Entre tudo, talvez o mais fascinante na escrita seja uma particular vontade de dialogar. Longe de procurar desvendar o que quer que pudesse estar obscuro no trabalho de Jacques Derrida em torno da teologia negativa, este ensaio procura imiscuir-se na conversa indirecta, anacrónica e improvável, que se dá entre estes dois universos distintos. O que aqui é apresentado tem, por isso, a pretensão de pensar uma troca de escritas, qual epistolário, tida com um total desdém pelo tempo que passa. Na busca por esta conversa hostil à necessidade de ser contemporâneo, é importante lembrar que não se trata de identificar pontos de harmonia ou discórdia entre as obras em questão. Não residindo aí o que de mais fundamental acontece na escrita de cada lado, o foco aponta para a tarefa lenta e difícil a que a obra de Derrida se dedicou sempre: a de ler na escrita de outros a força do desejo, encontrando na obra de colegas um elemento a partilhar que em nada se assemelha à procura do idêntico.
No sentido de perceber aquilo que se joga neste diálogo, será necessário ter presente que a motivação original do trabalho de Derrida consiste na difícil construção de um desafio à linguagem e ao seu problema ontológico fundamental. A desconstrução, como ela é pensada ao longo da obra de Derrida, é possível na certeza de que a linguagem não é nem aquilo que cada um de nós emprega no sentido de comunicar um ideia, nem aquilo que nos aproximaria das coisas observadas, às quais poderíamos chamar mundo, natureza, Deus. Desta forma, é retirada à linguagem a possibilidade de ser o caminho através do qual cada um se aproxima de um fim — seja esse fim o mundo observado ou imaginado —, consistindo o trabalho crítico de Derrida em pensar a linguagem enquanto produção de significado que reduz, ao invés de expandir, e silencia quando se imagina a dar voz. Chama violência ao movimento de redução que toma lugar na linguagem e Outro ao objecto sobre o qual essa violência age.
Na medida da sua eficiência explicativa, o conceito revelaria a essência que habita escondida no mundo, progressivamente reduzindo a distância que bloqueia o olhar directo sobre a verdade das coisas. É pensando a noção segundo a qual o uso sóbrio e o equilibrado — conceptual — da linguagem, consequência directa de uma disciplina precisa e de um método cuidado, inevitavelmente traçaria o caminho que conduz o sujeito à essência, que Derrida levanta a questão da violência entre totalidade e diferença. Um conceito é violento no sentido em que se mostra sempre incapaz de preservar a singularidade daquilo que procura integrar em si — o Outro —, e o problema do pensamento filosófico — da conceitualidade — reside em tomar como finalidade o apagamento da singularidade, afirmando os exemplos como meras representações que em nada acrescentam à essência da qual dependem. Se o telos do pensamento conceptual é precisamente a arrumação de uma série de particularidades dentro de uma topologia irrefutavelmente organizada, a possibilidade de o fazer depende da eficácia do conceito: na qualidade de ferramenta, o conceito reduz o Outro, circunscreve-o, separa-o do infinito que a diferença lhe concede, torna-o agente passivo num sistema de conhecimentos exportáveis.
Mesmo que por vezes se possa sentir a possibilidade de uma sugestão de tal natureza, a crítica do conhecimento enquanto poder e violência pensada por Derrida não passa nunca por afirmar um outro caminho viável. Ao invés de ser uma alternativa à ortodoxia ou uma contribuição para que essa nova via possa vir a existir, Derrida ensaia em Violência e Metafísica uma crítica às consequências da exterioridade, tomando como palco o trabalho de Emmanuel Levinas. Ora, argumenta ele, imaginar que a possibilidade de afirmar o Outro reside algures para lá dos limites do conhecimento é repetir a violência desse mesmo conhecimento contra o qual se reage, com um grau de ingenuidade incomparavelmente superior: afirmar a existência de uma alternativa certa à violência — do logos, diria Derrida — é estar mais perto dessa mesma violência do que a consciência imediata permite verificar. Levinas procura formular uma alternativa para a violência do conceito a partir da ética, no sentido de imaginar uma possibilidade de uma filosofia que tome o respeito pelo Outro e a conservação da sua infinitude como princípios primários. Na base desta noção de filosofia, onde uma reflexão sobre a ideia de ética é inevitável, está a assunção de que o Outro é experienciado — experimentado — no encontro cara-a-cara, afirmando assim a experiência vivida como o garante único da diferença: o diálogo com o Outro dá-se no domínio da experiência e só esta permite a absoluta alteridade, a única alternativa à violência do conceito.
