Alexandre O’Neill foi leitor assíduo de literatura brasileira. Nomes como João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira são evocados frequentemente (ainda que com relevâncias diferentes), tanto nos seus poemas, como em crónicas e entrevistas. Só que de entre estes vários nomes normalmente fica por mencionar um de grande peso, que por um triz poderia escapar: João Guimarães Rosa. A frequência com que é evocado pode não ser tão grande como a de alguns dos nomes acima indicados, mas é sem dúvida um autor de referência para O’Neill. É um dos seus autores preferidos, como afirma em entrevista — «Laclos, Stendhal, Tchecov, Hemingway, Jorge Luis Borges, Brecht, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa.» (meu destaque; em Bom 2006, 712)[1] — e é até um dos seus autores de cabeceira: «Os seus autores de cabeceira? Peter Handke, Musil, Gary Snyder, Guimarães Rosa, Aquilino, Camilo José Cela» (meu destaque; em O’Neill 2021, 100).[2] Maria Antónia Oliveira chega a afirmar que O’Neill «tinha devoção» por Guimarães Rosa (Oliveira 2024, 315).

Ainda assim, pode ser difícil encontrar marcas da leitura de Rosa na obra de O’Neill. Outras ligações a outros autores da literatura brasileira, como aqueles que mencionei primeiro, são mais evidentes, e têm vindo a ser estudadas e analisadas.[3] São poucos os estudos que dão conta da afinidade entre O’Neill e Rosa. Mariana Santa-Cruz, por exemplo, procura fazer um inventário dos autores de língua portuguesa que, para usar as suas palavras, tiveram a «felicidade de ler Rosa», e aí inclui O’Neill (Santa-Cruz 1998, 246). Todavia, Santa-Cruz não apresenta um argumento sobre de que forma é que essa «felicidade» se revela depois na obra poética e crítica de O’Neill.

Este texto encontra-se então nos preâmbulos de uma conversa entre O’Neill e Rosa. A conversa começará desta feita pelos lados do famigerado sertão. E será o segundo conto de Primeiras Estórias, intitulado «Famigerado», que nos levará até lá. Aliás, no acervo da biblioteca pessoal de O’Neill, que pertence à Biblioteca Municipal de Constância, é possível encontrar um exemplar de uma primeira edição de Primeiras Estórias, de 1962. Mas a razão pela qual proponho começar por aqui é mais do que circunstancial. Parto sim da intuição de que O’Neill acharia particularmente graça a este conto.

O conto abre com a cena da chegada do que parece à primeira vista ser um estranho grupo de cavaleiros a casa do médico do local. Rapidamente o médico percebe que o grupo é liderado por um cavaleiro, que, na verdade, «só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe» (Rosa 2022, 20), que tinha «cara de nenhum amigo» (19) e cuja «máxima violência podia ser para cada momento» (21). Mais ainda, não é um jagunço qualquer: é Damázio dos Siqueiras, «[o] feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo» (21). O risco iminente de derrame de sangue enche o relato de tensão. Assim, o doutor admite: «concebi grande dúvida», e é tomado pelo medo: «O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava» (20). E no clímax do suspense, Damázio revela a surpreendente razão que ali o levara: «Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-me-gerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?» (22). Na falta de um dicionário, «o livro que aprende as palavras» (22), o doutor torna-se a figura de autoridade que irá certificar o significado de «famigerado», e, mais importante, se é «desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?» (23).

O diálogo que se segue consiste na tentativa de o doutor explicar o significado da palavra «famigerado» ao jagunço. Este conto já foi frequentemente analisado sob o prisma do encontro entre letrado e iletrado, em abordagens no geral de cariz mais sociológico. Aqui vou tomar uma outra via de interpretação, analisando a forma como o conto aborda o tema da linguagem, da literatura, e, mais especificamente ainda, da literatura de Rosa, tal como é apresentado precisamente neste momento do diálogo.

Ora, numa primeira leitura pode parecer que a troca de palavras entre o doutor e o jagunço consiste na aprendizagem do significado da palavra «famigerado» através de um processo de depuração da linguagem, um modo de obter «estrito o caroço: o verivérbio» (22) do significado através de uma simplificação máxima. Assim, o médico começa por apresentar definições como num verbete de dicionário, com palavras caras, que se provam insuficientes. Depois simplifica o vocabulário quando o jagunço lhe pede para traduzir o que disse para «linguagem de em dia-de-semana» (22). Por fim, oferece-se ele próprio como exemplo ilustrativo das definições apresentadas anteriormente.

