inglesa.

[4] «The precision of Saigyō’s prediction went beyond being merely uncanny. The high level of intentionality he had put into the manner of his dying seemed to suggest the same may have been true of his whole life. Ignoring the hesitations, doubts, and struggles evidenced within a number of his poems, hagiographers construed his life story as more single-minded, chaste, and free of cares than it had, in fact, been.» (LaFleur 2003, 88).

[5]  Um esteta, alguém dedicado exclusivamente ao culto, ou apreciação dedicada, de alguma forma de arte.

[6] Tradução a partir inglês de minha autoria.

[7]  O nascimento, a morte e o envelhecimento são formas de sofrimento (duhkha). (Watts 1957, 46).  A causa de sofrimento (duhkha) é o desejo (trsna) (Idem, 47). O desejo pode cessar com a obtenção do nirvana (Idem, 48-9). A forma de obter o nirvana é seguir o Nobre Caminho Óctuplo (Idem, 51-2).

[8] Tradução a partir inglês de minha autoria.

[9] Veja-se que Rahula significa «amarras» e Saigyō considera a filha uma amarra.

[10] A palavra waka significa poesia. Quando Muju se refere a waka estará a referir-se à poesia clássica japonesa, ao tanka.

[11]  Xintoísmo.

[12] Conjunto de versos extremamente importantes no budismo primordial, encontram-se com relativa facilidade nos Tipitaka.

[13] Essa é a posição a que Mujū recorre aquando da equiparação entre versos de waka e de dharani. De acordo com a tradição, o Kami Susanoo seria o pai do waka, de modo que o waka é sacralizado por Mujū por provir de uma representação de Buddha, i.e. Susanoo.

[14] Quem se interessar por este assunto deverá ler a parte 1 do artigo de LaFleur sobre a valorização budista da natureza em Saigyō.

[15] Tradução a partir inglês de minha autoria.

[16] Tradução a partir inglês de minha autoria.

[17] Barnhill traduziu por «Creative» (Criação) o termo Zōka. Zōka aparenta ser mais do que apenas «Creative». Zōka aparenta ser um processo de transformação da Natureza. Quando se fala de criação não se fala de uma criação ex nihilo, mas de modificações que vão acontecendo por acção da Natureza de forma espontânea e incondicionada. Para mais informações sobre o assunto pode consultar o artigo de Barnhill intulado «Zōka: The Creative In Bashō’s View of Nature and Art».

[18] Tradução a partir do inglês, de minha autoria.

[19] Tradução a partir do inglês, de minha autoria.

[20] Dado o desconhecimento da existência desse episódio na actualidade, é possível que o testemunho não tenha sobrevivido até aos dias de hoje (Heldt, 1997: 472).

[21] «Mulher Saigyō». Nijō tem sido considerada por estudiosos como uma versão feminina de Saigyō. Veja-se por exemplo o texto de Kimura Saeko.

 

 

Bibliografia:

 

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