O problema da ética garantida pela experiência, como pensada por Levinas, reside no facto de o autor assumir a possibilidade de pensar a ideia de experiência numa dimensão absolutamente exterior aos problemas que emergem da noção de ontologia e de conhecimento. «Mas será possível falar de uma experiência do Outro ou da diferença? Não foi o conceito de experiência sempre determinado pela metafísica da presença?», pergunta Derrida (1967, 252).[1] O conhecimento, a conceitualidade, a presença e a verdade são enormes na sua capacidade de segurar, ocupar e transformar, precisamente porque não existe nenhum tribunal exterior a partir da qual aquele que é crítico destes problemas possa acusar e refutar: o problema da presença, no trabalho de Derrida contíguo, senão mesmo coincidente ao da ontologia e da conceitualidade, impõe-se na medida da sua absoluta indispensabilidade. A refutação, enquanto caminho da alternativa, não pode senão ser concebida sob o signo da linguagem afirmativa, habitante do domínio do ser e do logos: até o silêncio finito, Derrida sublinha, é um «meio da violência» por ser inconcebível a-linguisticamente, aliás como tudo o que é é (1967, 173). A saída da violência conceptual e ontológica, imaginada por filósofos como Levinas, está invariavelmente condenada à frustração, destinada a tornar-se uma forma potenciada da mesma violência por estar assente na ideia de que esta pode ser absolutamente evitada no âmbito da linguagem afirmativa.
Deparamo-nos, desta forma, com um problema de natureza irresoluvelmente contraditória: se, por um lado, o respeito para com o Outro consiste no desejo da Sua infinitude, por outro, o que permite a existência desse mesmo desejo — a linguagem — invariavelmente traz consigo a violência que o desejo rejeita por definição. E Levinas, aponta Derrida, através da apologia de uma ideia de um encontro absolutamente não violento — o cruzamento do olhar —, afirma a possibilidade de uma linguagem não violenta a ser trabalhada: «ele [Levinas] já se privou da melhor arma: o desdém pelo discurso» (1997, 170), ignorando que «a não-violência seria o telos e não a essência do discurso» (1967, 172). A linguagem afirmativa só pode ser concebida enquanto garante da infinitude do Outro se a anulação da violência for entendida teleologicamente, afirma Derrida. Ora, se um telos é o culminar da perfeição ontológica num momento que eventualmente virá, e se a negação da violência tem obrigatoriamente de passar pela recusa do que pensado essencial ou ontologicamente, então Levinas, quando ignora a natureza teleológica do discurso que procura promover, reformula a violência que procura anular. Acreditar que se depurou a linguagem da sua dimensão ontológica é, ainda que involuntariamente, uma maneira eficaz de potenciar essa mesma dimensão, logo a violência que aí tem origem.
Poderia o leitor de Derrida, partindo de Violência e Metafísica, procurar ver na religião um contraponto a esta armadilha do conceito? Se conhecimento é violência, talvez a fé pudesse ser o outro do conhecimento. Tendo em mente o problema relativo à alternativa possível, o texto no qual Derrida se propõe a pensar o que é a revelação e o apocalipse leva-o à crítica da refutação numa outra direcção. Se em Violência e Metafísica o foco está em fazer a crítica da filosofia, questionando sempre o conhecimento em expansão, em Um Tom Apocalíptico Adoptado Há Pouco em Filosofia Derrida considera o mesmo problema — o da exterioridade — agora no contexto dos discursos religioso e filosófico. Aí sublinha que a linguagem, independentemente das tradições que nela se criam, não pode escapar à violência inerente ao trabalho teleológico — e à ideia de revelação. Tal como a filosofia não consegue evitar o tom apocalíptico que procura desmascarar, fundamental para o discurso bíblico, também o discurso religioso — o de João de Patmos, neste caso particular — se mostra incapaz de dar corpo à região da linguagem onde, por via da fé, a cultura da redução não chegaria. A violência sobre a qual Derrida reflecte não se deixa circunscrever por uma tradição em particular — filosofia, religião, literatura — porque, claro está, é tão violento todo o discurso que procure afirmar uma alternativa absoluta a um sistema como o sistema contra o qual se procura uma alternativa.