Todavia, como nota Abel Barros Baptista (2019), esta forma de ler o diálogo é insuficiente, pois não consegue acomodar uma explicação satisfatória para a primeira resposta do médico: «Famigerado é inóxio» (23). Dado que o médico sabe desde o início que seria melhor oferecer uma explicação mais simples a Damázio, mais conforme ao seu vocabulário, esta primeira resposta deixa de fazer sentido. Se uma pessoa não sabe o que quer dizer «famigerado», é pouco provável que saiba o que quer dizer «inóxio», e não seria prudente arriscar tanto num momento de vida ou de morte como aquele.

Baptista resolve esta lacuna argumentando que a partir daquela primeira resposta, «marca da irracionalidade da opção do doutor» (Baptista 2019, 17), é introduzido um momento de parábase em que o autor apresenta «diante dos olhos do leitor distraído um momento único de defesa ilustrada e apaixonada desse modo de proceder com as palavras — o modo de Rosa» (ibid., 18). Este «modo de proceder com as palavras» contempla na criação da sua própria língua todas as possibilidades, desde o dicionário à linguagem comum, para as «subordinar sempre ao que Rosa faz com elas [as palavras] em cada texto, como se fosse escrito num idioma inédito e ao mesmo tempo dispondo-o na direcção do leitor num apelo para que seja capaz de o ler» (ibid., 18).

Assim, é possível considerar que o conto coincide com o nascimento de um dicionário. Por um lado, são oferecidas inúmeras definições para a palavra, inúmeros registos e nuances que informam o significado de «famigerado»: desde «famigerado é inóxio», à manifestação do desejo de ser famigerado, à outra possibilidade do significado pejorativo que o Governador pode ou não ter utilizado para se referir a Damázio, aos erros do jagunço que ainda permitem reconhecer o original. Por outro, o conto mostra, precisamente através da palavra «famigerado», a insuficiência tanto do dicionário normal, como da «linguagem de em dia-de-semana», como de outro inventário linguístico, para perceber «famigerado». Só se percebe «famigerado» dentro do uso, e usos, que o conto faz. O conto é o dicionário. E a literatura de Rosa quer constituir-se enquanto dicionário.

Isto vai ao encontro do desejo de Rosa para a sua obra, proferido noutras ocasiões. Por um lado, como afirma em entrevista a Gunther Lorenz, Rosa não deseja submeter-se à «tirania da gramática e dos dicionários dos outros» (Lorenz 1983, 71). Por outro, tinha a ambição explícita de deixar como seu maior legado um dicionário próprio: «E este [dicionário] fará as vezes de minha autobiografia» (ibid., 89). Esta afirmação viria a tornar-se profética, dada a publicação de léxicos de Rosa.

É oportuno agora voltar a O’Neill. Por que, então, O’Neill acharia especial graça a este conto? Aqui proponho então começar uma conversa, a partir dos erros do jagunço, do gosto pelo dicionário, e da expressão «linguagem de em dia-de-semana».

Quanto ao primeiro ponto, atente-se na primeira tentativa do jagunço Damázio de se referir a «famigerado»: «fasmisgerado… faz-me-gerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?» (22). Como vimos, estes erros passam a fazer parte do dicionário que é o próprio conto. Na obra de O’Neill também os erros são elevados a um estatuto diferente, e não apenas a um gesto de pé em falso. E é precisamente a própria obra de O’Neill que oferece as entradas de dicionário para esses «erros». Veja-se, por exemplo, a escrita do discurso oral, nos versos «Anda, meu Silva, estuda-m’aleção, / vêsse-te instruz, rapaj, qu’ainstrução / é dosprito upão!» («Uma Lisboa remanchada», Poemas com Endereço, 1962; ibid., 179), ou mesmo «Caixadòclos», de Feira Cabisbaixa, (1965; ibid., 249); a invenção de verbos, por exemplo, em «beijobicar […] Para quê aguitarrar a frustração? / Para quê maxilar a agressão?» («O Lanterna Vermelha», Poemas com Endereço, ibid., 210); ainda os inúmeros jogos de palavras, dos quais deixo apenas alguns exemplos: o jogo de palavras possível através do jogo com os versos do poema (ou vice-versa), em «Absinto-me cansado / na outonalma. / De abismo, no outono, / encharco a alma…», de «Para uma roda de amigos» (Poemas com Endereço, ibid., 184), ou «O mais é literatura, / libertinura», de «Autocrítica» (Entre a Cortina e a Vidraça, ibid., 258); adjetivos e onomatopeias, por exemplo, em «Crocodiletante / lacricrimejante / ou vociferante / ao cri-cri da crítica» («Amigos pensados: Vate 65», Feira Cabisbaixa, ibid., 229); ou mesmo novos nomes e conceitos, em «A damisela passeia / no país da alcateia» («O país relativo», Feira Cabisbaixa, ibid., 229), «eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá» («Já», Entre a Cortina e a Vidraça, ibid., 317), e «A vida não é de abrolhos. / É de abr’olhos.» («À maneira de Benamor Lhopes», ibid., 317).