Se há um argumento comum em Violência e Metafísica e De um Tom..., tal acontece porque a violência é entendida como sendo anterior a tradições — anterior a idiomas — e habita no coração da linguagem. Quase como se apenas a violência, a par da diferença, fosse original. Se no primeiro texto o facto da discussão se centrar na figura de Levinas — mais concretamente no texto da sua tese de doutoramento — poderia conduzir a uma confusão aparente entre linguagem afirmativa e linguagem filosófica, em De um tom... a questão é trazida para o campo da não-filosofia e é afirmada a crítica da linguagem apesar das suas múltiplas tradições — idiomas. É desta forma que a linguagem é uma armadilha total, de limites inultrapassáveis: por um lado, enquanto redução do Outro à esfera conceptual, a linguagem age violentamente; por outro lado, no sentido em que a violência existe na medida do fundamento ontológico — e indispensável — da linguagem, não há alternativa na linguagem à violência que a habita. É inconcebível uma linguagem não violenta no sentido em que uma coisa só pode ser concebida — imaginada — dentro dos seus limites ontológicos: uma alternativa não pode ser pensada ignorando o ser, isto é, conceber ontologicamente é uma redundância porque a categorização ontológica é já um requisito obrigatório para capacidade conceber. Se uma alternativa é, então será por definição violenta.
Assim, quando Derrida em Como Não Falar: Negações e Sauf le Nom toma a teologia negativa como seu objecto de reflexão, o fascínio aponta não para o que ela tem de teológico, mas sim de negativo, pois o que é realmente admirado como experimentação em nada se relaciona com uma ideia do religioso como alternativa ao que seria de cariz filosófico — aliás, o trabalho de Derrida mostra que a intransigência desta distinção apenas dificilmente será sustentável. O facto de a teologia negativa tomar como base conceptual a noção platónica de epekeneia tes ousias (ser para lá do ser) — a hiper-essencialidade de Deus — é ilustrativo desta relação estreita entre fé e filosofia. O que se torna absolutamente atractivo no trabalho destes teólogos é precisamente a desconfiança ou o mal-estar que a linguagem neles desperta, e é com isto em mente que Derrida se refere à teologia negativa como o pensamento que deu a si «próprio o direito de (correcta ou incorrectamente, outro problema) viajar dentro da escrita filosófica na qualidade de elemento estrageiro» (1967, 171). Ou, colocado de uma forma talvez mais clara, se a experiência que a teologia negativa procura afirmar pode ser categorizada como contra violência, isso acontece porque esta é «dita num discurso que se sabia falhado e finito, inferior ao logos enquanto entendimento de Deus» (1967, 170).
Em que consiste, então, esta capacidade de negar que atrai Derrida pela sua excepcionalidade e o leva a afirmar a distância a que esta está da filosofia de Levinas — diríamos até da História da filosofia? O teólogo negativo percebe, num mesmo instante, que o desejo de diálogo com Deus no plano da experiência excede infinitamente — isto é, de forma incalculável — a estrutura finita da linguagem e que esta mesma linguagem, sempre insuficiente, é fundamental para o exercício daquele desejo. No coração do problema reside, portanto, a vontade de salvar o nome de Deus através da linguagem: sendo sempre dependente da sua pré-existência absolutamente paradoxal, o problema do teólogo negativo ou é infinito, ou não chega a ser. Se na ideia de Deus está contido tudo o que é Outro, e Deus excede sempre, invariavelmente, a percepção — ou seja, a linguagem —, então aquilo que marca a diferença entre Deus e o teólogo é precisamente a dependência absoluta deste em relação ao universo finito que a linguagem é: enquanto aquilo que desenha os limites da existência, a linguagem divide os seres finitos de Deus, isto é, separa o que é de qualidade replicável da diferença infinita. O desejo que habita a escrita a que chamamos teologia negativa consiste, então, em encarar Deus como o excedente de todo o retrato, logo em afirmar que o remanescente obscuro sob o qual germina a frustração inerente a qualquer acto afirmativo é Deus. Desta forma, perante o problema da impossibilidade de afirmar, o teólogo nega: escreve que Deus não é nem presente nem ausente, dado que a ausência é o reverso, logo o mesmo e não o outro, da presença.