Quando perguntaram a O’Neill se mantinha a opinião de que Rosa era o maior escritor contemporâneo de língua portuguesa à data, O’Neill responde «Mantenho. Nunca a língua portuguesa, que eu saiba, até agora, foi tão bicicletada como nele» (O’Neill 2021, 96, 100).[4] O conto «Famigerado» é um exemplo de como Rosa «bicicleta» a língua, utilizando como pedal a palavra «famigerado», com todas as variantes que já vimos, como na listagem de erros do jagunço. Ora, os inventários, erros e neologismos de O’Neill oferecem-se também como veredas privilegiadas para bicicletar a língua portuguesa.

E assim retoma-se o segundo ponto, acerca do interesse pelos dicionários. O interesse de Rosa já foi aqui mencionado, sendo que o autor brasileiro chega a afirmar que «um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica» (Lorenz 1983, 89). O’Neill, por sua vez, reconhece essas mesmas qualidades poéticas: «[l]er um dicionário, não para ficar a saber os significados, mas por causa da sua rubrica: é quase um poema» (O’Neill 2021, 79).[5] O’Neill chega mesmo a afirmar: «Eu era capaz de ficar o resto da vida a ler um bom dicionário: não precisava de mais nada! […] A palavra em situação de dicionário é extremamente excitante» (ibid.). O dicionário para estes autores tem então um mérito particular, com potencial poético.

Na verdade, é possível pensar no conto «Famigerado» como um conto sobre, para usar a expressão de O’Neill, o que é uma palavra «em estado de dicionário». Rosa leva esta hipótese até ao extremo, fazendo afinal perguntar: o que é uma palavra em estado de literatura? Seguir neste caminho começa a tornar dispensável a necessidade de aferição do significado por entidades externas. Nesse sentido, a afirmação de O’Neill acerca do benefício de ler um dicionário podia aplicar-se também a esta leitura de «Famigerado»: ler «não para ficar a saber os significados, mas por causa da sua rubrica: é quase um poema» (ibid.). A necessidade de significado só pode ser resolvida entre leitor e conto, e apenas na medida em que são «as estórias [que] ensinam o leitor a lê-las» (Baptista e Rowland 2022, 261). É por isso que O’Neill se alinha com Rosa para afirmar: «Digo, também, como o velho jagunço de Guimarães Rosa: “Pão ou pães é questão de opiniães”» (O’Neill 2022, 694–95).

Por fim, chegamos à «linguagem de em dia-de-semana». Em muito esta expressão poderia servir como descrição da dicção escolhida por O’Neill. A preposição «em» é especialmente arguta, pois inclui uma noção de lugar que nos introduz dentro da paisagem que dá origem a este tipo de dicção. E a preposição «de» implica uma ideia de pertença, esta linguagem pertence também a um lugar de dia-de-semana. Como chama a atenção Joana Meirim, «Não fazer distinção entre linguagem da poesia e linguagem das pessoas foi refrão assíduo de O’Neill» (Meirim 2024, 132).