A formulação negativa — nem presente, nem ausente — abre ao teólogo paralisado pelo problema da violência inerente à linguagem a possibilidade de se mover, sem que para isso tenha de esconder o paradoxo fundacional do seu ofício. Ele formula sempre negativamente, profundamente consciente que está das limitações brutais da percepção em relação à diferença, e diz não no sentido de sugerir o sim que não é passível de ser dito: oculto no universo da linguagem, o verdadeiro sim, o sim a Deus na sua infinita diferença, é murmurado entre aquilo que Deus não é. Derrida descreve este murmúrio como «A possibilidade do impossível, do mais impossível que como tal é também possível» (1993, 32). Negando que a linguagem consiga apanhar Deus, o teólogo afirma Deus na Sua infinita impossibilidade: Deus exige o apagamento das definições, só aí reside a possibilidade de afirmar a Sua para lá de possível — impossível — diferença. Neste sentido, torna-se imperativa a «entrega à verdade do nome, da coisa em si tal como deve ser nomeada pelo nome, isto é, além do nome. Ela salvo o nome.» (Derrida 1993, 68).
Relembrando agora a discussão em torno da violência do conceito, a afirmação murmurada na repetição da negação coloca-se à margem da lógica reveladora do discurso, focando-se sempre no problema do desejo — por Deus. O que é, em Derrida, este objecto de desejo que não se dá senão na forma do seu nome? «Deus é o impossível, o singular, aquilo que torna o impossível possível, isto é, Deus é o nome do limite, o limite absoluto» (Derrida 2018, 31). Deus é o — um — nome no qual habita a diferença do que é Outro, nomeia o excedente de diferença impassível de ser contado. Ao invés de fabricar a definição do indefinível simulando uma totalidade perfeita, a teologia negativa — como différance em Derrida ou o Ser mal-escondido por uma cruz em Heidegger — é «a abertura para esta manifestação» do Outro, não enquanto um momento de presença extraordinário, mas enquanto momento de um futuro por definição ausente (Derrida 1997, 583). Isto é concebível, claro está, num futuro que nunca deixara de o ser — num futuro sempre imaginado.
É necessário, contudo, lembrar que quando Derrida adopta o nome de Deus na sua escrita, afirmando a sua infinita substituibilidade, ele não o faz com o Deus hiper-essencial de raiz platónica professado pela teologia negativa. Se nesta tradição cristã Deus é o Ser que nem mesmo o conceito de Ser consegue circunscrever, residindo aí a irretractabilidade que O caracteriza, Derrida reduz Deus ao seu nome, à palavra que o nomeia, tornando-o ontologicamente vazio e literariamente pleno. Ao negar-Lhe a altura do Ser para lá do Ser, Derrida potencia o caracter substituível do nome que faz de Deus o lugar infinito de cada Outro: o movimento a que se entrega o nome, e que a forma hiperbólica do Ser recusa, abre a porta à diferença que exige uma substituibilidade perpétua — «Talvez a palavra Deus seja uma forma mais económica de expressar outra coisa» (Derrida 2018, 31). Com efeito, ver um qualquer acordo filosófico-teológico entre a desconstrução de Derrida e a teologia negativa, um espaço harmonioso onde a filosofia contemporânea e a teologia se encontrariam, é um total erro de percepção que levaria a olhar estas duas experiências do pensamento sob o signo do idêntico. Na verdade, o que se joga aqui é um diálogo em torno de um desejo partilhado, isto é, uma vontade comum de afirmar a infinita diferença de Deus/Outro. E a existência de um diálogo ou de uma partilha está dependente da irredutível diferença entre os dialogantes, traçando essa mesma diferença a linha que distingue o diálogo do discurso informativo, no qual A persuade, e por isso consome, B. Este desejo partilhado, a partir do qual se inicia um diálogo entre teologia negativa e desconstrução, existe enquanto repetição infinita da diferença de Deus/Outro.