Quase paradoxalmente, a escolha da dicção parece vir do desejo de O’Neill de «esconjurar o quotidiano»: «É que, a invenção atroz a que se chama o dia-a-dia, este nosso dia-a-dia, espreita, de perto, tudo o que faço. É o preço que tenho pago para o esconjurar, pelo menos nas suas formas mais gordas e flácidas» (O’Neill 2022, 694–95).[6] O projeto de emagrecimento aplica-se à vida porque se aplica à poesia e aos poetas. Numa carta a João Cabral de Melo Neto, O’Neill pede-lhe «o seu aviso, principalmente quanto a poetas “magros”», pois afirma que a «jovem poesia portuguesa […] precisa de emagrecer» (O’Neill, 1959). Todavia, O’Neill admite na mesma carta que João Guimarães Rosa não poderá ser um desses autores, ele é «impublicável» em Portugal, por causa da dificuldade de «transpor a barreira vocabular» (ibid.). Nesse sentido, Rosa não é exatamente um «poeta gordo», mas sim «autor impublicável» à data.

O projeto de «esconjurar o quotidiano» através de um processo de emagrecimento que inclui o exercício de bicicletar a língua põe em evidência uma preocupação de O’Neill quanto às condições de possibilidade da poesia em Portugal. O’Neill sabe que viver é perigoso. Assim faz refrão de uma das máximas de Grande sertão: vereda, numa expressão que sintetiza tanto uma proximidade ao autor do sertão, bem como uma inflexão à O’Neill: «Mas, meus filhos, viver é muito perigoso, como já dizia o jagunço do Guimarães Rosa! E também pode ser menos chato, digo-vos eu» (O’Neill 2008, 169).

[1] «Alexandre O’Neill responde ao questionário de Proust», Entrevista ao Jornal de Letras e Artes, 1962.

[2] «O surrealismo está gloriosamente empalhado». Entrevista de Baptista-Bastos», O Ponto, 1982.

[3] Veja-se, por exemplo, Gonzaga 2021.

[4] «O surrealismo está gloriosamente empalhado». Entrevista de Baptista-Bastos», O Ponto, 1982.

[5] «Alexandre O’Neill: a atração pelos dicionários», Entrevista de Francisco Dionísio Domingos, Edição Especial, 1977.

[6] «[Poeta, falei pouco de mim]», texto apresentado em disco acompanhando a edição de 1972 de Entre a cortina e a vidraça.

 

* Doutoranda financiada pela FCT (2023.03556.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: m.quintela@edu.ulisboa.pt.

 

Bibliografia

Baptista, Abel Barros. 2019. «“Famigerado”: parábases, famigerado problema». Letterature d’America - Rivista Trimestrale, n.o 175, 5–25.

Baptista, Abel Barros, e Rowland, Clara. 2022. «Com o Aldaz Nevagente - Conversa de Abel Barros Baptista e Clara Rowland». Em Primeiras Estórias, 247–85. Lisboa: Tinta-da-China.

Bom, Laurinda. 2006. «Alexandre O’Neill, prosas de um poeta. Proposta de edição crítica. Vol. I». Tese de Doutoramento, Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Gonzaga, Graciele Batista. 2021. «Alexandre O’Neill, leitor de poesia brasileira». Tese de Doutoramento, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Letras.

Lorenz, Gunter. 1983. «Diálogo com Guimarães Rosa». Em Guimarães Rosa. Vol. 6. Coleção Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

———. 2024. Uma Carta à Posteridade: Jorge de Sena e Alexandre O’Neill. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Oliveira, Maria Antónia. 2024. Alexandre O’Neill: uma biografia literária. Porto: Assírio & Alvim.

O’Neill, Alexandre. 1959. «Carta a João Cabral de Melo Neto». Dactiloscrito assinado. FCRB-Arquivo-Museu de Literatura Brasileira JCMNCCP.

———. 2008. Já cá não está quem falou. Editado por Maria Antónia Oliveira e Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim.

———2021. «Diz-lhe que estás ocupado»: conversas com Alexandre O’Neill, ed., org. e intro. De Joana Meirim. Lisboa: Tinta-da-China.

———. 2022. Poesias completas & dispersos. Editado por Maria Antónia Oliveira. 2a. edição. Porto: Assírio & Alvim.

Rosa, João Guimarães. 2022. Primeiras Estórias. Lisboa: Tinta-da-China.

Santa-Cruz, Mariana de. 1998. «Guimarães Rosa: desenredos e projeções nas literaturas de língua portuguesa». Scripta - Belo Horizonte 2 (3): 242–50.

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