Ao sim interminável murmurado negativamente — nem presente nem ausente — é exigida uma repetição ad aeternum porque Deus/Outro é infinito na sua diferença. «Os movimentos da repetição que repete para a frente, para o novo, o livre gesto de dar sem qualquer reserva», como descreve Caputo, são a razão de ser de uma vontade de impossível, sem a qual a própria lógica do desejo na sua relação estreita com a diferença seria muito simplesmente absurda. Dado que não existe a possibilidade de afirmar positiva e infinitamente, isto é, sendo que a verdadeira afirmação da diferença, aquela que fermenta no fundo do desejo, acontece entre negações e dá-se como preparação para o excesso, a afirmação que aqui se discute, infinita, não se oferece em termos eternos ou essencialmente reduzidos. Não existe a possibilidade de fabricar um sim auto-sustentável — essencial e duradouro —, dado que a afirmação acontece perpetuamente na repetição de um «estar-a-vir de uma coisa tout autre»[2] (Caputo 1997, 50-51). Esta relação entre desejo, afirmação e diferença necessita de um movimento e uma infinitude à qual apenas uma certa ideia de repetição pode dar resposta.
Por essa razão, no sentido de se conservar a noção de movimento que faz da repetição uma ideia singular, é imperativo que aí não se veja a representação do desejo. Este desejo de afirmar, partilhado, ao invés de ser dito através do exercício da repetição, existe como tal: qualquer distinção essencial entre desejo e repetição está condenada a suprimir a força que emerge da sua contiguidade. A afirmação infinita está «Longe de ser uma técnica metódica, um procedimento possível ou necessário, lançando a lei de um programa e aplicando regras, isto é, desdobrando-se em possibilidades» (Derrida, 1993: 62). A anulação do método no seio da repetição e do desejo deixa muito clara a impossibilidade de ver na desconstrução uma derivação filosófica da teologia negativa — ou o inverso —, pois ambas integram a história da repetição do desejo de diferença — Outro, Deus, différance. Não há, portanto, uma formulação original do desejo: a sua existência é muito somente a afirmação repetida da diferença.
O diálogo como modalidade do pensamento não passa por nomear essências comuns, mas antes por galvanizar forças, movimentos, desejos. E o que vemos acontecer entre Derrida e estes teólogos é diálogo apenas nesse sentido: nunca procura fundir pensamento ou afirmar uma tese original, anterior à história do mundo, um princípio que, iniciado o curso do tempo, viria a ser dissimuladamente expresso, assumindo aparências variadas. Esse pré-tempo é, também ele, a negação do diálogo. Movido a desejo, o diálogo exige dos interlocutores uma abertura àquilo que à cultura da totalidade é mais repugnante: uma escuridão, uma zona perpetuamente difusa onde o infinito acontece. Obriga, por isso mesmo, a que se olhe o passado sem nele ver um palco agregador, um momento em que havíamos todos sido um, para assim imaginarmos que dialogar é encontrar essa força vital do desejo nas práticas que desafiam o eu — ou, posto mais claramente, há tanta coragem para este escuro infinito na escrita como na pesca submarina.
Não só Derrida adoptou na sua obra este princípio de procura de vitalidade, como exige dos seus leitores que o leiam com a mesma sagacidade e coragem: afirmando o infinito na repetição, onde a totalidade dá lugar à diferença e o escuro é elevado a objecto de desejo. Estamos, portanto, no campo do que vai acontecendo quando falamos e não do que foi dito quando falámos. O diálogo, como deixa ver esta conversa entre Derrida e os seus teólogos, dá-se entre processos de fermentação, entre murmúrios.
[1] Todas as passagens citadas foram traduzidas para português pelo autor deste ensaio, tanto do francês como do inglês.
[2] No texto original em inglês, Caputo escreve tout autre em francês, fazendo assim referência a uma máxima de Derrida: “Tout autre est tout autre” (Em português, todo o outro é absolutamente outro).
Bibliografia
Caputo, John. 1997. The Prayers and Tears of Jacques Derrida Religion without Religion. Bloomington, IN: Indiana University Press
Derrida, Jacques. 1967. “Violence et Métaphysique.” In L’écriture et la différence, 117-228 Paris: Éditions du Seuil
Derrida, Jacques. 1983. D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie. Paris: Galilée
Derrida, Jacques. 1993. Sauf le nom. Paris: Galilée
Derrida, Jacques. 1997. “Comment ne pas parler. Dénégations.” In Psyché (vol.2), 535–595. Paris: Galilée
Derrida, Jacques. 2018 “The Becoming Possible of the Impossible: An Interview with Jacques Derrida.” In The Essential Caputo: Selected Writings edited by B.K. Putt, 44-54. Bloomington, IN: Indiana University Press